O canto do cisne: a monumentalidade enquanto indício do colapso civilizacional

O Complexo Arqueológico dos Perdigões é um sítio Pré-histórico que integra recintos delimitados por fossos. Está datado entre 3400 e 2000 AC e é classificado como Monumento Nacional (2019). Situado em Reguengos de Monsaraz (Alentejo), abrange 16 ha, em parte propriedade do Esporão, S.A. O projecto de investigação é coordenado e dirigido pela ERA Arqueologia, S.A.

Esta entrevista foi realizada com o arqueólogo António Valera, responsável pelo Complexo Arqueológico dos Perdigões, durante as escavações que decorreram no ano de 2015. Publicamo-la neste momento pois nela se equacionam questões que assumem profunda atualidade acerca da construção e interpretação do passado e da ascensão, declínio e colapso das sociedades. Através da Arqueologia, somos convocados a refletir sobre a condição contemporânea.

O que são os Perdigões?

É uma pergunta complexa. Eu acho que os Perdigões, provavelmente, não foram sempre a mesma coisa, mas o seu fundamento parece ter sido essencialmente o mesmo, desde o início até ao fim. A forma como respondemos a esta pergunta depende do contexto onde o sítio é pensado e interpretado. Temos diferentes contextos: o europeu, o ibérico e o português, que diferem entre si.

Contexto no sentido de pensamento arqueológico? 

Sim, de pensamento arqueológico, de tradição arqueológica, do modo de funcionamento da investigação, etc. Num contexto europeu, os Perdigões seriam associados a outros sítios conhecidos que têm claramente uma funcionalidade que os remete para o mundo simbólico, ideológico, para uma maneira de ver e estar no mundo destas comunidades, que construíram estes espaços para as suas práticas ritualizadas e que expressam as suas concepções do mundo, a forma como socialmente se organizam, como vivem e como interagem. 

Se pensarmos num contexto ibérico, Portugal e Espanha, verificamos que estamos perante dois países que foram os últimos a libertarem-se das ditaduras da Europa, e que estiveram muito afastados do desenvolvimento da arqueologia no resto do mundo. A arqueologia ibérica, mas essencialmente a arqueologia portuguesa que surge no pós-25 de Abril, tem uma forte carga ideológica, do materialismo histórico, imbuída em combates muito definidos e com objectivos muito concretos. Isto influenciou o desenvolvimento de uma arqueologia marxista. 

Vista aérea do sítio arqueológico Perdigões (2018). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comVista aérea do sítio arqueológico Perdigões (2018). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comE como se compara essa arqueologia marxista à que se praticava antes do 25 de Abril?

Na arqueologia dos anos 40 e 50, o difusionismo era a interpretação dominante. O difusionismo considerava que as comunidades do mediterrâneo oriental, mais evoluídas, vinham para o mediterrâneo ocidental numa perspectiva de procura de recursos, de colonização. As gerações do pós-25 de abril vão assumir um combate a estas explicações difusionistas e, dentro do materialismo histórico, vão à procura de respostas relacionados com evolução local. O seu objectivo é a construção de um discurso onde a emergência da desigualdade social, a emergência da exploração do homem pelo homem, esteja presente. Isto traduz-se numa perspectiva muito marcada pela racionalidade moderna, onde as questões económicas são aplicadas à pré-história e à sua interpretação. Produz-se uma série de anacronismos, de transporte de situações históricas para sociedades que são profundamente diferentes das nossas, quase assumindo que os combates do presente são os mesmos que os daquela época.

Essa influência marxista mantém-se na arqueologia portuguesa contemporânea?

A partir dos anos 90 as coisas começam a mudar. No caso concreto português, começa-se a notar uma maior influência da abordagem anglo-saxónica. Assiste-se a uma transformação teórica com o desenvolvimento de uma nova corrente do pensamento, designada por pós-processualismo, que está associada à pós-modernidade, novas formas de olhar, novos conceitos e novas perspetivas. Vai-se buscar correntes filosóficas que até então não tinham sido incorporadas na arqueologia, nomeadamente a fenomenologia, e começa-se a dar importância às questões do indivíduo e ao sentido das coisas. Um certo relativismo e a noção de contexto são introduzidos nas explicações arqueológicas. Estas novas concepções vieram originar um debate muito intenso nos países ibéricos, entre uma arqueologia funcionalista, mais materialista, e uma arqueologia pós-processual, mais contextualista. Noutros países já ultrapassaram o confronto e já perceberam que não há dicotomias, existem dualidades e existe complementaridade entre ambas as abordagens.

Escavação de um dos muitos fossos (2015). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comEscavação de um dos muitos fossos (2015). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comEstas alterações teóricas influenciam a interpretação dos Perdigões?

Partindo de abordagens diferentes começamos a ter respostas diferentes do que olhando pela perspectiva do materialismo histórico. Segundo o materialismo histórico, a interpretação seria que os Perdigões são um povoado fortificado, que ali viveria uma elite, que essa elite exploraria e controlaria uma série de comunidades à volta, que controlaria as trocas de objetos à sua volta e uma série de elementos de prestígio fundamentais à sua diferenciação social e ao exercício do seu poder. Poderia também incluir algumas nuances, com interpretações defendendo que se trataria de uma sociedade proto-estatal, com classes, com uma liderança forte, que controlava coercivamente comunidades e colocava-as ao seu serviço (o que de certa forma pressupõe forças paramilitares). Ou seja, que, numa linguagem marxista, controla os meios de produção e controla o que é produzido, os bens.

Existem outras abordagens que não estão só preocupadas com o problema da emergência da desigualdade social, do problema socioeconómico e da infraestrutura marxista. São abordagens mais sistémicas, em que as outras variáveis também entram para explicar e tentar entender o sítio. 

O problema de abordagens como a marxista é serem axiomáticas. Não se investiga o que o sítio é, parte-se do princípio que se sabe o que é e investiga-se para fundamentar esse modelo pré-existente.

Qual é a alternativa?

Quando se quer questionar as possibilidades, tem de se olhar para o sítio não como o que é mas como o que foi sendo. Algo que tem uma biografia e que se transforma ao longo do tempo. Os Perdigões têm uma biografia. Tem que se partir para a sua investigação e interpretação com o mínimo de axiomas possíveis. É óbvio que temos as nossas visões, não partimos do nada e não somos neutros, mas há sobretudo que procurar validar de forma crítica as nossas convicções sobre o que aquele sítio foi e é.

Planta do levantamento geofísico (magnetometria) do complexo dos Perdigões (2009). Imagem cedida por António ValeraPlanta do levantamento geofísico (magnetometria) do complexo dos Perdigões (2009). Imagem cedida por António ValeraVoltamos à questão inicial – o que são os Perdigões?

Eu acho que os Perdigões foram um meeting point, um local de agregação, possivelmente temporário. Mas essencialmente um local de agregação de comunidades envolventes, mais ou menos distantes, onde se realizavam uma série de práticas diferentes tendo em vista a reprodução do sistema social, cosmológico e ideológico. E isso é fundamental para explicar e entender o sítio e estas obras gigantescas, numa perspectiva não meramente funcionalista. Ou seja, quando olhamos para a função da coisa, focamo-nos na coisa feita, não nos focamos no processo de a fazer. Mas, do ponto de vista social, o processo de fazer é tão importante como a coisa feita e, às vezes, até pode ser mais importante. Mais importante que o fosso aberto é abrir o fosso; mais importante que a fossa aberta para receber o quer que seja pode ser o processo de abrir a fossa. O ato de construção é útil a toda a comunidade, como factor agregador, como motivo para a reprodução de todo o sistema social e das relações sociais.

A fase construtiva é que terá sido importante para a comunidade, ao invés da preocupação de criar uma obra monumental para a posteridade?  

Exatamente, o processo construtivo aqui é fundamental. Para abrir aqueles fossos é preciso juntar muita gente, ter processos coordenados. O trabalho tem um valor simbólico, o que pode ajudar a explicar o carácter quase irracional da monumentalidade do sítio e do esforço despendido, o qual nunca poderá ser entendido corretamente com uma matriz de leitura moderna, de custo/benefício.

Recipiente cerâmico campaniforme recuperado nos Perdigões (2019). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comRecipiente cerâmico campaniforme recuperado nos Perdigões (2019). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comMais um exemplo de como a matriz moderna influencia a interpretação do passado?

Sim. Hoje temos uma divisão do mundo muito estabelecida. Temos as nossas prioridades, as nossas hierarquias, e uma abordagem sempre na relação custo/benefício. No entanto, a relação custo/benefício é profundamente relativa, depende do que cada comunidade considera custo e considera benefício. O valor é profundamente relativo, a importância social que as coisas têm depende de comunidade para comunidade.

Não é só a distância temporal que cria constrangimentos na interpretação, é também a diferença cosmológica entre comunidades? 

Exato, o problema é que nós tendemos a lidar com outras comunidades aplicando as nossas dicotomias, doméstico/sagrado, indivíduo/colectivo, mente/corpo, humano/animal, etc. Mas estas dicotomias não funcionam para todas as comunidades. No caso dos Perdigões, é provável que elementos da comunidade ali tenham vivido, mas a introdução do termo povoado produz uma dicotomia que faz com que se passe a olhar para o sítio como um espaço doméstico, onde se faz determinadas coisas, sendo o sagrado onde se faz outras coisas. O importante é perceber que, se calhar, não são espaços estanques, dicotómicos, e o que se faz nestes espaços pode ter uma carga profundamente simbólica. É passar da noção de ritual para a noção de ritualidade, que é uma vivência, que quase tudo o que se faz, consciente ou inconscientemente, está impregnado dessa ritualidade e desse simbolismo.

Estes contextos levantam uma série de questões que não são facilmente resolúveis com o enquadramento que nós temos, dicotómico, da realidade. Estamos perante realidades, do ponto de vista ontológico mais fluídas. As fronteiras que separam as entidades são fluídas e existe circulação entre essas fronteiras.

Estamos então perante um sítio com intensa e prolongada atividade, que congrega milhares de pessoas para contruir aquelas estruturas e com um papel fundamental na reprodução do sistema social da comunidade, mas que, de repente, num século ou dois, desaparece. Como é possível?

Isto não acontece só nos Perdigões, acontece em todos estes sítios da Península Ibérica mais ou menos ao mesmo tempo. Durante a fase de crescimento destes sítios assiste-se a um fervor construtivo, com milhares de pessoas e, de certa forma, atinge-se o auge destas comunidades. Para mim, esta evolução assemelha-se a outras que aconteceram na história. Quando um sistema está prestes a atingir o ponto antes do colapso, apercebe-se inconscientemente. Quando as sociedades estão a entrar em decadência é quando produzem a sua maior monumentalidade, o denominado “canto do cisne”. Por exemplo, as catedrais medievais. É no final do sistema feudal, quando o sistema está a morrer, que produz a sua monumentalidade mais exuberante. Parece ser o que acontece nos grandes recintos de fossos como os Perdigões. Quando atingem as suas maiores proporções, o seu maior investimento de trabalho, é quando aparentemente morrem.

Detalhe da escavação nos Perdigões (2019). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comDetalhe da escavação nos Perdigões (2019). Imagem retirada de perdigoes2011.blogspot.comHá alguma razão que ajude a explicar este fim abrupto?

Há uma espécie de colapso e tem-se tentado perceber se este colapso tem uma causa ambiental. Não vejo porque não possa ter condicionantes ambientais mas, as causas, para mim, são causas próprias da dinâmica do sistema. São causas endógenas, mais do que exógenas, embora as exógenas possam ter acelerado o processo e possam ter ajudado. Não há evidências suficientemente fortes para que a alteração ambiental seja a razão principal. Pode ter havido um stress causado por alterações ambientais, mas não justifica o desaparecimento, sobretudo quando não há recuperação a seguir. O fenómeno acabou ali e não volta. Esse não voltar, para mim, esta relacionado com a razão por que apareceu. Este tipo de sítios não volta porque aquilo que levou ao seu aparecimento, que é o modo de vida e a visão do mundo destas comunidades, desapareceu.

Que elementos se podem observar que levam a essa conclusão?

Há mudanças que estão a ocorrer, que estão a mudar a visão do mundo destas comunidades e que as altera estruturalmente. Por exemplo, ao mesmo tempo que se observa uma diversificação das práticas funerárias, surge também o enterramento individual. Não é a primeira vez que aparece, já vem de trás, mas começa a aparecer com maior frequência e é o que permanece a seguir a este colapso. O enterramento colectivo praticamente desaparece. Isto é uma transformação profunda na visão do mundo, indicador que algo está a mudar em termos económicos e em termos sociais. Talvez tenha existido uma resistência social a esta trajetória de hierarquização e de maior desigualdade progressiva e depois essa mesma resistência pode ter gerado uma desarticulação do sistema, associada a mudanças mentais e a mudanças climáticas. Isto é objecto de investigação actual, não há ainda respostas, mas são estes os temas que se tem procurado investigar para tentar explicar elementos visível nos dados materiais. Portanto, pode estar relacionado com práticas sociais que conduziram estas sociedades ao abismo.

Abismo no sentido de se esgotarem? 

Abismo no sentido de colapso do seu modelo de organização social. Há uma série de fatores conjugados. Na minha opinião, deve-se procurar como cada fator contribuiu para esse desenlace, em vez de procurar apenas um grande fator responsável e dar uma explicação causal e simplista. Por vezes, basta um fenómeno pequeno para gerar uma dinâmica social, económica e ideológica que resulta num processo de grande impacto. A teoria dos sistemas complexos diz isso mesmo, alerta-nos para o caráter não linear dos processos e não simplista dos sistemas. Em sistemas complexos, podes ter um evento de grande impacto no sistema, mas o sistema ser capaz de o absorver dentro da sua dinâmica orgânica, conseguir adaptar-se, amortizar aquele impacto e sobreviver. O contrário também é possível, um pequeno impacto no sistema pode desencadear movimentos que levam ao seu colapso. É com estas abordagens que temos de olhar para as coisas, e não de uma forma simplista à procura do evento climático, ou da guerra, ou da epidemia, que terá sido responsável pelo colapso.

Para saber mais sobre o sítio arqueológico Perdigões: https://perdigoes.org/

por Lana Almeida, Beatriz Barros e António Valera
Cara a cara | 27 Dezembro 2021 | arqueologia, arqueologia portuguesa, canto do cisne, colapso civilizational, História, materialismo histórico, monumentalidade, perdigões, pós 25 de abril