Pela cidade que já o é: as (des)inscrições da África urbana no mundo

É sabido e inquestionável. As cidades africanas são inviáveis. Se antes o chamado continente negro nunca deixaria de ser rural, hoje em dia África vive a mais grave das crises urbanas. Na era da urbanização acelerada, as suas cidades crescem incontrolavelmente. Desordenadas e anárquicas, explodem, excedem-se e falham permanentemente.

Grande parte das representações correntes da urbanidade africana e da sua relação com o mundo tende a reproduzir a larga parafernália de imagens trágicas e profundamente reducionistas através das quais o continente sempre foi descrito. Metáfora suprema de ausência e incumprimento dos desígnios da humanidade, a ideia de África tem-se construído a partir de fora como pilar primordial para a legitimação, objectivação e consagração de múltiplas missões civilizadoras. Segundo os argumentos de autores como Chinua Achebe ou Achille Mbembe, desde os primeiros impulsos colonizadores que a noção de progresso se tem afirmado diametralmente oposta à intratável condição de um continente perenemente perdido nas trevas. Hoje em dia, a imagem de África permanece carregada de tragédia, vazio e decadência. As representações populares, tal como grande parte dos discursos especializados, continuam a atribuir a toda uma região “um lugar no mundo”1 que obstinadamente a coloca completamente “à parte do mundo”2. É perante esta conjuntura intelectual e discursiva que o estudo das cidades Africanas se tem vindo a inscrever “fora do mapa”3 da produção de conhecimento sobre a condição urbana.

Mas nem tudo são trevas na cidade africana. Um crescente número de autores tem vindo a contrapor a tendência dominante. É no âmbito dos seus esforços que a presente reflexão procura mapear de forma crítica as principais articulações da questão urbana no contexto africano. Se na sua maioria estas cumprem o papel supramencionado, também existe quem as utilize como veículo para repensar a modernidade. Dando especial atenção a questões epistemológicas e aos diferentes modos de representação de África e das suas cidades em relação ao mundo, pretende-se aqui reflectir sobre os principais debates que actualmente informam a posição particular que o continente ocupa nos imaginários teóricos do urbanismo contemporâneo.

Tendencialmente circunscritos ao estudo da pobreza e do desenvolvimento, a maior parte dos esforços de representação das cidades africanas relegam-nas ao domínio da insolvência do espaço ou da promessa urbana ininterruptamente quebrada. Bem para além as classificarem como espaços de crise irresolúvel, retratam-nas como permanecendo ausentes do mundo moderno. É deste modo que as teorias da modernização mantêm vigor e preponderância no contexto africano. Na mesma medida em que a crise se constitui como a sua condição fundamental, as ambições de modernidade e correspondente fé na capacidade de reforma do continente permanecem incólumes às constantes lacunas do grande projecto de desenvolvimento e progresso em que este foi integrado desde do final da época colonial. Nas cidades, a crise urbana tem dado origem a uma inabalável produção de recomendações prescritivas, intervenções inovadoras e medidas urgentes. Desde os múltiplos relatórios produzidos por organizações multilaterais, bilaterais e não-governamentais, ao considerável esforço de investigação aplicada na área do desenvolvimento, o grosso da literatura sobre as cidades africanas não se diferencia da vasta bibliografia de suporte à proliferação de soluções normativas para as disfunções características dos processos de urbanização acelerada no chamado terceiro mundo. Esta literatura constrói-se em torno de debates sobre a eficácia dos diferentes pacotes de políticas urbanas no esforço de reversão das crises sociais, económicas e políticas que invariavelmente assolam as cidades de todo o continente.4

Subjacente a esses debates é possível discernir um eixo contencioso em torno da questão urbana marcado por duas posições divergentes já aqui caracterizadas. De um lado defende-se o mercado livre e propõem-se variantes ao que Cristina Salvador 5 apelidou de “estilo Dubai”. Do outro procura-se o que Isabel Raposo 6 caracteriza como “políticas de intervenção mais humanizadas”. Para os primeiros, a única saída para a crise das cidades africanas requer a sua completa inserção no sistema-mundo através de ajustamentos mais ou menos estruturais, da liberalização dos mercados fundiários e da instauração de práticas de gestão urbana para a competitividade. Do lado oposto da barricada, a partir do qual Raposo escreve, acusam-se estas tipologias de intervenção de estarem associadas ao aprofundamento do carácter periférico dos “subúrbios não urbanizados” e dos grupos sociais de menores recursos que aí residem. Procuram-se assim articulações criativas com sistemas gerados na periferia no sentido de promover a “configuração de novos espaços qualificados” que permitam “introduzir melhoramentos adequados aos desígnios locais”. Mas se estas posições divergem nas soluções que apresentam, elas tendem a confluir no propósito com que emergem. A partir deste eixo contencioso, a urbanidade africana é incompleta, insuficiente e descrita para ser corrigida.

Mas não se esgotam aqui as abordagens à questão urbana no contexto africano. Com efeito, estas formas convencionais de representação têm sido sujeitas a um conjunto de críticas importantes. Um crescente número de autores mostra-se cauteloso em relação à sua aparente continuidade com tradições problemáticas de análise e intervenção no continente. Para Achille Mbembe7, ainda mais desconcertante será a constatação de que enquanto se sabe quase tudo sobre o que as cidades africanas não são, sabemos ainda muito pouco sobre aquilo que elas realmente constituem. Tal como foi acima realçado, isto resulta particularmente da separação entre modernidade e desenvolvimento. Na sua análise das disciplinas de estudos urbanos, Jennifer Robinson aponta para o facto de que as representações da modernidade como experiência de vida urbana têm sido fundamentalmente inspiradas pela observação de cidades europeias e norte-americanas, enquanto que os debates em torno do desenvolvimento e dos diferentes processos de melhoramento das condições de vida nas cidades se focam essencialmente nas regiões urbanas residuais, subdesenvolvidas e não-Ocidentais. Mais do que quaisquer outras, argumentam os críticos, as cidades africanas são deixadas de fora da esfera discursiva da experiência moderna.

É então em contraste com as representações dominantes da urbanidade africana que Achille Mbembe e Sarah Nuttall se propuseram a “escrever o mundo a partir de uma metrópole africana”. Tendo como ponto de partida um conjunto de pressupostos que assume o metropolitanismo como característica fundamental das sociedades africanas contemporâneas tal como do mundo, o seu  projecto intelectual afirma-se como uma iniciativa de desprovincialização do pensamento cujos objectivos basilares são partilhados por um número crescente de africanistas interessados em questões urbanas. A título de exemplo, é concordante com a estratégia que Jennifer Robinson aplica ao considerar e analisar “cidades ordinárias” através da descentralização dos referentes simbólicos da urbanidade; abrange o projecto de análise das múltiplas dimensões da vida quotidiana das cidades africanas através do qual AbdouMaliq Simone reconsidera noções correntes de política e urbanismo8; e não se afirma alheio às avaliações morfológicas de arquitectos como David Adjaye ou Rem Koolhaas9, cujos distintos olhares sobre tecidos e padrões urbanísticos em diferentes regiões africanas ambicionam reconfigurar o modo como se consideram e utilizam noções específicas de forma, urbanismo ou mesmo metrópole no estudo das cidades de uma forma geral.

Revisitando as fronteiras epistémicas que actualmente definem os estudos urbanos e argumentando que o continente africano está permanentemente imbuído em múltiplas geografias, grande parte destes analistas foca a sua atenção na enorme variedade de circulações através das quais as cidades africanas se vão moldando como repositórios de vida moderna bem como espaços de subjectivização da crise.10 Como desafio ao entorpecimento discursivo e imobilidade conceptual das representações dominantes do continente, Mbembe, Nuttall and Simone propõem-se a inscrever na teoria contemporânea a constante imprevisibilidade e incessante mobilidade das suas metrópoles. Igualmente dedicada à transformação dos modos de representação da cidade africana, Robinson defende um modo de análise urbanística de cariz pós-colonial através do qual todas as cidades são avaliadas segundo critérios análogos. Koolhaas sugere que o acto de descrever a cidade africana é paralelo ao de escrever sobre o futuro de todas as cidades.

Estes esforços de re-representação não estão, contudo, livres de críticas. Escrevendo a partir das fileiras da economia política marxista, Michael Watts desconfia de alguns dos seus pressupostos. Particularmente crítico da atenção dada aos conceitos de mobilidade e interligação, ele acusa estes analistas de procederem a não mais do que uma manobra de evasão face à avalanche neoliberal.11 Na sua perspectiva, a experiência cultural da modernidade é resultado de manifestações específicas de diferentes formas de acumulação capitalista.12  Perante a paisagem urbana que caracteriza a África contemporânea, Watts enfatiza a extraordinária prevalência de espaços de profunda exclusão e pobreza inimaginável – enormes áreas negligenciadas que estão efectivamente fora da grelha de comunicação e interligações. A maior parte das vezes, Watts argumenta, “absolutamente nada se sabe”13 sobre o que talvez sejam “espaços ingovernáveis”14. Aquilo que todos sabemos e como tal não podemos deixar de integrar nas nossas análises é que as cidades africanas “representam um tipo particular de híbrido entre involução urbana, cidadania fraca, e governamentalidade limitada”15. Desta forma, é a materialização de transformações político-económicas no espaço urbano, a reconfiguração de relações sociais dentro e entre cidades, e a força política dos que habitam espaços de exclusão que requerem atenção crítica. Na sua resposta às provocações de Michael Watts, Sarah Nuttall e Achille Mbembe apresentam-se profundamente desconfiados de explicações sistémicas que utilizam os espaços de exclusão como a principal gramática do metropolitanismo africano.16 Eles argumentam, em oposição, que à semelhança do resto do mundo as cidades de África são caracterizadas por divisões profundas ao nível da experiência urbana. É a mobilidade através das múltiplas ordens modernas que a suportam, eles argumentam, que requer novas interpretações do urbanismo Africano.

Por último, é ainda possível discernir uma outra abordagem a estas questões. Nos seus estudos sobre o continente africano e a ordem mundial neoliberal, James Ferguson adopta uma postura epistemológica que importa aqui enfatizar. O seu propósito intelectual passa não só por descrever África em relação ao mundo, mas também por nele inscrever a especificidade da sua modernidade. Segundo esta perspectiva, o continente ocupa um lugar particular nos debates em torno da pluralidade da modernidade encetados desde os anos 80. O tom trágico em que é normalmente descrito não pode ser simplesmente desaprovado como Afro-pessimismo irreflectido pois é na verdade reflexo da sua posição relativa à ordem mundial neoliberal. Numa região em que os benefícios da globalização pouco se fazem sentir e a experiência social do declínio se vulgariza continuadamente, os desejos de modernidade têm-se constituído como anseios de progresso socioeconómico e afirmação da posição de cada um no mundo. Como tal, a mera proclamação da uma eventual versão africana de modernidade tende a evadir a questão que tem ocupado lugar de destaque nas reivindicações dos muitos africanos que a vêem como uma condição socioeconómica privilegiada à qual ambicionam. Qualquer esforço de inscrição de África no mundo moderno requer a consideração do ambiente profundamente desigual em que a sua relação se desenrola.  

Recusando-se a ignorar as condições desoladoras em que a maioria dos africanos vive, bem como as suas implicações para os mecanismos de exclusão, pertença e abjecção através dos quais o sistema mundial se rege, Ferguson utiliza a metáfora da sombra para analisar o continente. O objectivo passa por criar formas de ver África que englobam tanto alegorias de ausência como imagens de proximidade, semelhança e conexão. Segundo esta perspectiva, é nos termos específicos da relação entre o continente africano, a modernidade e o mundo bem como nas múltiplas formas através das quais capital, pessoas e culturas se propagam desigualmente através e dentro das cidades que se deverão basear as representações da África urbana.

 

Fotografias de Luanda de Miguel Gaspar.



  • 1. James Ferguson, Global Shadows: Africa in the Neoliberal World Order (Duke University Press, 2006).
  • 2. Achille Mbembe and Sarah Nuttall, Writing the World from an African Metropolis, Public Culture 16(3), 2001.
  • 3. Jennifer Robinson, Ordinary Cities: Between Modernity and Development (Routledge, 2006).
  • 4. Edgar Pieterse. Cityness and African Urban Development, Urban Forum 21(3), 2010.
  • 5. Cristina Salvador. http://www.buala.org/pt/cidade/urban-africa-reflexoes-sobre-cidades-afri...
  • 6. Isabel Raposo. http://www.buala.org/pt/cidade/notas-em-torno-da-africa-urbana-de-david-...
  • 7. Achille Mbembe, On the Postcolony (University of California Press, 2001), 9.
  • 8. AbdouMaliq Simone, For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities (Duke University Press, 2004).
  • 9. Rem Koolhaas, Lagos, in Mutations, ed. Rem Koolhaas and Hans-Ulrich Obrist (Actar, 2000); Rem Koolhaas, Fragments of a Lecture on Lagos, in Documenta 11_Platform 4, ed. Enwezor et al, 2002.
  • 10. Achille Mbembe and Janet Roitman, Figures of the Subject in Times of Crisis. Public Culture 7(2), 1995; AbdouMaliq Simone, On the Worlding of African Cities, African Studies Review 44(2).
  • 11. Michael Watts, Baudelaire over Berea, Simmel over Sandton? Public Culture 17(1), 2005: 184.
  • 12. Michael Watts, The Shock of Modernity: Petroleum, Protest, and Fast Capitalism in an Industrializing Society, in Reworking Modernity: Capitalisms and Symbolic Discontent, ed. Allan Pred and Michael Watts (Rutgers University Press, 1992).
  • 13. Watts, Baudelaire over Berea, Simmel over Sandton?: 189.
  • 14. Michael Watts, Development and Governmentality, Singapore Journal of Tropical Geography 24(1), 2003: 20.
  • 15. Watts, Baudelaire over Berea, Simmel over Sandton?: 190.
  • 16. Sarah Nuttall and Achille Mbembe, A Blasé Attitude: A Response to Michael Watts, Public Culture 17(1), 2005.

por Ricardo Cardoso
Cidade | 14 Setembro 2011 | África, cidades africanas, urbanismo, urbanização