Revolução e cinema: o exemplo português - chamada de trabalhos

Colóquio internacional

INHA, Paris, 10 e 11 de Março de 2014

Fundação Gulbenkian, Paris, 12 de Março de 2014

Há muito que a História (relato mítico da Humanidade sobre si própria) deixou de ser o seu espelho verosímil.

Eduardo Lourenço

“Retornar”

Por ocasião do quadragésimo aniversário da Revolução de Abril, o colóquio internacional “Revolução e cinema: o exemplo português” pretende debruçar-se sobre a representação cinematográfica do acontecimento desde 1974 até à actualidade. A palavra “revolução” é aqui entendida no sentido primeiro e etimológico de “rotação”, “giro” e “retorno”.

Retornar ao passado, revisitar a memória, nas imagens de 48 de Susana de Sousa Dias. Histórias de prisão e tortura são contadas neste filme através de fotografias antropométricas da PIDE e de testemunhos de antigos presos políticos do Estado Novo, de vozes que vêm da penumbra luminosa dos arquivos, vozes hesitantes de um presente que não esquece.

A palavra “retornar” é entendida também na acepção de “voltar em sentido contrário”, à semelhança do que em 48 acontece com as imagens do inimigo: as imagens da ditadura são convertidas em formas de expressão de uma memória persistente e activa, dando consistência ao indizível e ao invisível, ao tempo complexo da história.

Retornar, por fim, no sentido de “voltar atrás”, de não cessar jamais de propor novos tratamentos visuais dos motivos do mundo tal como é vivido e apreendido.

Revolução, poder e criação

Fotograma do filme colectivo 'As Armas e o Povo', 1975Fotograma do filme colectivo 'As Armas e o Povo', 1975

O cinema da Revolução de Abril é herdeiro do Cinema Novo da década de 60, do cinema de uma geração de cineastas em ruptura com o conformismo vigente durante o Estado Novo. Entre o fim da década de 50 e o início da década de 60, são vários os elementos que contribuem para a emergência do Cinema Novo. O primeiro desses elementos é o aparecimento de uma nova geração de cinéfilos formada nos cineclubes e pela crítica cinematográfica. Alguns desses jovens recebem bolsas de estudos para frequentar escolas de cinema no estrangeiro, como o IDHEC (hoje, a Fémis), em Paris, ou a London Film School, em Londres. António da Cunha Telles, uma das figuras mais importantes dessa geração, produziu os primeiros filmes do Cinema Novo. Em 1968, é publicado um texto fundamental: “O Ofício do Cinema em Portugal”. Depois de cerca de um ano de negociações, a Fundação Calouste Gulbenkian decide financiar a primeira cooperativa de cineastas portugueses, o Centro Português de Cinema (CPC). As primeiras produções dos “anos Gulbenkian” estreiam entre 1971 e 1972. A criação da primeira cooperativa de realizadores e as suas produções, quase sempre censuradas ou mal recebidas durante a Primavera Marcelista, são sintomáticas quer da desagregação do regime, quer da possibilidade - é certo que requerendo uma grande dose de discrição, abnegação, organização e unidade - de produzir imagens de outro tipo, logo, de criar outro cinema.

A conquista da liberdade de criação travava-se, então, através de actos, mas também através de imagens. Os cineastas da revolução eram maioritariamente militantes ou autores engajados, sensíveis à situação sociopolítica do País. Os filmes da revolução surgem dentro de estruturas específicas - cooperativas de cineastas, como a Cinequipa, a Cinequanon ou o Grupo Zero -, algumas delas fundadas antes do 25 de Abril. Entre Abril de 1974 e Novembro de 1975, mais de cem filmes são realizados. Depois do PREC, a produção de obras cinematográficas dentro desta linha de continuidade persiste - é o caso de Bom Povo Português, formidável filme de montagem de Rui Simões, finalizado em 1980.

“…um cinema do deslizamento para a frente”

Um tal trabalho da imagem, capaz de perturbar o regime e os seus dogmas, leva-nos a destacar o poder político do cinema. A análise da eficácia política do cinema feita por Dominique Noguez poderia ser aplicada ao cinema português do período compreendido entre 1970 e a Revolução de Abril. Em Le Cinéma autrement, Noguez considera que a eficácia política do cinema é sempre limitada, na medida em que depende do público visado. Entendendo que a eficácia política deve passar em primeiro lugar pela militância quotidiana, Noguez define os seus quatro modos. Os filmes do Cinema Novo português censurados pelo regime poderiam aproximar-se do quarto modo, o cinema prospectivo. “É um cinema do deslizamento para a frente”, escreve o autor, isto é, um cinema premonitório. Não se trata, todavia, de outorgar retrospectivamente ao cinema uma força política que não estivesse nele já contida. A emergência do cinema da revolução não é, portanto, fruto de uma modificação brutal do campo de possibilidades, resultando mais bem de uma dinâmica latente, crescente, convulsiva. Num artigo de síntese publicado em 2004, Lauro António sublinha que o cinema português pré-revolucionário é um claro índice da deterioração do regime: filmes como O Mal-Amado (1973) de Fernando Matos Silva, Brandos Costumes (1974) de Alberto Seixas Santos ou Sofia e a Educação Sexual (1973) de Eduardo Geada eram pura e simplesmente “impensáveis” antes da morte de Salazar.

Representar, actualizar e reconfigurar o real

O cinema português contemporâneo defronta-se com a questão de como representar a revolução, de como reactivar o tempo da revolução no presente, presentificando-a, arrancando-a ao distanciamento do passado e do arquivo e conferindo força política objectiva e crítica às imagens do 25 de Abril. Se a travessia da história constitui uma operação crítica por excelência e se o método historiográfico comporta necessariamente um processo de identificação com os acontecimentos do passado, para os cineastas portugueses, sobretudo para aqueles que cresceram ou nasceram depois do 25 de Abril, a existência de um tão vasto arquivo e de um corpus cinematográfico extraordinário coloca o problema mais além de qualquer historicismo.

Está em questão, em primeiro lugar, trabalhar a história da revolução, as suas memórias vivas, mas igualmente representar o passado através da sua genealogia cinematográfica; é o que faz, por exemplo, Ginette Lavigne, que viveu em Lisboa durante o PREC, em A Noite do Golpe de Estado (2001), onde Otelo Saraiva de Carvalho reconstitui, em estúdio, as manobras de coordenação estratégica da noite de 24 para 25 de Abril de 1974. A reconstituição é aqui trabalhada como figura da descontinuidade e do anacronismo.

A memória da Revolução dos Cravos continua, portanto, a alimentar o imaginário cinematográfico de diversos cineastas e artistas portugueses e estrangeiros. No entanto, a ligação entre o cinema português dos anos sessenta e setenta e o cinema dos anos que se seguem é um terreno que permanece quase inexplorado.

Para Paul Ricœur, “repensar deve ser uma forma de anular a distância temporal”. Repensar a revolução equivaleria então a torná-la presente, viva, aproximando o presente e o passado e interrogando os efeitos da passagem do tempo sobre as imagens, as narrativas e o próprio cinema, enquanto dispositivo histórico. Quase 40 anos depois da Revolução de Abril, é urgente revisitar a sua história, analisar os seus traços, mitos e memórias, determinar a forma como a sua genealogia atravessa o cinema português. Num momento de crise económica e política profunda em Portugal, crise que põe em causa os fundamentos da democracia criada pelo 25 de Abril, voltar a essa herança poderá, talvez, fazer do presente a força inaugural de uma história por vir.

Tomando o cinema da revolução como ponto nodal e marco histórico maior, que elos, além dos referenciais e cronológicos, unem o cinema português pré-revolucionário ao cinema da revolução e ao cinema posterior? Em que sentido é o cinema português atravessado e irrigado pela ideia de “revolução”?

Raquel Schefer & Mickaël Robert-Gonçalves


Modalidades de candidatura

Assinalando o quadragésimo aniversário da Revolução de Abril em Portugal, o colóquio tem por objectivo reunir uma série de intervenientes, investigadores e cineastas em torno da questão da representação cinematográfica da revolução e da persistência das suas formas e figuras no cinema português contemporâneo.

A apresentação dos trabalhos terá lugar em apresentações orais de vinte minutos, seguidas de dez minutos de discussão. Recomenda-se que a reflexão teórica seja elaborada a partir de objectos de estudo concretos e claramente identificados, segundo os seguintes eixos temáticos:

1. A representação cinematográfica do acontecimento

2. O pensamento da revolução pelo cinema português: consequências estéticas da Revolução de Abril

3. Contexto de produção; políticas de difusão

4. Memória e reescritas fílmicas

5. O cinema político português contemporâneo: continuidade e ruptura

As propostas de trabalhos devem ser enviadas até ao dia 15 de Janeiro de 2014 para a direcção de email: colloquecinemaportugais@gmail.com

Deverão ser redigidas em português, francês ou inglês e conter o título da comunicação, um abstract (500 palavras), uma bibliografia indicativa e uma nota biográfica (150 palavras) indicando a instituição de afiliação. As propostas recebidas serão examinadas pela comissão cientifica. Os candidatos serão informados da decisão dessa comissão até ao dia 1 de Fevereiro de 2014. Os trabalhos apresentados serão publicados após o colóquio.

Comité científico

Nicole Brenez (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3), Teresa Castro (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3), Susana de Sousa Dias (realizadora, Universidade de Lisboa, Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa), Raquel Schefer (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3), Philippe Dubois (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3), José Filipe Costa (realizador), Benjamin Léon (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3) e Mickaël Robert-Gonçalves (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3).

Parceiros

Institut de recherche sur le cinéma et l’audiovisuel (IRCAV, Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3) - Institut National d’Histoire de l’Art (INHA) - Fundação Calouste Gulbenkian (delegação em Paris) - Festival Cinéma du Réel - Groupe de recherche en histoire et esthétique du documentaire (GRHED - Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne) - Associação de Investigadores da Imagem em Movimento (AIM, Portugal).

por Raquel Schefer
Afroscreen | 27 Outubro 2013 | 25 de abril, cinema, cinema novo, revolução