Cinema afro-futurista - programa

Movimento interdisciplinar, o Afro-futurismo combina fundamentos tecno-científicos com elementos das cosmologias africanas para forjar uma estética singular e inventiva e interpelar criticamente a história de África e as suas construções distópicas. Ao associar, segundo Kodwo Eshun, uma perspectiva “crítica” e uma vertente “utópica”, o Afro-futurismo recupera “as histórias de contra-futuros criadas num século hostil à projecção afro-diaspórica” e gera instrumentos para a transformação política do presente. Além de uma estética, o Afro-futurismo é também um programa político que articula as dimensões espacial (a deslocação através de “zonas de contacto” transculturais) e temporal (configurações temporais e diegéticas complexas, em que o anacronismo e a prefiguração do futuro questionam a causalidade e a linearidade das narrativas da modernidade ocidental).

Reunindo um conjunto de filmes  — quatro curtas- e médias-metragens — expressivos da estética e do programa político do Afro-futurismo, o evento oferece um brevíssimo panorama do cinema afro-futurista. Water Ritual #1: An Urban Rite of Purification (1979), filme experimental de Barbara McCullough, cineasta ligada ao movimento L.A. Rebellion, é atravessado pela tensão entre modernismo (o modernismo apocalíptico da paisagem urbana de Los Angeles) e primitivismo (a iconografia e o ritual). As transições e as sobreimpressões, explorando um princípio de liquidez, evocam os fluxos e as estruturas transnacionais do “Atlântico Negro”. I & I: An African Allegory (1979), de Ben Caldwell, exemplifica também a estética cinematográfica negra do movimento L.A. Rebellion. Definido como um “filme-transe” por David James, coloca em tensão a cosmologia Yorubá e as estruturas do capitalismo tardio através de formas experimentais e de um sistema de transições temporais, espaciais, materiais e mediáticas (entre a imagem em movimento e a fotografia, incluindo trabalhos de Diane Arbus). Se o título evoca a convergência entre as posições enunciativas, perceptivas e cognitivas do “eu” e do “tu” na cultura Yorubá, as associações visuais alegóricas visam figurar a Passagem Atlântica e a diáspora africana nos EUA.

Tomando como motivo central o cabelo afro, Beautiful People Know, da artista angolana Keyeuza, estabelece um diálogo intertextual com a história da videoarte para problematizar a relação entre identidade e alteridade e fazer do corpo feminino negro um dispositivo político de profanação interseccional das categorias eurocêntricas e dos saberes instituídos. Já Kbela (2015), de Yasmin Thainá, último filme do programa, desconstrói os estereótipos associados à representação audiovisual da população negra através da adopção de uma estética cinematográfica afro-brasileira, resultante da combinação de elementos afro-futuristas com a reinvenção de motivos e formas do cinema moderno brasileiro, do barroquismo de Glauber Rocha ao psicodelismo pop de um certo Cinema Marginal. O filme baralha as distâncias e aproxima categorias opostas por meio de personagens arquetípicos e de procedimentos estéticos e narrativos que suprimem também toda separação rígida entre a esfera material e a esfera ritual. Tal como Beautiful People Know, Kbela insiste na importância do cabelo afro como instrumento de empoderamento e de luta contra as convenções “ocidentais” de beleza.

A projecção será seguida de uma conversa entre Ana Balona de Oliveira (Instituto de História da Arte, Universidade Nova de Lisboa), Maíra Zenun (Universidade Federal de Goiás), Michelle Sales (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, Universidade de Coimbra e Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Raquel Schefer (Centro de Estudos Comparatistas, Universidade de Lisboa e Universidade do Cabo Ocidental). Ana Balona de Oliveira abordará a estética afro-futurista, enquanto Maíra Zenum se debruçará sobre a sua produção artística, a estética de auto-representação das culturas negras africanas e o cinema negro africano e brasileiro. Michelle Sales apresentará a sua investigação sobre cinema pós-colonial e Raquel Schefer, programadora do evento, centrar-se-á no seu estudo do movimento L.A. Rebellion.

Cinema afro-futurista 

Hangar — Centro de Investigação Artística, Lisboa

Sábado, 14 de Dezembro de 2019

Projecção seguida de conversa 

Projecção, 18h30 

Water Ritual #1: An Urban Rite of Purification, Barbara McCullough, 1979, EUA, 6 min.

I & I: An African Allegory, Ben Caldwell, 1979, EUA, 32 min.

Beautiful People Know, Keyezua, 2017, Angola, 15 min.

Kbela, Yasmin Thayná, 2015, Brasil, 22 min.

Conversa, 20h

Ana Balona de Oliveira (investigadora e curadora IHA/UNL), Maíra Zenun (investigadora e artista, UFG), Michelle Sales (investigadora e curadora, CEIS20/UC, UFRJ), Raquel Schefer (investigadora e realizadora, CEC/UL, University of the Western Cape).

por Raquel Schefer
Afroscreen | 4 Dezembro 2019 | afro-futurismo