Sonhar acordada - prefácio de Tiago Rodrigues a "O que temos a ver com isto? O papel político das organizações culturais?" de Maria Vlachou

O conjunto de textos que dá corpo a este livro é uma escolha a partir de uma colecção bem mais vasta em que Maria Vlachou se dedicou a esse misterioso gerúndio inglês que é musing. É o equivalente a meditar ou ponderar e a autora fá-lo com a propriedade de uma larga experiência em gestão e comunicação cultural, reconhecida também como uma das mais importantes referências em acessibilidade e inclusão nesta área. Maria Vlachou pensa sobre a Cultura, as suas organizações e práticas, com a coragem de partilhar a complexidade dos problemas, desafiando-nos a participar de um diálogo profundo que possa gerar novas comunidades em vez de nos aquartelarmos nas nossas perigosas (embora confortáveis) certezas. É aquilo a que a autora chama “cuidar do desconforto”, quando defende que as organizações culturais, sejam museus ou teatros, devem ser “o espaço para encontrar o outro” e também o lugar onde as pessoas se sintam à vontade com as nuances e a complexidade. Quando vivemos em sociedades onde cada vez mais caminhamos para um conforto solitário e mediado por um mundo digital onde podemos cancelar a alteridade, Maria Vlachou propõe uma ideia dos espaços culturais como o lugar onde podemos aprender a sentir-nos confortáveis com o desconforto. Este paradoxo poético e político é todo um programa de serviço público de Cultura que este livro esboça e que qualquer pessoa atenta às questões culturais deve descobrir. 

Musing também pode ser traduzido como o acto de contemplar. É o que fazemos quando olhamos para uma obra de arte num museu, numa mágica suspensão do tempo, em que deambulamos distraidamente nos nossos pensamentos. Com estes textos, Maria Vlachou contempla as instituições culturais, com particular atenção para os museus, com um olhar clínico, minucioso e crítico, que nos permite debater publicamente o que poderia ficar apenas nos bastidores das políticas culturais e acompanha essa observação daquilo que poderíamos chamar uma criatividade política. Quer isto dizer que, nestes textos, quase todos os problemas apontados às práticas habituais das instituições culturais são acompanhados por alternativas, soluções, caminhos imaginados para um próximo capítulo em que as casas de Cultura estejam mais à altura dos acontecimentos e do seu contributo para uma sociedade mais justa, mais livre e mais criativa. Maria Vlachou parte de episódios relacionados com instituições culturais ou declarações de responsáveis na área para se lançar em reflexões que, inevitavelmente, tocam temáticas prementes como a inclusão, a diversidade ou a acessibilidade. Em diversos textos, a autora sucede em fazer a ponte entre a existência aparentemente “intemporal” das instituições culturais e a actualidade nacional ou mundial, como seja a guerra na Ucrânia, o movimento Black Lives Matter ou a pandemia. É nesse curto-circuito entre o sentido dos espaços da cultura e os movimentos profundos e urgentes da nossa sociedade que Maria Vlachou opera o seu pensamento de forma mais eficaz. 

Talvez a mais ajustada tradução do verbo musing seja, afinal, a de sonhar acordada. Nesta colecção de crónicas, a autora sonha acordada. Fá-lo de forma lúcida e, ainda assim, empenhada em utopias. Com os seus textos, permite-nos, aliás, reconciliar a lucidez e a utopia, reivindicando a possibilidade de que estas duas noções sejam compatíveis. Desta forma, Maria Vlachou devolve sentido político às instituições culturais, relembrando-nos do modo como os lugares da Cultura e das Artes podem ser alicerces de novas comunidades, ferramentas para reinventar os significados, possíveis alavancas de mudança. Acima de tudo, este livro tem a coragem de acordar as organizações culturais do torpor da neutralidade na qual muitas vezes se escudam, como se quisessem esconder-se do mundo. “Combater a noção de neutralidade e ajudar as organizações culturais e quem trabalha no sector cultural a assumir posições políticas” deveria ser, segundo a autora, uma das prioridades de quem define e põe em prática políticas culturais. Trata-se, afinal, de devolver a ideia de missão às organizações culturais, reafirmando o seu sentido democrático, mas também de reivindicar a noção de política como o oxigénio que todas as pessoas podem respirar no espaço público. A política como uma coisa nossa, uma coisa pública. A política como uma parte vital do que acontece quando público e obra de arte se encontram. A política como luz natural dos espaços culturais que pode indicar caminhos possíveis para futuros desejados. 

Sinopse

Política é a arte de vivermos juntos, em sociedade. Nas palavras de Deborah Cullinan, CEO do Yerba Buena Center for the Arts, “A matéria-prima de nossa democracia é a criatividade individual e a imaginação colectiva” e considera que as nossas organizações culturais devem mostrar o caminho para o reencontro com alguns dos ideias básicos da vida numa sociedade democrática.

O “político” confunde-se muitas vezes com o “partidário”, criando hesitações entre as organizações culturais. Ao mesmo tempo que afirmam defender valores, promover o conhecimento, cultivar o pensamento crítico, contribuir para a justiça e a coesão social, refugiam-se numa suposta neutralidade. Programam “apesar” das comunidades envolventes e do que nelas acontece. Remetem-se para um lugar de irrelevância, não participando efectivamente (e afectivamente) na vida das pessoas.

Face ao posicionamento apolítico e distanciado de muitas organizações culturais, os textos reunidos neste livro reflectem sobre missão, liderança, valores, diversidade e inclusão no sector cultural. O livro analisa diversos casos, em diferentes países, e defende que os espaços culturais podem e devem ser espaços onde a política acontece, sem oportunismos nem populismos, com respeito e amor pela vida, com curiosidade e sabendo assumir algum risco. Para que cada pessoa possa dizer, tal como o S. José Brochado (participante do festival MEXE), “Estamos cá, estamos vivos, é uma cidade diferente que queremos”.

 

Pré-publicação de alguns excertos no Buala.

 

Ficha técnica

Título: O que temos a ver com isto? O papel político das organizações culturais

Autora: Maria Vlachou

Prefácio: Tiago Rodrigues

Editora: Tigre de Papel e Buala

Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian

Número de páginas: 168

Formato:11cm x 17cm

ISBN:  9789895342945

Contacto: Tigre de Papel | geral@tigredepapel.pt

por Tiago Rodrigues
A ler | 15 Maio 2022 | cultura, desconforto, instituições, pensamento