Sandra Lemos: “Para mim, escrever é quase como um ato de desdobramento”

Ilustração de Noélia MonteiroIlustração de Noélia Monteiro

O testemunho de Sandra Lemos, nascida em Benguela, Angola, em 1967, faz parte de um projeto independente de investigação, iniciado em 2018, com o objetivo de recolher testemunhos de mulheres naturais de Angola que por várias razões e circunstâncias tiveram que deixar o seu país natal. A recolha de testemunhos tem como finalidade contribuir para registar histórias de vida de mulheres escritoras sem muita visibilidade no mercado literário, nas feiras do livro e atividades similares e no meio académico. Outro fim da investigação é encorajar outros a fazerem o mesmo para homens e mulheres das diferentes diásporas.

O complexo processo de descolonização de Angola, iniciado após a Revolução de 1974 em Portugal, forçou a entrevistada e a sua família a deixar a terra natal e a partir para Portugal em 1975, de onde seguiram para o Brasil, país onde Sandra Lemos vive e concluiu a graduação e o doutoramento em Literatura e Crítica Literária. Este testemunho foi recebido durante o mês de maio de 2021, altura em que o contexto político angolano já tinha mudado consideravelmente, uma vez que a guerra civil, o sistema de partido único e o regime do apartheid na África do Sul – que teve repercussões na política de Angola – passou a ser um assunto do passado.

Sandra Lemos: Os meus pais nasceram em Angola, no entanto, os meus avós paternos e maternos nasceram em Portugal. O meu pai nasceu no Bongo e a minha mãe na Ganda. O meu avô materno nasceu em Alijó e a minha avó nasceu nas Caldas da Rainha. Os meus avós paternos nasceram no Minho.

O meu primeiro contacto com a leitura deu-se com as histórias que o meu avô me contava desde a primeira infância. A escrita surgiu da curiosidade que tinha ao tentar entender os símbolos, para mim mágicos, que estavam escritos nos livros infantis.

Os livros que mais me marcaram foram Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Decamerão, de Boccaccio e Guardian of the Dawn, de Richard Zimler. A escrita de Claustro1 surge no meio de muitos questionamentos existencialistas e é uma narrativa que nasce quase como uma forma onírica. A narrativa Romance Acidental2 surge quando caminhava por uma avenida tumultuosa de São Paulo e vi um sujeito que, no meio-fio da calçada, parecia indeciso sobre sua vida. Ali parei e observei-o por um tempo, assim como todo o movimento dos transeuntes.

Os contos que compuseram o livro Estações3 [vencedor do Troféu Literatura Clarice Lispector 2021, como melhor livro de contos] foram escritos ao longo de dois a três anos, quase como um conhecimento e reconhecimento do processo de escrita e da formação do escritor. O Romance Acidental em cinco meses e o Claustro demorou cerca de quatro meses. Não partilhei com ninguém que estava a escrever. A fonte de inspiração para a minha narrativa é a vida, os seus personagens e as suas experiências. Para mim, escrever é quase como um ato de desdobramento. Torno-me outra, sem deixar de ser eu. A escrita, em si, é um ato de liberdade. Conciliar a escrita com a rotina da vida é sempre difícil. A minha opção é sempre escrever durante a noite. A sensação de ver um livro na mão de um leitor é incomensurável, pois o leitor apropria-se da história e é quem pode mostrar o seu poder. O feedback dos leitores com quem tive contacto foi muito bom, mostraram muito interesse em saber mais sobre as personagens e sobre o modo criativo.

Entrevista a Sandra Lemos 13 de novembro de 2016

Excerto4

«Naquele momento entendi o que ela sempre me dizia: “Te amo tanto que dói.”.Dói a sensação da perda, a incapacidade de acabar com o sofrimento, de mudar o destino, moira. Seu fim foi como muito de sua vida, sozinha. Éramos poucos os presentes a dizer adeus; vovó, que sentia dor até na carne, de tanto que sua alma sofria; eu, o padre Domenico, alguns colegas da catequese, duas vizinhas, tia Helena e o senhor Firmino. Vi lágrimas escorrerem dos olhos de tia Helena, acho que eram lágrimas de Ágape, de um amor caridoso, que se reconhece no outro.

Ela devia ter medo de um dia acabar assim, afinal é destino certo, para muitas mulheres, o abandono.  Suas exéquias fúnebres, presididas pelo padre, foram quase sem audiência.  Vivi com vovó, um tempo não suficiente para costurarmos nosso amor e sentimentos, até que ela adoeceu e me disse que iria se encontrar com mamãe e com Deus.

Enquanto estivemos juntos, no final da tarde, sentávamo-nos na sala, ela costurava minhas camisas ou tricotava e eu lia os textos dos apóstolos; às vezes, ela me pedia para tocar as músicas que mamãe gostava de ouvir. Eu, até, tentava me aproximar daquele piano, mas era como tocar as mãos de meu pai, não conseguia. Ainda tinha terrores noturnos, ainda me deitava com aquela mulher, conhecia-a como nenhuma outra, já que nunca havia despido ou me deitado com ninguém. O mais perto que havia chegado do corpo de uma mulher foi dos pequenos limõezinhos da Lara. Ela era uma violação intencional da minha imaginação inconsciente.

- Um dia você conseguirá perdoar, Bentinho. Tenha fé.

- Vó, tenho fé, mas ainda não o suficiente para perdoar o que ele fez com mamãe.

- E o que fez com você?

- Estou vivo, não fez nada comigo.

- Coisa que não pode fazer é mentir.

- Desculpe, ainda não consigo.

E mais dois anos se passaram, até que também me despedi dela, quanta dor. Jurei que elas seriam as duas únicas mulheres a quem iria amar na vida, pelas quais sofri, quase perdi meu caminho, minha fé; blasfemei, vituperei, confrontei, neguei, enfrentei Deus e seu poder.  Um Deus que a certas horas não sabia se existia ou de que tipo era. Perguntei-lhe se aquilo era algum tipo de brincadeira, como podia permitir, se divertir com o sofrimento de seus filhos.

Muito de mim já estava ali em semente, só não estava preparado para compreender.

Esqueci que estávamos todos destinados à derradeira partida e talvez ao seu encontro. Ceguei-me. Fui para a missa, confessei-me, pedi perdão, decidi entrar definitivamente para a vida do sacerdócio. Vi-o ao longe, no cemitério, na despedida de dona Benvinda, desta vez nem se aproximou. Passou a enviar os envelopes de dinheiro, a mesma quantia que dava antes, pelo correio, para Bento Alcântara Pacheco. Ainda vivi ali naquela casa por mais um ano e meio, talvez, para tentar ficar perto delas, até que entendi que delas o que havia sobrado estava em mim. Guardei nossas fotos, um lenço de linho da mamãe, um terço de prata da vovó, o resto doei para a igreja. Só restaram os móveis e meu piano, estava pronto para partir.

Coloquei a minha maleta ao lado do piano, passei meus dedos por suas teclas, fechei-o, sentei-me, pus a mão sobre o papel, respirei fundo, minha respiração deu de encontro com a mágoa que povoava minhas entranhas; não encontrei outro caminho. Parei um pouco, escrevi-lhe uma carta informativa.

Belo Horizonte, 18 de janeiro de 1961

Ao Senhor Firmino Pacheco,

Informo que a casa na qual eu, Bento Alcântara, minha mãe e avó, falecidas, vivíamos, está à sua inteira disposição para fazer bom uso dela e para seu inteiro benefício, já que não tem a quem deixar como herança. Com exceção dos pertences das falecidas, todos os outros bens encontram-se no local. A chave da casa foi deixada com a vizinha, Dona Aurora. Que Deus o perdoe.

Bento Alcântara

“Já estava morta minha adolescência, má e abominável, clamava violentamente o meu coração contra todos estes meus fantasmas e, com um único golpe, esforçava-me por afugentar da visão do meu espírito o bando da imundície que esvoaçava em torno de mim”.

No dia que fiz a mala, para cruzar o oceano, guardei o mesmo lenço de linho, o terço de prata, as fotos das quatro, a aliança dela e o paninho da estrelinha. Cruzei minhas fronteiras na esperança de algo encontrar do outro lado, já que a fronteira não é onde algo termina, mas onde outro começa.»

*Noélia Monteiro: Nasceu em Pombal, Portugal, em 1979. Licenciada em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha. Professora profissionalizada no Ensino de Artes Visuais pela Escola Superior de Educação de Leiria e com formação especializada em Educação Especial pela mesma instituição. Tem participado em vários projetos artísticos.

  • 1. Sandra Lemos, O Claustro, Lisboa: Chiado Books, 2018, 194 páginas.
  • 2. Sandra Lemos, Romance Acidental, Lisboa: Chiado Books, 2016, 202 páginas.
  • 3. Sandra Lemos, Estações, Lisboa: Chiado Books, 2015, 136 páginas.
  • 4. Sandra Lemos, Claustro, Lisboa: Chiado Books, 2018, pp. 36-39.

por Carlos Alberto Alves
A ler | 11 Novembro 2021 | escrita, leitura, Literatura, Sandra lemos