Pré-publicação | Afrotopia

Capa - Rui SilvaCapa - Rui Silva

1.ª Edição 2022 | Antígona

Tradução: Marta Lança

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Pensar África

Abordar uma reflexão sobre o continente africano é tarefa árdua, tantos são os tenazes lugares‑comuns, estereótipos e pseudocertezas que, como um halo de neblina, escondem a sua realidade. Desde os anos 1960, no alvorecer das independências africanas, África tem sido prontamente caracterizada pela vulgata afro‑pessimista como um continente malparido, à deriva; como um monstro moribundo cujos derradeiros sobressaltos anunciavam o fim à vista. Os funestos presságios a respeito do seu futuro sucederam‑se ao ritmo das convulsões e crises por que o continente passou. No auge da pandemia da sida, os augúrios chegaram a prever a extinção pura e simples da vida no continente africano. Mesmo que este reservatório de misérias se dissolvesse em consequência de uma calamidade sanitária, no fundo, nada garantiria que a restante humanidade se sairia melhor. É um eufemismo falar‑se da violência simbólica com que o destino de centenas de milhões de indivíduos foi encarado, tratado, representado, inscrito no imaginário colectivo enquanto fracasso, défice, desvantagem, ou até deficiência e defeito congénito, pela comunicação social e por uma abundante literatura.

Esta propensão dos outros para tornar o continente africano um espaço de projecção dos seus fantasmas é antiga. Já na alta Antiguidade, Plínio, o Velho, dizia que «de África chega sempre algo novo». Enquanto escrevia a sua História Natural, referia‑se às estranhas espécies animais que o continente nunca parava de revelar ao mundo romano, que o acometia pela costa mediterrânica. Nos séculos das conquistas, exploradores e aventureiros empossaram esta misteriosa África com os seus mais originais e escabrosos fantasmas. O continente das maravilhas tornou‑se para alguns o tubo de escape de uma selvajaria que as nações civilizadas reprimiam nos seus limbos. Absolutamente tudo era permitido neste continente: pilhagens, destruição de vidas e de culturas, genocídios (Hereros), violações, experiências científicas, todas as formas de violência por lá conheceram, sem sobressalto, o seu apogeu.

Mais recentemente, graças a um vento que parece ter virado, emergiu uma retórica de euforia e de optimismo. Doravante, o futuro seria africano. O continente vem progredindo em termos de crescimento económico, e as perspectivas são boas. Os economistas acreditam que África será o próximo destino dos capitais internacionais, já que ali serão mais bem remunerados do que em qualquer outro lugar. Tornar‑se‑á, assim, o espaço de um crescimento intenso que parece estar a perder fôlego na China e nos BRICS. Com a ajuda dos recursos naturais e matérias‑primas disponíveis, o continente africano será o futuro Eldorado do capitalismo global. Um suave presságio de prosperidade em tempos de tempestade.

Também nesse aspecto ganham expressão os sonhos produzidos por outros, no decurso de uma noite na qual os principais interessados não foram convidados para o devaneio colectivo. A prosperidade é certamente um desejo partilhado pelos povos. Porém, é menos certo que todos partilhem a relação com a economia de estilo mecanicista, racionalista, que submete o mundo e os seus recursos à exploração frenética em benefício de uma minoria, desequilibrando as condições de vida.

Uma vez que o continente africano é e será o futuro, esta retórica diz, em traços gerais, que ele não é, que existem lacunas na sua sintonia com o tempo presente. Os termos de intensificação com os quais o revestimos num tempo por vir indicam a falta actual. Na realidade, a deslocação da sua presença para o futuro perpetua o julgamento deficiente do qual é alvo. Milhões de pessoas ouvem diariamente, de distintas formas, que a vida que levam não é digna de apreço. Alguns africanos, ao adoptarem esta terminologia impressa pelo economismo e pela abstracção estatística, parecem ter aderido a uma perspectiva invertida do humano, que consagra a primazia da quantidade sobre a qualidade, do ter sobre o ser; a sua presença no mundo é avaliada apenas em pontos do PIB ou em peso no comércio internacional.

Os discursos actuais sobre África são dominados por esse duplo movimento: a fé num futuro radiante e o desânimo perante um presente que parece caótico, atravessado por diversas convulsões.1 Neste contexto, é grande a tentação de ceder ao catastrofismo ou a um optimismo ingénuo, o seu duplo invertido. Por outro lado, é certo que as crises que o continente africano atravessa são um sinal de que está nas vésperas de um parto. Dará à luz um anjo ou um monstro? O claro‑escuro sob o qual nos movemos não permite por ora adivinhar.

Porém, mais do que de um défice de imagem, o continente africano sofre de um défice de pensamento e de produção das suas próprias metáforas de futuro. A ausência de uma teleonomia2 autónoma e endógena, resultante de uma reflexão própria sobre o seu presente, o seu destino e os futuros que procura. Desde sempre as sociedades humanas se transformam de modo orgânico, enfrentam os desafios que se lhes impõem, respondem‑lhes, sobrevivem ou perecem.

Nessas condições, por que motivo se deve articular um pensamento sobre o presente e o futuro do continente africano? Porque as sociedades se estabelecem, antes de mais, nos seus imaginários.3 Estes são as forjas de onde emanam os modos de alimentar e de aprofundar a vida, elevando a aventura social e humana a outro patamar. As sociedades evoluem também porque se projectam no futuro, pensam as condições da sua perenidade, transmitindo com este fim um capital intelectual e simbólico às gerações seguintes, levam a cabo um projecto de sociedade e de civilização, constroem uma visão do homem e definem as metas da vida social. Importa, portanto, que nos furtemos a custo de uma dialéctica da euforia ou do desespero e que levemos avante um esforço de reflexão crítica sobre nós, sobre as nossas próprias realidades e sobre a nossa situação no mundo: pensarmo‑nos, representarmo‑nos, projectarmo‑nos. Em primeiro lugar, assumirmos o continente tal como ele é neste preciso momento da sua evolução histórica e tal como séculos de relações de forças, dinâmicas internas e externas conjugadas o moldaram. Observando‑o tal como é, e não como deveria ser, libertamos os arcanos das suas dinâmicas profundas.

Pensar África é caminhar numa madrugada incerta, ao longo de um caminho balizado, onde o caminhante tem de estugar o passo para apanhar o comboio de um mundo que parece ter partido há alguns séculos. É desbravar uma floresta densa e espessa. É um percurso entre a bruma; um lugar impregnado de conceitos, de injunções que supostamente reflectem as teleologias sociais, um espaço saturado de sentidos.

As palavras‑chave «desenvolvimento», «emergência económica», «crescimento», «luta contra a pobreza», para alguns, são conceitos centrais da episteme4 dominante da época, a qual resulta, antes de mais, do sonho que, desde o século xv, o Ocidente exportou para o mundo, graças a uma vantagem tecnológica, não raramente à lei da bala, caso fosse necessário. Acima de tudo, foi empossando os imaginários colectivos da sua versão do progresso humano que venceu a batalha decisiva. É desse posto que tem de ser desalojado para dar lugar a outros possíveis.

Pensar num horizonte alargado é conceber a vida, o vivível, o viável, por outra via que não a da quantidade e da ganância. É pensar uma vitalidade levada à sua máxima expressão. Considerar a aventura social como aquilo que deve alimentar a vida, disseminá‑la, propagá‑la, fazê‑la crescer em qualidade, inscrevendo‑a numa perspectiva mais elevada. No dealbar da história humana, os africanos colonizaram territórios hostis, obtiveram uma primeira vitória contra a natureza ao estabelecer sociedades sustentáveis. Permitiram, assim, à humanidade sobreviver e tornar‑se perene.5 Este é o seu primeiro legado, antes da grande saída do continente do Homo sapiens. Hoje, um enésimo legado poderia ser o seguinte: nestes tempos de crise de sentido de uma civilização tecnicista, oferecer da vida social uma perspectiva diferente, que emana de outros universos mitológicos e que pede emprestado ao sonho comum vida, equilíbrio, harmonia e significado.

O Afrotopos é aquele lugar outro de África cuja vinda há que apressar porque realiza as suas potencialidades felizes. Fundar uma utopia não é de todo deixar‑se levar por um doce sonho, antes pensar espaços de realidade produzidos pelo pensamento e pela acção; é localizar os seus signos e as suas origens no tempo presente, com o intuito de os nutrir. A Afrotopia é uma utopia activa que se propõe encontrar na realidade africana os vastos espaços do possível e fecundá‑los.

O desafio consiste, assim, em articular um pensamento que incida sobre o destino do continente africano, examinando o político, o económico, o social, o simbólico, a criatividade artística, mas também identificando os locais onde se enunciam novas práticas e novos discursos e onde se elabora essa África que vem. Será necessário decifrar as dinâmicas em curso, detectar o surgimento de uma novidade radical, pensar o conteúdo dos projectos das sociedades, analisar o papel da cultura nessas mutações, levar a cabo uma reflexão prospectiva. Trata‑se também de conceber um projecto civilizacional que coloque o homem no centro das suas preocupações, propondo um equilíbrio mais forte entre as diferentes ordens: económica, cultural, espiritual; articulando uma relação de outra ordem entre sujeito e objecto, o arché e o novo, o espírito e a matéria. Para abrir horizontes e contribuir para a transformação positiva das sociedades africanas, urge levar a cabo este empreendimento. Esta é a responsabilidade primordial dos intelectuais, pensadores e artistas africanos. A ambição deste ensaio passa por delinear os contornos de tal projecto.

  • 1. Crises políticas multiformes, jihadismo, guerras civis, má governação, indigência material.
  • 2. Objectivo de natureza mecânica em curso na natureza. Por extensão, objectivo que os grupos ou os indivíduos perseguem.
  • 3. Cornelius Castoriadis, L’Institution imaginaire de la société, Paris, Seuil, 1975.
  • 4. A episteme é definida como o conjunto de conhecimentos científicos, do saber de uma época e dos seus pressupostos. Mais genericamente, constitui o modo de pensar e de se representar o mundo: um conjunto de valores e de crenças dominantes de uma época, que se estendem de forma ampla a toda a cultura. Ver Michel Foucault, Les Mots et les Choses (1966) [As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas, trad. António Ramos Rosa, Lisboa, Edições 70, 2005] e L’Archéologie du savoir (1968) [A Arqueologia do Saber, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Edições 70, 2014].
  • 5. John Iliffe, Les Africains. Histoire d’un continent, Paris, Flammarion, 2009 [1997].

por Felwine Sarr
A ler | 28 Julho 2022 | África, Afrotopia, afrotopos, Felwine Sarr, livro, pensar áfrica, pré-publicação, sociedade