Portugal-Angola: regressos e derivações das memórias plurais na sociedade portuguesa
Desde os anos 2000 que tem vindo a emergir em Portugal uma pluralidade de narrativas sobre o passado colonial, com uma multiplicação de registos ficcionais e autobiográficos da autoria de antigos combatentes na Guerra Colonial, bem como de desertores, refratários, anti-colonialistas e retornados. Estas memórias e pós-memórias analisadas no âmbito académico dos estudos literários e dos estudos pós-coloniais têm vindo a contribuir para a visibilidade da questão memorial no espaço público (1). Paralelamente, o conceito tem também vindo a ser mobilizado pela investigação dedicada à resistência à ditadura portuguesa (2): no conjunto, este processo reflete a emergência de uma multivocalidade e heterogeneidade histórica que ilustra a importância da “memória” como elemento fundamental da democracia (3).
Finalmente, na segunda década do milénio, a memória tornou-se uma questão pública. Associada a uma geração posterior a 1974 - pós-ditadura, pós-colonização, pós-Guerra Colonial, pós-repatriação e pós-PREC - ela foi muito além da questão da permanência colonial na sociedade portuguesa. Na realidade, esta geração reivindica uma nova relação da sociedade portuguesa com o seu passado recente, a construção de uma memória politizada e de uma política da memória. Isto revela uma alteração do sentido da memória como categoria analítica - a memória transforma-se numa categoria da prática social e política mobilizada pelos indivíduos e pelos grupos que observamos (como as reivindicações memoriais de ativistas afrodescendentes). Este fenómeno foi observado nas outras antigas nações imperiais da Europa, em particular a França, nos anos oitenta, em torno da questão do racismo e da discriminação sofridos por imigrantes pós-coloniais e pelos seus filhos, uma situação que originou, depois de 1990, uma série de leis da memória (4). Desde essa altura, a sociedade francesa é caracterizada por memórias concorrentes, uma situação que põe em causa a “eficácia social” da política de memória (5), procurando a reconciliação e a convivência democrática em sociedades com memórias concorrentes.
Em 2012, eu estava a partir para Luanda, Angola, para fazer investigação sobre a presença portuguesa naquele país, no contexto do fluxo migratório acelerado resultante da crise em Portugal. Com uma ampla cobertura dos media, esta saída de força de trabalho qualificada ressoava como uma ironia da história, sendo vista por alguns como uma inversão das relações de poder entre a antiga metrópole e uma antiga colónia. Em Lisboa, obtive de parentes e de colegas que tinham já regressado os contactos de pessoas “portuguesas” (6) que haviam partido para trabalhar e, nalguns casos, mesmo viver em Angola. Essas pessoas incluíam Nuno, um arquiteto expatriado desde 2006, mas também filho de retornados, uma parte da sua história que, como me disseram, se recusava a partilhar comigo.
Isto suscitava várias questões. Dada a abundância de testemunhos de vidas de portugueses em África e do seu “regresso” a Portugal depois de 1974 (romances, autobiografias, álbuns fotográficos, documentários feitos a partir de arquivos de família, peças de teatro, etc.) que estão a emergir no espaço público português, porque é que esta pessoa, que estava na casa dos quarenta e fora bem sucedido em Angola, casado com uma mulher brasileira que emigrara para Portugal e se juntou lá a ele, se recusava a falar sobre o passado? E o que era o seu passado? Que ligação estabelecia ele entre a sua presença em Angola e o facto de ter nascido neste território do qual saíra em criança? E que impacto é que a sua experiência presente tinha na sua relação com este doloroso passado familiar?
Finalmente, durante uma das nossas conversas em Luanda, Nuno teve muito para dizer sobre o seu passado como fora transmitido pelos seus pais e a forma como a sua presença em Angola reativara coletivamente memórias familiares, reforçando laços transgeracionais. Embora os seus pais sempre se recusassem a visitá-lo em Angola, outros casos mostram que estes “regressos” podem reativar laços físicos na geração de retornados adultos que nunca imaginou que iria regressar ao seu país perdido. O “regresso” de Nuno aos lugares da sua memória familiar, especialmente a casa onde nasceu, mas cuja porta permaneceu fechada para ele - “hoje ocupada por um casal angolano […] claro que eles ali estão em casa!” - lança luz sobre esta ambivalência: por um lado, o desejo muitas vezes inexprimível de regressar a um passado inalterado; por outro, a aspiração a encontrar um lugar próprio na sociedade angolana pós-colonial, longe do legado colonial.
Afigura-se necessário fazer aqui uma distinção entre “passado colonial” e “memória colonial”, uma vez que os testemunhos de indivíduos e famílias de retornados muitas vezes não se referem explicitamente à situação histórica - colonial -, mas mais às “vidas normais”, por vezes idealizadas, silenciando a experiência da dominação colonial. Contudo, algumas destas histórias também revelam que esses “regressos” a Angola por pessoas da geração de Nuno podem, na realidade, ser derivações críticas, quando, após o regresso a Portugal, originam atitudes críticas sobre a persistência colonial na sociedade portuguesa. No contexto europeu, poderia o caso português representar uma alternativa: algo que, através de viagens pós-coloniais, levasse a uma sociedade mais igualitária que aceite uma nova narrativa pública plural do passado?
___________________
(1) António Sousa Ribeiro & Margarida Calafate Ribeiro (orgs.), 2016, Geometrias da memória: configurações pós-coloniais, Porto: Edições Afrontamento.
(2) Paula Godinho, 2001, Memórias da Resistência Rural no Sul – Couço (1958-1962), Oeiras, Celta.
(3) Margarida Calafate Ribeiro, 2012, “O Fim da história de regressos e o retorno a África: leituras da literatura contemporânea portuguesa”, in E. Brugioni, J. Passos, A. Sarabando & M.M. Silva (orgs.), Itinerâncias. Percursos e Representações da pós-colonialidade. Journeys. Postcolonial trajectories and representation : 89-99, Braga, Universidade do Minho.
(4) Lei Gayssot (julho de 1990), banindo todos os atos de racismo, anti-semitismo ou xenofobia; Lei de janeiro de 2001, reconhecendo o genocídio arménio; Lei Taubira (maio de 2001), reconhecendo o tráfico de escravos como crime contra a humanidade; Lei sobre o colonialismo (fevereiro de 2005), sobre “o papel positivo da presença francesa no estrangeiro”.
(5) Sarah Gensburger & Sandrine Lefranc, 2017, À quoi servent les politiques de mémoire, Paris, Presses de SciencesPo.
(6) As aspas sublinham a fluidez das identidades, especialmente num contexto migratório: neste caso, a investigação mostrou que alguns portugueses se identificam como angolanos ou angolanos brancos.
(7) Florence Haegel & Marie-Claire Lavabre, 2010, Destins ordinaires. Identité singulière et mémoire partagée, Paris, Presses de SciencesPo.
___________________
MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.