Portugueses invisíveis

The Black Boy | 1844 | William Lindsay WindusThe Black Boy | 1844 | William Lindsay WindusNos dois últimos anos em Portugal assistimos a debates públicos sobre a identidade nacional, inéditos não só pela amplitude que ganharam fora do meio académico, mas também pelos atores que chegaram ao palco mediático e ganharam espaço na formação da opinião pública. Penso, em particular, na ação de associações não governamentais de jovens não brancos portugueses ou a viver em Portugal, como por exemplo a DJASS, a INMUNE, a Plataforma Gueto, entre outras, que têm vindo a realizar um trabalho notável de pontuar o espaço público de uma sociedade dominantemente branca, sugerindo que ela reflita sobre essa mesma característica. Veja-se a título exemplificativo a proposta da DJASS da construção de um memorial à escravatura, vencedora no processo de Orçamento Participativo de Lisboa em 2017/18. Penso, ainda, na área artística, sobre a prolífica produção teatral ou performativa sobre o colonialismo e os seus legados em Portugal, por grupos como o Teatro Griot, o grupo Hotel Europa ou o Teatro do Vestido. Notam-se igualmente mudanças recentes na esfera política, como o anúncio do partidoLivre das suas listas eleitorais, que apresenta Joacine Katar Moreira como número dois para as eleições europeias, e número um pelo círculo de Lisboa às legislativas; ou o atual trabalho em curso para um projeto de alteração legislativa de forma a fazer-se o levantamento das identidades racializadas de cidadãos portugueses ou a viver em Portugal já nos próximos Censos 2021.
Leio com precaução e sentido crítico esta feliz mudança no espaço público português pela lente do romance Invisible Man, 1951, de Ralph Ellison. Sucintamente: o narrador estuda numa faculdade para jovens negros no sul dos Estados Unidos, e descobre a sua invisibilidade quando, aos 20 anos, comete o “crime” de conduzir pelo seu bairro negro um dos mecenas da faculdade. Apesar de o ter feito a pedido do próprio, o diretor da faculdade considera imperdoável ter dado a conhecer a exclusão social daquela comunidade, ameaçando o status quo e a estrutura de poder desigual que garante, paradoxalmente, a faculdade aberta aos estudantes não brancos. Na visão do diretor, não é aceitável expor ao poder branco de boa consciência o seu racismo estrutural: “[Mr. Bledsoe, the director] Didn’t you know you were endangering the school? – [narrator] But I was only trying to please him… - [Mr. Bledsoe] Please him? And here you are a junior in college! The dumbest black bastard in the cotton patch knows that the only way to please a white man is to tell him a lie! What kind of education are you getting around here?” 1. A sua expulsão leva o narrador a Nova Iorque onde, ao se confrontar com outras situações de injustiça e exclusão social e continuar a ter negada a sua individualidade e razão (desde a dificuldade em arranjar emprego, até à utilização do seu corpo em experiências médicas violentas sem a sua informação e anuência), ele percebe, num processo de autoconhecimento doloroso mas transformativo, a sua invisibilidade social, e ingressa nos movimentos clandestinos de luta pelos direitos civis. Simbolicamente, Ralph Ellison deixa o narrador incógnito: não só o narrador nunca se apresenta, como nunca é tratado pelo nome próprio.
Mais do que uma obra sobre as condições de vida das comunidades negras nos anos 1930/40, esta é uma obra sobre os mecanismos de reprodução da supremacia branca e processos de resistência, sobre os quais, por feliz coincidência, tive ocasião de ouvir falar recentemente. Nos dias 20 e 22 de março, esteve em Coimbra Lewis R. Gordon, Professor de Filosofia na Universidade de Connecticut. No âmbito da Cátedra Boaventura de Sousa Santos da Faculdade de Economia, Lewis R. Gordon partilhou duas conferências sobre teoria social (crítica, decolonial, global e outras), e suas limitações. Ora, um dos tópicos foi, precisamente, as invisibilidades produzidas pela modernidade europeia através de quatro mecanismos discursivos: quantidade, tempo, voz e conhecimento. O impacto da modernidade europeia moldada pela lente destes quatro critérios sente-se hoje ainda, inscritos que estão na forma de pensar, narrar e, portanto, gerir sociedades,universalizados através de instituições como a educação e a universidade. Lewis R. Gordon partilhava connosco como nos anos 80, jovem professor numa universidade americana, que contava 14 professores negros entre um total de 3.500, as vozes de estudantes contra ações afirmativas e quotas se começaram a fazer ouvir porque Lewis afrontava a sua invisibilidade atravessando a pé o campus – o único, de entre os 14.
É certo que o contexto na Europa e em Portugal é diferente do contexto americano, porque o colonialismo moderno europeu ocorreu em territórios longínquos, parecendo ter ficado lá longe. Mas a produção de conhecimento e seus legados são-lhes constitutivos. O que considero importante agora que os portugueses invisíveis estão “a atravessar o campus” é não cair na armadilha discursiva de adicionar esses exemplos à velha e vã argumentação de que Portugal é colour-blind, adensando processos politicamente irresponsáveis como foi o caso da recente visita do Presidente da República ao Bairro da Jamaica na sequência do escândalo de violência policial (e sob investigação) naquele bairro, cujo episódio assim silenciou. Continuar a insistir numa política colour-blind, ignorando as vozes de portugueses invisíveis, manterá a “ilusão específica e extremamente perigosa, possibilitada pelo esquecimento intencional do passado imperial da Europa e a recusa de assumir responsabilidade, […] a ponto que o futuro da Europa, pelo menos o seu futuro como uma comunidade democrática de estados livres e um projeto de paz bem sucedido, está seriamente ameaçado” (Paulo de Medeiros, newsletter nº 43). As intervenções políticas, sociais e culturais dos portugueses invisíveis continuarão a ser cruciais para se começar a narrar Portugal de forma mais objetiva e responsável – haja porém vontade de desencobrir e agir sobre as invisibilidades da sociedade portuguesa.

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  • 1. Ralph Ellison (2014), Invisible Man. London: Penguin Books, p. 139.

por Hélia Santos
A ler | 19 Abril 2019 | Memoirs