Os retornados estão a abrir o baú

Há 35 anos, após 14 anos de guerra colonial, mais de meio milhão de pessoas regressava das colónias portuguesas em África, pondo fim a 500 anos de império ultramarino português. “Nós fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação”, escreveu Eduardo Lourenço, em O Labirinto da Saudade. “Mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes (…), mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.”

Portugal, um país que se tinha imaginado grande, com vastos territórios nos trópicos que eram uma extensão da sua diminuta dimensão europeia, viu-se enfiado numa ponte aérea de vários meses. No final de 1975, com a independência das suas províncias ultramarinas, o país estava novamente confinado a um rectângulo na costa europeia do Atlântico.

Um império encaixotado, a foto de Alfredo Cunha (1974) é simbólica. Caixotes de retornados amontoam-se junto ao Padrão dos DescobrimentosUm império encaixotado, a foto de Alfredo Cunha (1974) é simbólica. Caixotes de retornados amontoam-se junto ao Padrão dos DescobrimentosA balada do Ultramar tem sido cantada por vários escritores desde o final da década de 70, mas foi preciso esperar 30 anos para que as feridas abertas por um retorno abrupto começassem a sangrar. A história não mentiu ao dizer que muitos vieram com a roupa que tinham no corpo para um país aonde nunca tinham estado e onde foram rotulados de “retornados”.

Agora, muitos decidiram escrever sobre isso - sobre como era a vida na colónia, sobre o que perderam, sobre o que ficou, sobre como foi “regressar” e viver com o estigma de “retornado” -, buscando a sua identidade nos meandros de uma memória pessoal que era também uma história colectiva e tentando perceber o que é ser português hoje. Nos últimos anos, têm vindo a lume livros sobre a presença portuguesa em África: diários de guerra, ficções e autobiografias, mas também livros escritos por retornados (ou não) evocando a tragédia da ponte aérea ou as consequências do retorno na vida de muitos portugueses.

O quotidiano na colónia

António Mateus partiu para o Lobito com a família aos cinco anos. Aos 25 saía de Angola. Chegou ao Brasil via ponte aérea por Lisboa, “com uma mão na frente e outra atrás, e 180 dólares no bolso”. Aos 61 anos, reformado, a viver em Palma de Maiorca, é autor de “Lobito” (Guerra e Paz, 2009) e “Lubango, Paris, Mavinga” (2010). Porquê escrever? “É uma questão de aritmética: 25 mais 35 são 60. Muita gente saiu de África com cerca de 25 anos, passaram-se 35, e muitos temos 60 anos hoje.”

Tinha estas histórias há anos na cabeça, mas uma vida intensa de trabalho impediu-o de se sentar a escrever - Brasil, Espanha, América Latina, Paris, andou um pouco por todo o lado. Não é um nómada, mas um cidadão do mundo, mistura de “lobitanga” (do Lobito) e “chicoronho” (de Sá da Bandeira, actual Lubango), português mas também maiorquino.

África só está lá nos livros, explica, porque foi aí a sua juventude: “A minha adolescência passei-a lá. As namoradas, o primeiro beijo; foi lá que conheci a minha mulher e que o meu filho nasceu. Isso marca de tal maneira uma pessoa porque são transformações profundas da juventude.”

Muitas destas novas narrativas sobre África são circulares: nos anos 50, dá-se a partida para Angola ou Moçambique, a bordo dos paquetes.

Colonos vindo das Beiras, de Trás-os-Montes, do Alentejo, das enormes “bolsas de miséria do interior”, refere Mateus. Depois, a vida na colónia passa-se, com mais ou menos sobressaltos, até ao regresso forçado em 1975. Neste caso, “Lobito” é excepção (há uma partida, mas não se dá o “retorno”, porque a narrativa não chega a esse tempo histórico).

Nos primeiros capítulos, Mateus fala criticamente do Estado português que se limitava a “meter as pessoas nos navios, onde, amontoadas como animais, seriam levadas a povoar as colónias”. Só a “amizade e solidariedade dos portugueses já desterrados substituíam as obrigações de um Estado omisso”, escreve. Depois, a horrenda viagem de barco, em terceira classe: “O enjoo levava ao vómito constante (…). Numa mesma camarata, dez ou quinze pessoas a vomitar ao mesmo tempo.” A viagem era degradante, “fazendo lembrar as viagens dos escravos nos barcos negreiros”. Remata com ironia: “Os portugueses tinham demonstrado ser grandes especialistas nesse tipo de travessias.”

Em Lobito seguimos os passos do jovem mulato Zé Beto e dos seus dois amigos, Zeca (negro) e Zé Lisboa (branco). A questão da raça está lá, premente (sem a violência de outros textos, é certo), mas Mateus cartografa igualmente outras barreiras, de classe, que marcavam a sociedade estratificada do Lobito, bairro a bairro. Na cidade, diz ao Ípsilon, “havia mais diferença entre ricos e pobres do que entre pretos e brancos. Era uma sociedade de castas”. Continua: “Não quero fazer um paraíso disto: os pretos na classe média eram uma minoria, de facto, mas a violência do racismo está mais na geração anterior à minha, nos mais velhos, um racismo gutural, de uma violência verbal no trato e na humilhação”.

Sofia Fonseca, 32 anos 'Angola, Terra Prometida' - investigação jornalística que documenta, com recurso a muitos testemunhos, a vida quotidiana dos colonos em Angola. De Luanda às outras cidades, das plantações de café e de algodão ao mato e às caçadas, do futebol ao cinema. fotografia de Raquel EsperançaSofia Fonseca, 32 anos 'Angola, Terra Prometida' - investigação jornalística que documenta, com recurso a muitos testemunhos, a vida quotidiana dos colonos em Angola. De Luanda às outras cidades, das plantações de café e de algodão ao mato e às caçadas, do futebol ao cinema. fotografia de Raquel EsperançaPara quem esteve no Lobito, as referências locais são familiares: dança-se ao som de merengue, bebem-se Cucas geladas, o ponto de encontro era no Pic-Nic, ia-se à taberna do Peralta, banhos de mar era na ponta da Restinga, e via-se cinema ao ar livre nas noites quentes. Este era o quotidiano dos colonos em África, sobretudo em Angola, como o livro de Ana Sofia Fonseca, Angola, Terra Prometida (Esfera dos Livros, 2009) tão bem mostra. A jornalista, de 32 anos, recolheu depoimentos de mais de 80 pessoas, antigos colonos e não só, para compor um livro que é, em muitos aspectos, um documento exaustivo da vida na colónia.

Durante anos foi ouvindo histórias sobre os “melhores anos” em África. Perguntava-se “como é que se podia falar dos ‘melhores anos’ quando esta foi uma época em que a maioria da população vivia muito mal, e a partir de 1961, de guerra também? Os ‘melhores anos’ são referidos por pessoas que viviam numa ‘redoma dourada’. Tinha interesse em compreender a complexidade desse fenómeno.”

Estas pessoas “trazem Angola presa à alma” e, juntas, “revelam o retrato de um período que ainda é uma noite escura”, escreve Fonseca. É o retrato de um tempo que não existe mais. “Como era a vida das pessoas? Diziam que era maravilhosa, mas como era? Havia mais liberdade ou não? A PIDE era mais ou menos interventiva do que cá? A rádio como funcionava? O que é que as pessoas faziam à noite? Como era a vida das mulheres?”, pergunta. De Luanda às outras cidades, nas fazendas, nas plantações de café e de algodão, no mato, nas caçadas, no entretenimento (futebol, corridas de carros, música, cinema, praia, noite), “Angola, Terra Prometida” mostra até que ponto o dia-a-dia em Angola antecipa um duro contraste com o “retorno” a um Portugal rural, atrasado, pequeno.

Quando escreveu o livro, fez tudo para “não cair em nostalgias, nem tão-pouco em culpas por expiar”. Não há aqui qualquer branqueamento: Fonseca admite que este é um retrato das elites numa sociedade profundamente injusta, cheia de desigualdades. Acredita que é à sua geração que cabe contar estas histórias, “sem saudosismo, sem tabus”.

Para a investigadora Sheila Khan, o livro de Ana Sofia Fonseca faz uma “sociologia das ausências”, tal como Khan o fez no seu livro Imigrantes Africanos Moçambicanos (Colibri, 2009). Ou seja: “Transforma em existente palpável aquilo que é produzido como ausente e mostra que esses silêncios não estão nada calados”, diz. Ao coligir estas histórias num enquadramento social, histórico e cultural, “este é um livro-útero porque cria um espaço de conforto e de sossego suficiente para que as pessoas tenham possibilidade de assimilar, absorver e pensar nestas narrativas de vida”.

 

O marketing da nostalgia

É provável que o leitor já se tenha deparado com muitos destes livros: capas em tom sépia, postais ilustrados com imagens nostálgicas de uma África que não existe mais. Para a professora Isabel Ferreira Gould, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, estes livros são o resultado de um trabalho de marketing com uma missão concreta: “Criar uma noção de familiaridade, fazer um apelo emocional ao leitor e à sua saudade. As editoras têm claramente um público em vista: pessoas que viveram em África.”

Só que as capas enganam, porque nem todos os livros apresentam a ideia de um império perdido mas idílico, de tempos idos mas felizes. Estes livros estabelecem um contraste importante entre o que é o “colonialismo” e a “colonialidade”, diz Sheila Khan. “O colonialismo é a ideologia, a regra; a colonialidade é esse colonialismo reduzido no seu dia-a-dia, na prática, no seu agenciamento, nas relações entre as pessoas. Tem a ver com a forma como um mesmo fenómeno é sentido, vivido e imposto.” Estes livros, argumenta, traduzem o quotidiano colonial e “os sentimentos que estavam colados a ele, as vivências, a forma como cada um percebia e sentia essa forma de estar num lugar que, não sendo seu, era seu; como cada um se apropriava dele e como é que a sua identidade se transformava a partir deste”.

Nesta literatura está a colónia em toda sua complexidade, mas também a nostalgia: “A nossa relação com a casa, o espaço e o tempo, ansiando por um lugar de pertença. Nostalgia pelo perdido, pelo que África poderia ter sido, e pelo que não tínhamos e queríamos ter tido”, explica Isabel Ferreira Gould.

Antes, a literatura portuguesa contemporânea portuguesa já tinha ido a África, visitando o período da guerra colonial nos livros de Lídia Jorge, António Lobo Antunes, João de Melo; só no final dos anos 90, surgem as primeiras obras sobre a experiência do Império e do colonialismo. Há aqui um salto e não se pode ignorá-lo. Estes livros são importantes: “Não podemos escamotear esta narrativa de nostalgia.” A qualidade literária não está em causa: “É uma narrativa muito próxima do testemunho, e muitos são novos autores a estrear-se.”

No livro que Ferreira Gould vai publicar, Império na Primeira Pessoa: Memória, Família e Colonialismo na Narrativa Portuguesa Contemporânea, estas obras vão figurar porque falam “da relação de pertença e não-pertença sob a perspectiva do colono. Porque há vários colonos. Ele é muito importante enquanto figura literária: é colonialista, é colonizador, mas também é imigrante e as pessoas têm muito pudor em falar nisto.” O colono é um imigrante fruto e veículo de uma ideologia: “O pai de família, o pai português, o racista.”

Este livros, sublinha a investigadora, não devem ser lidos com o preconceito com que o Portugal europeu, continental, sempre tratou os retornados. “Lidamos melhor com a memória do soldado que fez a guerra colonial do que com a do colono. Como pensá-la, como rememorá-la? É legítima a sua memória? Estes romances trazem notícias ao pensar de forma legítima a memória da colónia e do retorno, hoje.”

Por isso, o que se apaga ou se omite é tão importante como o que está escrito. “Sim, muitos apagam, mas também reconstroem. No discurso da memória, as falhas são tão importantes como o que está lá. São testemunhos que rompem com a narrativa histórica porque o narrador pode dizer ‘fui eu, vivi, perdi, estava lá’, mas, por outro lado, essas narrativas são prisioneiras da identidade, o que limita o que podemos dizer sobre o outro”.

Sheila Khan chama-lhe literatura de “retornados” (e sublinha as aspas).

A violência da linguagem

Os livros de Isabela Figueiredo, Cadernos de Memórias Coloniais (Angelus Novus, 2009) e de Ricardo de Saavedra, Os Dias do Fim (edição de 1995 revista e aumentada, Casa das Letras, 2008) rompem com uma certa imagem da colónia, e demonstram a violência do quotidiano e do período de independência com a força crua da linguagem. 
Exemplos: “Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda.” (Figueiredo, 47 anos) “O jornalista que sou percorreu os trilhos da guerra. Foi treinado para se defender e para matar, se necessário. Empurraram-no contra um inimigo impiedoso.

Cumpriu o que lhe mandaram, na atitude ingénua e cómoda de prestar um serviço à Pátria. O homem que sou é o resultado laboratorial de um equívoco (…). Eis porque, neste poiso africano que antecede a aerogare da Portela de Sacavém, me contorço. Deprimido e soturno, pareço uma galinha pedrês, a sacudir as asas, no terreiro da aldeia de colmo a que ateiam fogo.” (Saavedra, 58 anos)

Isabela Figueiredo, 46 anos 'Caderno de Memórias Coloniais' - visão autobiográfica da autora sobre a sociedade moçambicana, racista, violenta, profundamente injusta, condensada na figura do seu pai. Shamila MussaIsabela Figueiredo, 46 anos 'Caderno de Memórias Coloniais' - visão autobiográfica da autora sobre a sociedade moçambicana, racista, violenta, profundamente injusta, condensada na figura do seu pai. Shamila MussaFigueiredo e Saavedra saíram de Moçambique com a independência e estes livros são os seus diários - autobiográfico, no caso de Isabela; ficcional (?), no caso de Saavedra - da colónia, da violência, do retorno e do exílio. “Tive de cortar com o passado, e cortei mesmo. Não sou saudosista, não quero reconstituir nada, não quero vingança, mas gostaria que os meus netos soubessem que sofremos”, diz Saavedra ao Ípsilon.

O livro de Figueiredo foi uma “pedrada no charco”, diz Sheila Khan. “Isabela é a filha desobediente” que vem romper com o “status quo” da literatura sobre a colónia, e essa ruptura é feita de uma forma muito violenta: “A maneira como ela entra no texto, ninguém quer ouvir aquilo. Tínhamos uma ideia muito pacífica e paradisíaca do colonialismo português em África.” A autora tem recebido mensagens de leitores que se identificam com a sua visão da colónia - racista, violenta, profundamente injusta. “Sinto-me bem porque sinto que não sou só eu, não fui só eu que tive de ouvir aquilo, muitas mais pessoas ouviram as mesmas coisas. Durante muito tempo senti-me muito sozinha relativamente ao que eu sentia sobre a minha realidade africana, sobre as minhas memórias”.

Estes são exemplos do que Isabel Ferreira Gould chama de “narrativas de decantação”, ou seja, “textos escritos na primeira pessoa” sobre memórias “que estão estruturadas entre uma visão crítica do colonialismo e a necessidade de exaltar, para o bem e para o mal, as figuras fundamentais da identidade dos sujeitos da narrativa”. São, em muitos casos, “obras de filhos a rever as suas memórias e as das suas famílias, estabelecendo tensões e conflitos dentro da sua própria geração e com a geração dos seus progenitores”. Mas, ao tentar filtrar o passado, ao decantá-lo, “como o próprio nome indica, também estão a homenagear, louvar, a elogiar: há uma tensão entre quem critica e ao mesmo tempo louva o progenitor”.

Os silêncios guardados no baú ainda por abrir são o resultado de “pactos de amor nas famílias, que não podem ser quebrados”, diz Isabela Figueiredo, que esperou pela morte do seu pai para poder dizer tudo. “Só dentro de alguns anos é que estas histórias poderão vir à tona. Os filhos que viveram esta realidade e que podem contá-la estão presos a esse pacto, comprometidos na teia de afectos.”

Retornado ou refugiado?

“Vim sem nada, só com a roupa que tinha vestida”; “Nós estivemos dois dias no aeroporto de Luanda”; “Nós vivíamos em Nova Lisboa. Quando saímos já havia tiros”; “Nós éramos do Uíje… deixámos lá tudo”; “Eu nem sei do resto da minha família”; “E agora o que vai ser de nós nesta terra?”
É através deste mosaico de vozes que Carlos Vale Ferraz descreve em Fala-me de África (Casa das Letras, 2007) a tragédia do retorno. O romance tornou-se série de televisão, “Regresso a Sizalinda”, agora em estreia na RTP. Não é sobre o retorno em si, diz o autor, “mas uma história de busca de identidade. E também da relação dos portugueses com África”. A questão dos retornados, nota, sempre o tocou: “Não apenas aqueles milhares de pessoas que vieram em 1975, mas a vivência do retorno. A ideia de Portugal de 1975 para cá é a que está reflectida no livro, a de que encerrámos um ciclo”.

Carlos Vale Ferraz, 64 anos 'Fala-me de África' - história da busca de uma identidade que ficou no passado, em Angola, mas também um retrato de um Portugal de “retornados” e da sua integração. fotografia de Raquel EsperançaCarlos Vale Ferraz, 64 anos 'Fala-me de África' - história da busca de uma identidade que ficou no passado, em Angola, mas também um retrato de um Portugal de “retornados” e da sua integração. fotografia de Raquel EsperançaO ciclo fechou-se, mas ainda estamos todos com a cabeça em África. Diz Vale Ferraz: “Num determinado momento, a expansão foi como aquelas crianças que andaram a juntar as carruagens num comboiozinho. Numa determinada fase, fomos perdendo carruagens, primeiro a Ásia, depois o Brasil, depois a Índia, e finalmente perdemos a carruagem de África. De repente, vimo-nos todos dentro da mesma carruagem, e há uma certa sensação de sufoco. É isso que faz as pessoas escrever: não temos para onde fugir.” Perante a impossibilidade de fuga, “agora, vamos ter de pensar em nós, aqui, como nos relacionamos com os outros”.

É por isso que Isabel Ferreira Gould afirma que estes livros são “sobre Portugal, sobre nós e a nossa relação com África, sobre o eu português e como este vê o outro”. África está lá enquanto espaço e cenário, “paisagem, campo de batalha, de encanto e desencanto”.

Carlos Vale Ferraz, 64 anos, não é um retornado. Foi militar e cumpriu comissões em Angola, Moçambique e Guiné. De seis romances, três são sobre África. Escreve sobre o continente porque, explica, “na segunda metade do século XX, é o assunto determinante da história de Portugal”: “Se não escrevemos sobre África, não percebemos nada do que se passou em Portugal, não percebemos nada do que foi o Estado Novo, nem o que foram as transformações a seguir. Escrever sobre África é escrever sobre o nosso tempo. O Lobo Antunes não conseguiria escrever sobre as pessoas suburbanas que vão para os centros comerciais ao domingo se, na sua maioria, não fossem pessoas que vieram de África, quer sejam aquelas que foram combater e depois vieram da província para aqui, quer sejam aquelas que regressaram em 1975.”

Os “retornados” (mais aspas) foram bodes expiatórios do colapso do império, e esta literatura que está a aparecer em Portugal (de, para ou sobre retornados) está a abrir as feridas. “Estas pessoas não são retornados, muitos não retornam a lugar nenhum. São refugiados de guerra”, diz António Mateus. “Retornado” é a palavra “inventada para contornar uma realidade”. Dizerem-se “refugiados”, explica Khan, é a “forma como as pessoas tentam descolar-se da imagem de retornado, de mágoa e de exílio. Dizer que se é um refugiado é dizer que se foi expulso da sua terra, que não se pertence a Portugal e que Portugal não se lhes pertence.” Ricardo de Saavedra foi um refugiado político, “tout court”, exilado na África do Sul. A sua personagem Luís Ribeiro Sales escreve, em Dias do Fim: “Estou no campo de refugiados de Nelspruit. Não se trata de reportagem, não vim como observador. Sou um deles. Sentado numa pedra, escrevo. Tudo o que me resta cabe debaixo do braço.”

Os “de cá”, explica Isabela Figueiredo, “diziam que os retornados andavam a explorar os negros. Eram ataques muito fortes, batia na ferida das pessoas, porque era uma metáfora, mas era verdade; era um eu colectivo que se enquadrava nessa imagem”. “Retornado” soava “assim como quando se diz ‘ó preto’ como ofensa: ‘ó retornado!’ soava mal, porque queria dizer fascista, explorador.” Ela olha para a palavra de outra maneira: “Como se ela quisesse dizer: pessoa que veio de África a seguir à independência.”

Cartografia emocional

Todos estes escritores são “órfãos desse grande progenitor que foi o colonialismo português. Ao não ser capaz de dar a nenhuma destas pessoas o sentido de cordão umbilical, o colonialismo vai tocar na debilidade estrutural do que é ser-se português”, diz Khan.

A literatura do retorno é uma forma especial de luto. Um luto que ainda não foi verdadeiramente feito, porque não se “pode pensar em luto sem se sepultar um corpo, e nós não temos lá nada sepultado porque viemos embora”, e que é descrito em A Balada do Ultramar, de Manuel Acácio (Oficina do Livro, 2009). Jornalista na TSF, Acácio, 46 anos, não é retornado e nunca foi a África. Foi casado com uma portuguesa que se dizia angolana, retornada. Admite que “A Balada do Ultramar” é o seu luto pela morte da mulher (há cinco anos), mas também o luto que milhares de portugueses não fizeram.

As palavras de Khan vão ao encontro do seu romance: “É um silêncio insepulto que nos diz que aparentemente está tudo bem e está tudo resolvido (porque afinal Portugal recebeu de forma pacífica e ‘gloriosa’ estas pessoas). Mas se elas têm necessidade de escrever, é porque alguma coisa não está bem.”

Foi por sentir que alguma coisa não estava bem que Acácio escreveu. Partiu com “muitos preconceitos para este livro”. Tinha medo do que as pessoas iam pensar: “Que sou saudosista e colonialista, que estou a tentar reescrever a história”. É o seu primeiro romance, sobre um homem que está a contar a história do regresso. “Quis pôr-me no papel de quem se sentiu injustiçado, mal recebido. Alguém que sente que é de África e está de certa forma a fazer um ajuste de contas com o seu passado.”
Nove anos à frente do Fórum TSF fizeram-no perceber que a memória pacificada da mulher com Angola não coincidia com a memória de muitos outros retornados. (Ou)viu que “as feridas não estavam nada saradas, estavam todas em carne viva. Havia uma grande revolta silenciada naquelas pessoas. Os fóruns eram uma oportunidade de falarem.” “[A Balada do Ultramar] é o filho desse espanto com que fiquei quando percebi que havia uma enorme revolta de pessoas que tiveram de deixar tudo e depois chegaram cá e foram apontadas, criticadas, estigmatizadas”, continua.

Não ter contas a ajustar com o “seu” passado colonial poderia à partida ser um impedimento, mas acabou por ser uma vantagem: “Não estou preso às recordações da minha família, não estou amarrado a laços”.

Talvez por isso, esse homem velho conta a história das suas vivências em África sem o pudor do afecto. O livro passa esse saudosismo do passado colonial (propositado, diz), mas também toca de forma clara na questão da sexualidade, “na ida às cubatas, no racismo, na violência verbal, no trabalho escravo”.

No fundo, os retornados são isto: “Às vezes penso que devíamos ser como as cobras. Elas aprenderam a largar a pele envelhecida e deixam-na para trás sem qualquer remorso”, escreve Acácio. Mas o remorso, a vergonha, a mágoa ainda estão lá. Esta é “a dor de uma geração”, diz. “Há uma cartografia emotiva que está por fazer.”

 

Artigo originalmente publicado no jornal Público, no suplemento Ípsilon

por Raquel Ribeiro
A ler | 19 Agosto 2010 | guerra colonial, Literatura, livros, retornados