O sistema alimentar industrial e a Soberania Alimentar

Artigo da secção Pólen no Ar

Texto: Sérgio Pedro, Begoña Dorronsoro, Irina Velicu, Lúcia Fernandes, Carmo Bica (Presidente da Cooperativa Três Serras) 

Fotos: Pólen

Com o avanço da globalização das cadeias alimentares, os sistemas alimentares foram reduzidos a um modelo de agricultura industrializada controlado por um número cada vez menor de empresas transnacionais de alimentos, juntamente com um pequeno grupo de grandes distribuidores. Este é um modelo projetado e orientado para gerar lucros, em detrimento de preocupações ambientais e sociais.

Este foi o lema da entrevista com Carmo Bica, Presidente da Cooperativa Três Serras, no âmbito de sua intervenção nos IV Encontros Internacionais Eco-Socialistas que ocorreram em Lisboa entre 23 e 25 de novembro de 2018.   

Segundo Carmo Bica, “o atual sistema alimentar tem sido orientado principalmente para a valorização de grandes explorações agrícolas que adotam um modelo industrializado de produção de alimentos, deixando de lado a agricultura familiar que ocupa a maior parte da área agrícola utilizada no mundo. Segundo Carmo Bica, “é a agricultura familiar que garante a soberania alimentar. Se temos uma crise de transporte de alimentos como já aconteceu, não há comida nos supermercados”.  

A mesma refere que algumas medidas já foram tomadas em Portugal no sentido de potenciar a Soberania Alimentar, nomeadamente a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que reúne ministrxs, sociedade civil, setor privado, universidades e municípios no processo de decisão sobre os alimentos. A estrutura institucional parte da Estratégia Nacional de segurança alimentar e nutricional que está a ser criada. 

O futuro dos sistemas alimentares é um debate que deve ser feito não apenas com os agricultorxs, mas com toda a sociedade, promovendo assim uma análise crítica da situação atual do sistema alimentar global.   

Em vez de dedicar-se à produção de alimentos saudáveis ​​e acessíveis que beneficiam as pessoas, o setor agrícola industrializado concentra-se cada vez mais na produção de matérias-primas para agrocombustíveis, ração animal ou culturas alimentares para apoiar a especulação no mercado financeiro de alimentos, as chamadas “cash crops” ou culturas agrícolas comerciais. Tal modelo apoia-se no uso de pesticidas, fertilizantes sintéticos, organismos geneticamente modificados (OGMs) produzindo alimentos com menor valor nutricional e implicando riscos e incertezas à saúde de quem os consome.    

De acordo com Carmo Bica “o sistema alimentar industrial causa uma considerável perda de terra arável e propriedade agrícola familiar, facto confirmado pelos mais recentes dados dos censos agrícolas nacionais que apontam que em dez anos cerca de 112 mil explorações agrícolas desapareceram1. Ou seja, uma em quatro explorações agrícolas deixou de existir, afetando principalmente pequenas parcelas, na Beira Litoral, Ribatejo, Oeste e Algarve”.   

Esse modelo industrial de produção de “produtos alimentícios” depende de combustíveis fósseis finitos e insumos químicos, não reconhecendo as limitações de recursos naturais como terra ou água. Sendo responsável por drásticas perdas de biodiversidade e fertilidade dos solos, contribuindo para a produção de gases de efeito estufa.

Este impacto força milhares de pessoas a trabalhar sem verem reconhecidos os seus direitos mais fundamentais e leva ao agravamento das condições de trabalho para agricultorxs e trabalhadorxs rurais, em particular migrantes e mulheres. Explorar e tratar a Terra dessa maneira é a causa fundamental da pobreza rural e da fome de mais de um 821 milhões de pessoas no mundo2              

Na tentativa de aumentar a quantidade de alimentos produzidos, este modelo de produção acaba provocando violações de direitos humanos, migrações forçadas, e  cria concomitantemente um excedente de alimentos, que acabam sendo desperdiçados ou despejados nos mercados (dumping), destruindo mercados locais.           Mudar a direção do mundial sistema alimentar só será possível através de uma reorientação completa de alimentos e de políticas e práticas agrícolas. “É vital redesenhar o sistema alimentar com base nos princípios da Soberania Alimentar” refere Carmo Bica. Surge um Movimento Global, reivindicando os direitos dos agricultores e a soberania alimentar.   

Soberania alimentar é um termo cunhado pelos membros da Via Campesina, movimento fundado em 1993 por organizações de agricultorxs da Europa, América Latina, Ásia, América do Norte, América Central e África. É descrito como “movimento internacional que coordena organizações camponesas de pequenos e médios produtorxs, trabalhadorxs agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas da Ásia, África, América e Europa”. Trata-se de uma coligação de 182 organizações em 81 países, defendendo uma agricultura sustentável baseada na agricultura familiar. Entre outras ações, a Via Campesina realizou uma campanha para defender as sementes dos agricultorxs, outra para acabar com a violência contra as mulheres, uma terceira para reconhecer os direitos dos camponeses e uma campanha global para a reforma agrária.                 

Na sua ação, a Via Campesina e os seus membros, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) em Portugal advogam que as pessoas que produzem, distribuem e consomem alimentos devem ter o poder de decidir sobre os mecanismos e políticas de produção e de distribuição dos alimentos. E pretende-se que abranja ainda o direito a alimentos saudáveis ​​e culturalmente adequados e o direito a definir democraticamente sistemas alimentares e agrícolas de seus territórios de vida e de trabalho.          

No contexto europeu, já existem inúmeras experiências e práticas, locais, nacionais e regionais, baseadas na Soberania Alimentar. Estas demonstram como pode ser aplicada, baseada na cooperação e na solidariedade, em oposição à concorrência.        

Através da mobilização do conceito de Soberania Alimentar, a Via Campesina apoiou a multiplicação de alianças transnacionais que trabalham local e nacionalmente (note-se a aprovação do Estatuto da Agricultura Familiar em Portugal) para recuperar a democracia nos sistemas alimentares, sendo a aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), um exemplo dessa ação. 

 Um passo em direção à justiça alimentar, com vista à construção de sistemas e processos democráticos, livres de violência, influência corporativa e baseados em direitos e igualdade de género. O Foro Mundial Pela Soberania Alimentar de Nyélény, Mali em 2007, foi um momento fundamental no qual, pela primeira vez, as lutas camponesas adiantadas pela Via Campesina, confluíram com as lutas feministas da Marcha Mundial das Mulheres, incorporando a Soberania Alimentar nas Agendas Feministas e aprofundando as questões de género nas Agendas dos movimentos da Via Campesina.

 De acordo com as demandas políticas dos movimentos sociais que defendem a Soberania Alimentar, a transição para sistemas alimentares sustentáveis requer a adoção de modelos ecológicos de produção agropecuária e pesqueira. Requerem igualmente o reconhecimento da importância da agricultura e pesca familiar como espinha dorsal do sistema alimentar pois, atualmente, representam mais de 70 por cento dos alimentos produzidos no mundo3.       

A visão coletiva da prática da Soberania Alimentar resulta na posição inerente à condenação do uso de OGMs, insumos sintéticos e outras formas de manipulação artificial da natureza ou tecnologia que criam exclusão social.

Os valores centrais do movimento da Soberania Alimentar estão orientados para a promoção da biodiversidade por meio da preservação in situ de uma grande diversidade de variedades locais de sementes e raças de gado adaptadas às características climáticas e do solo de cada localidade, promovendo formas sustentáveis e diversificadas de produção de alimentos, em particular o consumo de alimentos locais e sazonais não processados e de alta qualidade.   

Na tentativa de aumentar a quantidade de alimentos produzidos, este modelo de produção acaba provocando violações de direitos humanos, migrações forçadas, e  cria concomitantemente um excedente de alimentos, que acabam sendo desperdiçados ou despejados nos mercados (dumping), destruindo mercados locais.

Além do fenómeno da insegurança alimentar devido à falta de alimento (desnutrição), o sistema alimentar global está associado ao fenómeno de “fome oculta”, resultante de alimentos ultraprocessados ​​e de baixa qualidade nutricional, causa direta da epidemia global de doenças crónicas não transmissíveis derivadas da alimentação como a diabetes, hipertensão e o cancro. Segundo o estudo da Global Burden of Disease (2016), a alimentação inadequada dxs portuguesxs foi o segundo fator de risco que mais contribuiu para a mortalidade precoce e os cuidados médicos para essas doenças representam despesas equivalentes a 10% do PIB de Portugal4.  

A Soberania Alimentar incentiva diversas formas de intercâmbio, tal como a soberania das sementes, de modo a fortalecer a rede participativa local de sementes através da criação de parcerias entre agricultorxs, investigadores e ONGs que desejam apoiar os agricultorxs como guardiões das sementes. 

A soberania alimentar exige regras de segurança alimentar e estruturas legais que apoiem ​​a agricultura familiar para garantir que todos tenham acesso a alimentos adequados, sustentáveis, justos e saudáveis, incluindo trabalhadorxs rurais sem terra ou outras pessoas com pouco ou nenhuns rendimentos.   

Esta é uma medida necessária para combater os efeitos da exploração e degradação das condições sociais e de trabalho e em defesa dos direitos de todas as mulheres e homens que fornecem alimentos, bem como de trabalhadorxs sazonais e migrantes, incluindo a/os setores de processamento e distribuição. Essa tarefa depende da existência de políticas públicas que respeitem os direitos sociais, estabeleçam altos padrões e condicionem o financiamento público à condição de respeitarem a dignidade e o valor do trabalho dxs camponesxs.     

Neste sentido, Carmo Bica aponta que “o acesso aos recursos é uma questão fundamental para alcançar a Soberania Alimentar e para criar sistemas alimentares sustentáveis ​​e justos”.

Esse movimento encontra-se, portanto, no lado oposto à comercialização, financeirização e patenteamento de recursos comuns, como terras, sementes, raças de gado e peixe, árvores, florestas, água e conhecimentos ancestrais. Tais práticas criam bloqueios ao acesso aos recursos comuns, determinados pelo mercado e pela acumulação de capital.                    

O acesso a recursos comuns, geridos coletivamente de maneira democrática e comunitária, é um pilar fundamental para a realização dos direitos humanos e da igualdade de género, além do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas e seus princípios PANTHER (Participação, Responsabilidade, Não Discriminação, Transparência, Dignidade Humana, Empoderamento e Estado de Direito).                

A reformulação dos sistemas alimentares de acordo com os princípios da Soberania Alimentar implica inevitavelmente uma mudança nas políticas públicas e nas estruturas de governança que conduzem os sistemas alimentares - dos níveis local para nacional, europeu e global.  

Essa mudança implica que as políticas públicas devem ser coerentes, complementares e promover e proteger os sistemas e culturas alimentares, a fim de erradicar estruturalmente a fome e a pobreza, garantir a satisfação das necessidades de recursos humanos básicos e contribuir para a justiça climática.                 

O estabelecimento de tal caminho implica um posicionamento diferenciado do legislador, exigindo uma atuação mais proativa para a promulgação e aplicação de marcos legais que visem garantir preços estáveis ​​e justos aos produtorxs de alimentos, promovendo a agricultura agroecológica, internalizando custos externos nos preços dos alimentos e implementação da reforma agrária. 

Tais políticas criariam outras condições para a atratividade do setor agrícola para os pequenos agricultorxs, resultando, ao mesmo tempo, numa dinâmica maior dos territórios mais despovoados, agravada por problemas como a baixa taxa de renovação da população e incêndios rurais.           

Essas políticas públicas deveriam ser desenvolvidas também com a contribuição do conhecimento da academia e estar sujeitas a monitoramento aberto e periódico para alcançar os objetivos descritos acima.     

Para terminar Carmo Bica refere “a comida é um dos principais desafios sociais da Agenda 2030, mas o pensamento deste desafio como um direito humano ainda está longe de ser desejável, mesmo no debate político”.  

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Segue informação sobre algumas das associações e movimentos que lutam pela soberania alimentar em Portugal: 

Agrobio- Associação Portuguesa de Agricultura Biológica

Fundada em 1985, é uma instituição pioneira que protagoniza a divulgação da Agricultura Biológica em Portugal.

Constitui-se como um polo agregador de pessoas de todas as faixas etárias e profissões, que têm em comum preocupações com a qualidade dos alimentos, a saúde, o ambiente e a defesa de uma prática agrícola mais sã.

A AGROBIO é filiada na IFOAM (Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Biológica) e membro do Grupo Regional IFOAM-EU. Organização não governamental (ONG) de ambiente.

Plataforma Transgénicos Fora

A Plataforma Transgénicos Fora defende uma agricultura sustentável orientada para a protecção da biodiversidade e do direito dos povos à soberania sobre o seu património genético comum. A Plataforma é composta por pessoas que, em nome individual ou enquanto representantes de associações e outras entidades, oferecem o seu tempo como voluntários.

Campanha Sementes Livres

A Campanha pelas Sementes Livres é uma iniciativa europeia que nasceu em 2011 com núcleos na maioria dos Estados-Membros da União Europeia. Em Portugal a campanha é dinamizada pelo Campo Aberto, GAIA, Movimento Pró-Informação para Cidadania e Ambiente, Plataforma Transgénicos Fora, Projecto270, Quercus e Wakeseed/Círculos de Sementes, para além de contar já com perto de cem subscritores e milhares de apoiantes individuais.

A nível internacional, a rede por detrás da Campanha está em contacto com muitas outras redes e organizações, entre elas a Aliança Global pela Liberdade da Semente (www.seedfreedom.info) que defendem a livre reprodução de sementes e o direito dos agricultores e horticultores ao acesso aos recursos naturais comuns.

Círculos de Sementes

Associação nacional que visa criar uma rede de círculos de sementes por todo o país, redescobrindo, recolhendo e partilhando variedades antigas e tradicionais deste valioso património que são as sementes e realizar ações de sensibilização e partilha de conhecimentos sobre sementes e soberania alimentar.

Colher para Semear- Rede portuguesa de variedades tradicionais

A Associação Colher Para Semear - Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais, com sede em Figueiró dos Vinhos, nasceu da vontade de um grupo de pessoas, a maioria dos quais agricultores, que, depois de um primeiro “Ao Encontro da Semente”, realizado no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, em 2004, decidiram constituir uma rede de sementes para a manutenção e preservação das variedades tradicionais portuguesas.

A associação promove todos os anos várias oficinas de Selecção, Recolha, Limpeza e Conservação de Sementes, junto dos seus associados, e público em geral, para que não se perca esse saber fazer e todos possam, com autonomia, recolher e guardar as sementes de que se tornarem guardiões.

Regenerar

A agroecologia, a escala/proximidade humana e a defesa do alimento como Bem-Comum foram nomeados os princípios éticos basilares da “REGENERAR”. A organização informal pretende reconhecer e credibilizar as comunidades de alimento AMAP e CSA já existentes, assim como incentivar a criação de novos grupos de consumo assentes na subscrição de quotas de produção alimentar local.Associação para a Manutenção da Agricultura de Proximidade (AMAP) é uma parceria direta, baseada na relação humana entre um grupo de consumidores e um ou mais produtores, onde os riscos, responsabilidades e recompensas inerentes à produção agrícola são partilhadas, através do estabelecimento de uma ligação de longa duração.»

Projecto270

A associação projecto270 nasceu em Março de 2015, tem por base os princípios da Soberania Alimentar, Agroecologia e Educação integral.

Recorrem a vários métodos e ferramentas, que promovem um sistema alimentar mais equitativo não plano social, cultural e ambiental.

GAIA

O GAIA (Grupo de Acção e Intervenção Ambiental) é uma associação ecologista, inovadora, plural, apartidária e não hierárquica. Foi fundada em 1996 em Lisboa e actua a nível nacional e regional com núcleos em Lisboa e no Alentejo. Colabora com outras associações portuguesas e faz parte de várias redes nacionais, europeias e globais. O GAIA é uma ONGA (organização não-governamental do ambiente) com uma forte componente activista, combinando a co-aprendizagem D-I-Y com acções directas, criativas e não-violentas, promovendo o trabalho a partir das bases.

Tribunal Monsanto

O Tribunal Monsanto ocorreu em 2016 e 2017 em Haia. Cinco juízes emitiram uma opinião legal e concluíram que as atividades da Monsanto (agora, da Bayer) têm um impacto negativo sobre os direitos humanos básicos. São necessárias regulamentações melhores para proteger as vítimas de corporações multinacionais. O direito internacional deve ser melhorado para melhor protejer o meio ambiente e passar a incluir o crime de ecocídio. Todo o processo está documentado num documentário intitulado “Tribunal Internacional Monsanto - O Making of”.

  • 1. INE, 2009. Recenseamento Agrícola, Instituto Nacional de Estatística.
  • 2. FAO et al. 2019. The State of Food Security and Nutrition in the World 2019. Safeguarding against economic slowdowns and downturns, Food and Agriculture Organization.
  • 3. FAO, 2017. The State of Food and Agriculture, Food and Agriculture Organization.
  • 4. DGS, 2015. A Saúde dos Portugueses. Perspetiva, Direção Geral de Saúde.

por Oficina de Ecologia e Sociedade
A ler | 21 Março 2020 | ambiente, Pólen, soberania alimentar