Quando o vírus é o sistema: propostas ecossocialistas para não voltar ao normal.

por Begoña Dorronsoro, Lúcia Fernandes, Sérgio Pedro

Secção Pólen no Ar  

Quando iniciámos a colaboração entre o ECOSOC/CES, PÓLEN e o portal BUALA, não prevíamos a reviravolta que a pandemia da COVID-19 iria trazer. Nesse processo, as agendas planeadas foram interrompidas e, no entanto, os temas dos artigos previstos para nossa contribuição adquiriram uma relevância ainda maior. Até mesmo o título deste artigo é reflexo da crise atual. 

Parece-nos importante chamar a atenção para o resultado de não ter havido uma profunda reflexão e aprendizagem a partir de todas as crises anteriores e, especialmente, da atual crise ambiental, entendida como uma das criadoras dessa pandemia à escala global, que acentua as desigualdades sociais. Se anteriormente acreditávamos que era importante refletir sobre o papel do trabalho e dxs trabalhadorxs nas lutas socio-ecológicas, incluindo a justiça ambiental, os impactos tão graves dessa pandemia na vida das pessoas a nível planetário reafirmam a urgência dessas reflexões e a necessidade de transformar os conceitos de trabalho, cuidado e reprodução das vidas, se queremos viver com dignidade por mais séculos, como espécie humana na Terra. 

Os teóricos neoliberais, da política e da economia, tendem a situar o trabalho apenas como a atividade realizada nos diferentes espaços públicos em troca de um salário, e a natureza só é percebida para a exploração dos seus recursos naturais. Qualquer oposição aos excessos extrativos do capital é vista como um obstáculo ao desenvolvimento e ao avanço tecnológico. 

Estruturamos este artigo em três partes. Na última aprofundaremos o elemento que consideramos central para superar esta crise: colocar a produção e reprodução da vida no centro do debate e das ações. Devemos ampliar o conceito de trabalho para incluir todas as formas de trabalho não remuneradas e não reconhecidas como tal, as atividades das economias informais e subterrâneas, não apenas produtivas, mas também as reprodutivas e de cuidados.

Começamos por recuperar e discutir algumas questões apresentadas na entrevista de Stefania Barca, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), e parte da Oficina de Ecologia e Sociedade, no âmbito da sua intervenção nos IV Encontros Internacionais Eco-Socialistas que ocorreram em Lisboa, entre 23 e 25 de novembro de 2018. Stefania Barca observa como “o trabalho e xs trabalhadorxs têm poder para travar as mudanças climáticas”, uma vez que as lutas dxs trabalhadorxs ao longo dos últimos séculos (após a Revolução Industrial) se concentraram em reivindicar não só melhores condições de trabalho, mas também melhores condições de vida relacionadas com as mudanças causadas pelo capital em ambiente natural. Estas mudanças acabam por afetar, direta ou indiretamente, a saúde de quem trabalha e vive nestes territórios. 

Não é por acaso que o primeiro protesto considerado ecologista no contexto europeu ocorreu em Huelva, na Espanha, em finais do século XIX, como consequência das condições de exploração sub-humana em que as pessoas viviam nas habitações em redor das minas de Riotinto, fator este que resultou num número considerável de mortes causadas pela queima do minério de cobre ao ar livre nas chamadas teleras. A 4 de fevereiro de 1888 os protestos levaram a uma manifestação conjunta entre a classe trabalhadora e xs agricultorxs da área, que foram severamente reprimidos pela empresa e pelas autoridades locais. Estas acionaram o exército, que se estima ter morto 13 pessoas e deixado 48 feridas. O choque direto entre os impactos do capitalismo extrativista na vida da classe trabalhadora e das comunidades locais e camponesas levou a mais alianças em outros lugares do mundo. Nos EUA, na década de 1960, os sindicatos agrícolas da Califórnia conseguiram o banimento do DDT (primeiro pesticida moderno, tendo sido largamente utilizado durante e após a Segunda Guerra Mundial, no combate a mosquitos vetores de doenças como a malária ou a dengue). No entanto, deve notar-se que esta proibição foi só um aparente sucesso, pois existem hoje diversos países onde o DDT ainda é utilizado. Esse é um elemento importante para repensar a expansão das lutas sociais e as alianças intersetoriais e transfronteiriças, para que estas tenham um maior efeito. Voltando às palavras de Stefania, na entrevista: “não é possível exercer esse poder dentro do padrão do capitalismo verde”, que é promovido para mascarar os efeitos de um sistema que continua a ser extrativista, e que surgiu no começo do século XXI, principalmente como implementação de medidas mitigadoras da poluição ambiental.

A ideia do capitalismo verde é a resposta do sistema capitalista às suas críticas, mobilizando um discurso de “mudar tudo”, sem que a realidade que compõe a estrutura do capitalismo mude. Conceitos como o de sustentabilidade foram cooptados, esvaziando-os de todo o seu conteúdo político e garantindo que a solução para todos os problemas estão nas mãos das empresas. De acordo com Stefania Barca, devemos entender que uma luta contra a mudança climática é uma luta de classes também, “é o capital contra todos nós, então o trabalho não pode estar próximo ao capital nessa luta, a luta tem que ser contra o sistema capitalista”. A “revolução verde”, (anos 1960) foi uma estratégia anterior do capitalismo que tentou transmitir o que seria a solução para a fome no mundo. Todavia, o seu objetivo real foi o de fortalecer o capitalismo, colocando toda a produção agrícola e pecuária mundial sob o controle de empresas transnacionais. Em ambos os momentos, agências internacionais das Nações Unidas como a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura), e a União Europeia nas PAC (Políticas Agrícolas Comuns), ficaram à frente destas propostas. 

Anos volvidos, em finais de 2019, a Comissão Europeia apresenta o Pacto Verde Europeu (European Green Deal) como estratégia para confrontar os problemas derivados da crise do clima e do ambiente até 2050, mas que continua sem propor mudanças estruturais ao capitalismo. A campanha do Green New Deal for Europe é uma resposta da sociedade civil, que visa aglutinar organizações e movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e ativistas para confrontar o Pacto Verde Europeu, exigindo justiça ambiental para todxs.

Para concluir a nossa reflexão, tiramos partido das inquietações que Stefania apresenta no fim da entrevista: “Que forma é que esta luta pode tomar, afinal? Como sair deste compromisso com o capitalismo?” Neste sentido, Stefania chama a atenção para as “reservas extrativas da Amazônia” como aquelas partes da floresta ainda protegidas da exploração do capital onde vivem populações que cuidam dessas áreas e que têm persistido ao tempo, mas que a nova pandemia pode colocar em risco. As experiências de luta que abrem possibilidades mais reforçadas após os impactos da Covid-19 são aquelas dinamizadas por associações de mulheres, grupos e ativistas feministas que, desde as organizações populares até ao mundo académico, estão refletindo e repensando a economia e a política, trazendo a produção e a reprodução da vida como centro de todos os debates teóricos e práticos. 

Neste âmbito, Stefania Barca fala das “forças de reprodução”, referindo-se ao trabalho reprodutivo, o que dialoga com a visão da investigadora do CES, Teresa Cunha, quando esta refere que “todo o trabalho reprodutivo é produtivo”. Economistas feministas espanholas, como Amaia Pérez Orozco e Yolanda Jubeto, entre outras, aprofundam a reflexão sobre as formas e estratégias baseadas nas práticas feministas organizadas em todo o mundo, que são as reais sustentadoras da vida, como a Covid-19 também revela. Embora alguns economistas ortodoxos tenham interpretado que a pandemia paralisou o trabalho e a economia por um tempo em todo o mundo, nem os empregos nem a economia daqueles que produzem, reproduzem e sustentam a vida pararam, muito menos abrandaram. Foram e são precisamente aquelxs que atuam na cadeia dos cuidados, não apenas no campo da saúde, mas também na educação, produção de alimentos e serviços essenciais, como todos os outros relacionados à limpeza. Estes são os trabalhos indispensáveis para a produção e reprodução das nossas vidas.

Segundo Elizabeth Peredo na entrevista ao Pólen, são fruto de “(…) conhecimentos que vêm da experiência dos corpos, do afeto, do vínculo, da criação de comunidade, e de cuidado dos bens comuns (…)”. São realizados por pessoas racializadas, precárias, vulneráveis (em termos por exemplo de condições de emprego, moradia, saúde, sofrimento de violências) e principalmente, mulheres. Precisamente para poder apoiar todas as pessoas que estão numa situação de risco de serem infetadas pela Covid-19, por não pararem de trabalhar e circular no espaço público, têm sido apresentadas diferentes propostas a pensar também que o número de pessoas nessa situação aumentou devido à pandemia. Durante e depois da pandemia, há iniciativas em curso visando a implementação de algum tipo de renda mínima vital, a partir de abordagens que tratam diferentes como iguais, já que não diferenciam as/os mais vulneráveis. A Ecologia Política Feminista aponta estas desigualdades que nos levaram até esta crise1

Surgiram deste modo articulações2 entre propostas feministas, como a organizada em torno da Renda de Cuidados da Campanha #CareIncomeNow3 avançada pelas organizações feministas Global Women’s Strike (GWS) and Women of Colour com um caráter especialmente dirigido e pensado para as pessoas mais vulneráveis, e a campanha Green New Deal for Europe.  

Também os povos indígenas em todo o mundo e, especialmente nas Américas (Turtle Island e Abya Yala)4, lutam há mais de 500 anos, primeiro contra as invasões coloniais, e mais tarde contra as “novas caravelas” neoliberais que chegaram com as empresas transnacionais. Destacamos também nos últimos anos a luta de diferentes povos que fazem parte das primeiras nações dos EUA e do Canadá contra a construção de gasodutos e oleodutos que atravessam e poluem os seus territórios e que também têm um impacto específico sobre as mulheres e meninas indígenas desaparecidas e assassinadas, MMIW (Missing and Murdered Indigenous Women). Um grande número desses casos acontecem em locais onde trabalhadores estrangeiros estão instalados, nos chamados campos de mineração. A relação entre trabalhadores de mineração vindos de fora dos territórios e o aumento de estupros, assassinatos e desaparecimentos de meninas e mulheres indígenas e comunidades locais não é exclusiva da América do Norte, também ocorre em muitos países da América do Sul e do resto do Mundo. Nessas lutas contra gasodutos e oleodutos, é importante ressaltar que, sendo inicialmente lutas de povos e de organizações indígenas, elas acabam forjando alianças com lutas de outros setores ambientais5, ecológicos e racializados. Tal como relatou LaDonna Bravebull, promotora do acampamento indígena Sacred Stone em Standing Rock, território do povo Sioux Lakota, em South Dakota nos EUA, contra a construção e o avanço do gasoduto DAPL Dakota Access Pipeline que tem como um dos seus financiadores internacionais o Banco Bilbao Vizcaya (BBVA) da Espanha. 

Na sua entrevista ao PÓLEN, LaDonna conta sobre essa experiência e deixa-nos uma mensagem final inspiradora: “Eu estou aqui porque eu acredito que se vocês pegarem na minha mão e se nos ampararmos, podemos mudar o mundo!”.

No início de julho de 2020, podemos dizer que uma vitória foi alcançada felizmente a nível jurídico, após a decisão de um juiz federal fechar e esvaziar o oleoduto à espera de revisões de avaliações dos impactos ambientais6. No início de 2020, outra luta na província da Colúmbia Britânica também de origem indígena contra o Coastal GasLink7 contou com alianças e ramificações em outros setores e movimentos sociais, e sindicatos, e operárixs e quase parou o Canadá de costa a costa. Mas chegou a Covid-19, e “o controle de segurança” do governo central e das forças policiais neutralizaram amplamente os protestos, à medida que as pessoas tiveram que voltar às suas comunidades devido à pandemia. Nesse momento, os povos indígenas que ainda conseguem uma organização que lhes permite algum controlo sobre o acesso e proteção dos seus territórios, colocaram bloqueios para manter a ordem interna e impedir que a doença entre nas suas comunidades. No entanto, aqueles que não paralisaram o seu trabalho, ou apenas as duas semanas iniciais do choque decorrente da pandemia, são as empresas de mineração e extração de petróleo e derivados que continuaram a trabalhar em grande ritmo. Continuam a avançar na construção de oleodutos e gasodutos em face da diminuição dos protestos, apoiando-se na legislação governamental e internacional que os favorece no Canadá e nos EUA, mas também internacionalmente, buscando a criminalização e perseguição das pessoas que poderão continuar a estar envolvidas em protestos. Além disso, também continuam a tirar partido das legislações e da ausência de protesto nos tempos de pandemia para desregular direitos e diminuir as medidas de proteção ambiental de grandes territórios que tinham/têm pelo menos alguma garantia de proteção, tais como parques nacionais e outras figuras legais de proteção ambiental. 

Será necessário retomar e fortalecer essas lutas de modo ainda mais abrangente e inclusivo, a partir dos diferentes setores e movimentos. Será preciso criar novas frentes, tais como as ações diretas (as quais serão mais vigiadas e controladas), e as lutas legais onde também haverá novas restrições a enfrentar e retrocessos nos direitos alcançados após muitos anos de resistência que terão de ser retomados com vigor. 

Finalmente, enquanto o sistema capitalista está dando respostas autoritárias e ameaçadoras para quem não obedece às ordens estabelecidas em face da pandemia, como acontece com os governos de Rodrigo Duterte nas Filipinas, ou Narendra Modi na Índia… Ou até medidas inadequadas (ou medida nenhuma) ao avaliar que o maior número de vítimas afeta as comunidades (raciais, indígenas, locais e camponesas) que são identificadas como dispensáveis e descartáveis por governos como os de Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos EUA, ou de Iván Duque na Colômbia… Em geral o sistema está tentando por todos os meios retornar o mais depressa possível a uma suposta normalidade, que foi a que nos levou à situação em que nos encontramos. São justamente os grupos auto-organizados de vizinhança, bairros, localidades, comunidades, que estão possibilitando que o número de vítimas da Covid-19 não seja ainda maior, e que permitem as conexões entre diversas experiências autogeridas, entre o campo e as cidades, e que chegam a pôr em risco as suas vidas nos países em que o controlo, proibição e criminalização dessas respostas auto-organizadas são mais fortes. É hora de desmascarar essa grande mentira e agir com as lutas de todxs xs trabalhadorxs, mesmo daquelxs que até agora não eram visíveis nos trabalhos reprodutivos e dos cuidados, e principalmente das mulheres, em conjunto com as demais lutas de setores e movimentos indígenas, racializados e das comunidades locais e de mulheres rurais, em alianças urbanas e rurais, desde os níveis mais locais e de vizinhança até os espaços regionais, transfronteiriços e internacionais. É hora de articular as práticas e estratégias que nos permitem sobreviver, transformar o sistema, e superar os impactos das mudanças climáticas e ambientais.

por Oficina de Ecologia e Sociedade
A ler | 10 Agosto 2020 | Coronavírus, ecofeminismo, ecologia, green deal, mcrise ambiental, negacionismo, pandemia, Secção Pólen no Ar