A Lezíria do Tejo: o lugar das memórias, lutas e (des)encontros
artigo da secção Pólen no Ar
Begoña Dorronsoro, Sérgio Pedro e Lúcia Fernandes (Oficina de Ecologia e Sociedade, Centro de Estudos Sociais)
Portugal é um país pequeno, onde a realidade urbana e rural não está longe em termos de distância geográfica e, ainda assim, ignoramos como funcionam essas diferentes áreas, que frequentamente só se tornam visíveis quando colidem. Os rios, e o rio Tejo, em particular, têm um significado muito distinto para quem o vê fluir para Lisboa, abrindo para o Atlântico. Ele conseguiu tirar proveito de uma convivência que nas últimas décadas é ameaçada e comprometida, como reflete o documentário “Guardiões do Tejo - Vala Real”(1).
Nessa dinâmica fluvial, existem partes ainda mais invisíveis para aqueles que vivem num ambiente urbano. No caso do Tejo, as regiões da Lezíria, e os arredores da Vala Real fazem parte dessas áreas menos conhecidas, mas de absoluta importância para o rio e seus habitantes. As lezírias, cujo nome tem origem no árabe (al-jazira = a ilha) são formadas devido ao contato da água doce do rio com a água salgada, o que propicia a existência de solos muito férteis.
A Lezíria do Ribatejo é uma sub-região administrativa do Alentejo, que compreende um total de onze concelhos, sendo as principais cidades Santarém, Almeirim, Cartaxo, Rio Maior e o distrito de Azambuja, que pertence a Lisboa. Com uma área de 4.275 km² e uma população que atinge quase 250 mil habitantes, a região é caracterizada por uma vocação principalmente agrícola, baseada na fertilidade dos solos enriquecidos pelas contribuições do Tejo como rio principal e afluentes de importância como o Rio Maior, o Almonda e o Sorraia. A exploração agrícola foi reforçada com a construção de uma das obras de engenharia civil promovidas pelo Marquês de Pombal no século XVIII, um canal fluvial de cerca de 70 km, dos quais 17 kms são navegáveis e que constituíam, até à construção dos primeiros caminhos de ferro, e mais tarde outras rotas terrestres organizadas, uma solução para o transporte de mercadorias para Lisboa.
Paralelamente a esses usos, este canal permitiu a distribuição de uma parte importante das águas para usos agrícolas, o que levou à vocação agrícola, resultando num esforço para produzir em larga escala, culturas agrícolas (arroz, tomate predominantes) e pecuárias (suinicultura) intensivas até aos dias de hoje, numa área cuja dinâmica de renovação hídrica é mais lenta. Isto deve-se a ser um trecho em que o rio circula a velocidades mais baixas do que noutros trechos, o que é agravado pela construção de taludes, açudes e portões associados à Vala Real. É necessário acrescentar a tudo isto que o caráter transnacional que ocupa a grande bacia do rio Tejo (Tajo na sua rota pelo Estado espanhol) com uma gestão independente em cada um dos países, gera impactos localizados nas secções média e inferior do rio, já em território português, devido a uma política de décadas que verte uma parte considerável do fluxo do rio Tejo em território espanhol.
O Transvase Tajo-Segura transfere até um máximo anual de 650 hm3 do rio Tejo para as bacias dos rios Segura (600 hm3) e Guadiana (50 hm3) na região de Levante, principalmente nas províncias de Múrcia, Alicante e Almería. Este projeto quer promover a agricultura intensiva numa zona de clima temperado mediterrânico com um défice hídrico acentuado, apresentando um “mar de plástico” de estufas para culturas intensivas em municípios como El Ejido, em Almería. Com impactos marcantes não apenas nas áreas de origem das quais as águas do Tejo são extraídas para o transvase (Aragão e Castela), mas que também atravessam a fronteira já em terras portuguesas devido aos menores fluxos contribuídos pela Espanha o que, em situações de seca agravada, compromete não apenas a sobrevivência dos seres vivos, mas a existência do próprio rio.
Quem chega nestas áreas apenas como visitante, não tem o mesmo relacionamento com o rio. Muito menos as lembranças, daqueles que nasceram, viveram e conviveram com o Tejo, as terras e a sua evolução ao longo do tempo. Para uma pessoa urbana, pode ser surpreendente a aparente negligência e o grau de poluição em áreas onde os impactos dessa contaminação não derivam somente da presença das empresas, mas também dos impactos de políticas e ações que promoveram a exploração intensiva da água e dos solos para monoculturas de arroz e tomate e criação intensiva de suínos. Para os habitantes da região, os impactos vão além dos aparentes, pois as paisagens estão diretamente enraizadas nas memórias daquelas pessoas que nasceram ali, aprenderam a nadar em trechos de água onde agora seria impossível, como lembra no documentário Alfredo Lobato, do Movimento Ecológico do Vale de Santarém. Ou aquelas pessoas que, na área da desembocadura do rio, viram como o rendimento da sua forma tradicional de pesca foi significativamente reduzido, como no caso da lampreia ou moluscos bivalves, ou praticamente extinto como no caso do berbigão.
É uma poluição em princípio menos aparente, já que não há grandes chaminés emitindo fumaça, mas podemos encontrar efluentes (suiniculturas e agricultura) com alterações visíveis de cor e cheiro, que provêm das únicas empresas na região que trabalham com o tomate como a fábrica que existe em São João de Ribeira, ou dos resíduos da suinicultura, aos quais devemos adicionar descargas específicas não tratadas de atividades potencialmente de risco problemático, como centros hospitalares. Em todos estes casos há risco e incerteza do aparecimento e/ou continuidade de problemas de saúde que afetam/poderão afetar aquela/es que residem nas áreas próximas e têm uma exposição contínua; ou quem vem trabalhar temporariamente nas campanhas de colheita de tomate, pimento e outras.
Os principais componentes destas descargas contêm altas concentrações de herbicidas, pesticidas e matéria orgânica na forma de nitratos, nitritos e fosfatos que contribuem para um fenómeno conhecido na ecologia como eutrofização. Esta envolve precisamente o aumento de matéria orgânica num ambiente aquático que gera efeitos de superprodução de algas e plantas aquáticas, que podem atingir o ambiente físico de áreas aquáticas e lezírias, reduzindo a quantidade de oxigénio disponível para outros seres vivos, como peixes. José Lousa, da Associação Eco-Cartaxo, refere no documentário “Guardiões do Tejo - Vala Real” que, ao fazer um furo “antes dos cem metros, não se encontra água em condições”. Impactos adicionais surgem dessa situação, quando há também a presença descontrolada de espécies nas águas, como o jacinto de água (Eichhornia crassipes) original da região amazônica, introduzido em Portugal como planta ornamental, com capacidade de dobrar a sua população em apenas 5 dias (2) e que, em condições externas ao seu ambiente natural, sem espécies predadoras e concorrentes, e em locais onde já estão ocorrendo processos de eutrofização, acaba por se tornar uma espécie invasora que pode atingir amplas extensões aquáticas. O rio Sorraia, afluente do Tejo, é um dos locais onde esta espécie invasora tem maior incidência. Numa notícia de agosto de 2019, os habitantes da área já expressaram que “entre Benavente e Coruche, pode-se ver que cerca de 80% da superfície do rio foi coberta por esta espécie” (3).
O desaparecimento dos habitats aquáticos não termina só com os peixes, mas com todo um sistema de vida ao seu redor. A cultura Avieira e as suas memórias também correm o risco de desaparecer, com o seu modo de entender o meio e adaptar-se às variações no tempo entre as cheias e as estiagens, e no espaço, entre as barracas de palafita e os barcos como extensão da própria casa.
Na realidade portuguesa, na qual o ambiente urbano precisa e depende do meio rural, mas vive de costas voltadas para ele, vários requisitos e investimentos em áreas rurais mereciam ser feitos. Ainda que no ambiente urbano não vejamos os seus impactos diretos, as suas consequências a médio e longo prazo também nos afetam. As diferentes administrações públicas devem não apenas comprometer-se e planear, mas tomar medidas apropriadas para acabar ou pelo menos reduzir esses impactos. Existem medidas mais difíceis devido à realidade transnacional do rio Tejo e à pouca disponibilidade e vontade política dos governos sucessivos do estado espanhol em relação à sua política hídrica de alto impacto, como é o caso do Transvase Tajo-Segura. O que é certo é que em inúmeras ocasiões eles violaram as disposições que devem ser aplicadas no âmbito da União Europeia, com implicações no território espanhol e português. O governo espanhol não obedece a Bruxelas e ainda ignora as demandas e protestos da sociedade civil. Por isso, é importante continuar com a união de forças da sociedade civil nos dois lados da fronteira, como é o caso da confluência do ProTEJO, embora a luta seja desigual por ser necessário confrontar o poder das empresas e o poder público, com resultados esperados a longo prazo.
Para as administrações portuguesas existem ações relacionadas à melhoria das medições reais e contínuas no espaço e no tempo das condições do rio e das águas subterrâneas, com um controlo maior e mais rigoroso dos locais onde os esgotos poluidores são infiltrados, especialmente aqueles que são descartados de maneira irregular e ilegal. Mas as medições de matéria orgânica não são reconhecidas ainda como causa direta de fenómenos como a eutrofização. O fato da presença maciça de espécies invasoras, como o jacinto de água, deveria ser considerado um bioindicador das alterações que estão ocorrendo no meio. Da mesma forma, o projeto e a implementação de estações de tratamento de águas residuais (ETARs) são urgentemente necessários para gerir de maneira mais adequada todos os resíduos provocados pelas atividades agrícola e pecuária. Mas tudo isso servirá apenas como pequenos remendos se o problema central relacionado à mudança do modelo produtivo em geral não for atacado, e em particular nesta região, isso passaria por mudar a produção agrícola e pecuária intensiva para outros tipos de produção diversificada, de proximidade e sazonal, como apontam os diferentes movimentos e associações atentos à região.
Toda a mudança ocorrida no ambiente da Lezíria e da Vala Real potenciaram a organização e o fortalecimento de diferentes associações e movimentos ecologistas que monitorizam e denunciam desde há décadas estas situações nos media, e perante as administrações e instituições locais, regionais, nacionais e europeias. Nessa luta do dia a dia, eles promoveram diferentes tipos de ações: desde conscientizar as comunidades afetadas e o público em geral por meio de conferências, palestras, colóquios, cursos e ainda descidas pelo rio e afluentes (4); ações de incidência política por meio de perguntas ao governo, cartas, pareceres técnicos, relatórios e requerimentos para as diferentes administrações envolvidas; e sempre buscando e promovendo soluções além do exercício da denúncia e da limitação transfronteiriça, reclamando um aumento dos caudais na revisão da Convenção de Albufeira face à existência de disponibilidades hídricas em Espanha, e promovendo partilhas e ligações com movimentos de Espanha nos Fóruns Ibéricos do Tejo/Tajo Vivo, e em outras ações conjuntas (5). Destas organizações principais, apresentamos as informações mais relevantes e formas de contacto para potenciar sinergias e fortalecer as lutas, conhecer as novidades que reportam, assim como apoiar as suas denúncias e estudos, e incentivar a adesão de mais pessoas.
Eco-Cartaxo, Movimento Alternativo e Ecologista
É o mais antigo da região e com certeza dos mais antigos a nível nacional, nascido em 1974 com uma vocação pela agricultura biológica e constituindo-se em Fórum Ecologista.
Tem um grupo em Facebook onde poderá seguir as suas notícias e iniciativas.
Surge em 2010 como iniciativa de vários moradores do Rio Maior. Seu lema é “promover a participação ativa de todo e qualquer cidadão nas atividades e nas decisões relacionadas com o ambiente, saúde pública, qualidade de vida e ordenamento do território do nosso Concelho” (frase retirada de https://www.facebook.com/pg/Movimento-Civico-Ar-Puro-229912167034789/about/?ref=page_internal) Têm também um blog com mais informações.
Movimento Ecologista Vale de Santarém
Já desde o seu nascimento em 2013 assinalam que “o maior problema reside no rio Maior/Vala Real, que há anos sofre constante e progressiva poluição, não só nos limites da freguesia mas também a montante” (frase retirada de http://movecologsita.blogspot.com/2013/12/criacao-do-movimento-ecologista-vale-de.html). Desde então tem feito várias iniciativas, atividades e propostas, muitas delas conjuntas com o Eco-Cartaxo e o Movimento Cívico Ar Puro.
E fruto de coordenações e confluências de diferentes organizações e pessoas, também com tentativas de ligações transfronteiriças, surge em 2009 o ProTEJO, Movimento pelo Tejo “que congrega todos os cidadãos e organizações da bacia do TEJO em Portugal, trocando experiências e informação, para que se consolidem e amplifiquem as distintas actuações de organização e mobilização social”.
As três organizações acima mencionadas fazem parte do ProTEJO que têm um grupo de discussão Facebook além de um blog onde poder seguir todas as iniciativas e atividades “na defesa e promoção da bacia hidrográfica do Tejo – rio Tejo e seus afluentes – nas vertentes ambiental, científica, cultural, social e patrimonial”.
Referências:
- Documentário “Guardiões do Tejo – Vala Real”
- Eichhornia crassipes (jacinto-de-água)
http://invasoras.pt/wp-content/uploads/2012/10/Eichhornia-crassipes_torrinha1.pdf
- Invasão de jacintos de água ameaça rio Sorraia. Fonte: Público (20/08/2019)
https://www.publico.pt/2019/08/20/local/noticia/invasao-jacintos-agua-ameaca-rio-sorraia-1883944
- Video “Descida do rio Maior entre a ponte do Vale de Santarém e de Santana-Cartaxo” (Movimento Ecologista Vale do Santarém, 16/06/2019)