O papel das bibliotecas comunitárias na redução das desigualdades sociais educativas: uma reflexão a partir de experiências em Luanda
A desigualdade social em Angola manifesta-se não apenas nas disparidades económicas, mas também no acesso à educação, à informação e à cultura. De acordo com o Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde (IIMS, 2015–2016), menos de um terço das crianças entre 3 e 5 anos estavam integradas no sistema de educação pré-escolar o que, desde cedo, compromete o percurso educativo e reprodutivo dessas populações.
É neste contexto que surgem muitas vezes à margem das políticas públicas bibliotecas comunitárias, independentes ou alternativas, que se estruturam como respostas sociais ao apagamento do direito à leitura e à formação crítica. Estas bibliotecas vão além da função de conservação do livro: tornam-se espaços vivos de mediação cultural, resistência e formação de consciência colectiva.
As bibliotecas comunitárias são criadas e mantidas pela sociedade civil, com o objetivo de proporcionar o acesso ao livro, à leitura e à cidadania, acolhendo as necessidades e a realidade das comunidades. Estas, em geral, são iniciativas da própria comunidade, entretanto alguns destes espaços são criados por organizações não governamentais, instituições, associações e empresas do sector privado. De acordo com (Leite, 2019, p. 47), investir nas comunidades e nos sectores sociais desfavorecidos é uma estratégia para que a comunicação não seja apenas um mecanismo de opressão, mas de liberdade, mudança social e de oportunidades de acesso ao conhecimento a pessoas que por diferentes factores geográficos e sociais são excluídas.
A biblioteca comunitária como espaço de resgate simbólico
De acordo com (Rosa, 2017) apud Bourdieu (1989), os trajectos individuais são condicionados pelo habitus um sistema de disposições internalizadas que orientam as formas de pensar, agir e perceber o mundo, moldado pela posição social que o indivíduo ocupa. É a partir deste habitus que se reproduz a estrutura social, muitas vezes sem que os sujeitos tenham plena consciência disso, pois essa reprodução ocorre com a sua adesão simbólica às normas dominantes.
No contexto angolano, observa-se que muitos jovens das periferias urbanas não partilham do mesmo habitus linguístico, cultural e estético exigido pelo sistema escolar. Isso os coloca, desde cedo, em desvantagem num ambiente onde a “cultura legítima” nas palavras de Bourdieu é naturalizada como universal, mas corresponde, na verdade, às práticas da classe dominante.
O acesso desigual ao capital cultural, como o domínio da norma culta, experiências com leitura, familiaridade com livros, arte ou línguas estrangeiras, impacta diretamente nos resultados escolares (Bourdieu, 1998). Por exemplo, enquanto um estudante de classe média cresce rodeado de livros e discursos elaborados, muitos dos jovens que frequentam as Bibliotecas 10Padronizada, Wiza’tanga, Livros São Portas, Contra´Ignorância e outras, tiveram seu primeiro contacto significativo com a leitura já na adolescência fora do espaço escolar e dentro de uma biblioteca comunitária.
Esse desequilíbrio é sustentado por aquilo que Bourdieu chama de violência simbólica, um mecanismo subtil através do qual a escola e outras instituições impõem uma cultura como superior, levando os sujeitos das classes populares a aceitarem essa imposição como legítima (Vasconcellos, 2002, p. 24). O ambiente escolar, nesse sentido, torna-se um campo de reprodução da exclusão, ao exigir competências que só são acessíveis a quem já possui capital cultural acumulado.
As bibliotecas comunitárias e alternativas emergem, nesse cenário, como espaços de resistência à violência simbólica, pois rompem com o ciclo de reprodução cultural elitista ao oferecer o acesso gratuito, afetivo e horizontal ao saber. Elas não apenas fornecem livros, mas criam um novo habitus de leitura, expressão e pensamento crítico que desnaturaliza a exclusão.
Bibliotecas alternativas e redes de leitura contra a exclusão
No contexto angolano, marcado por profundas desigualdades no acesso à educação, à cultura e à informação, as bibliotecas comunitárias e alternativas emergem como respostas concretas às ausências do Estado e às limitações das bibliotecas públicas tradicionais. Essas iniciativas surgem de forma espontânea, enraizadas na realidade local, e assumem um papel multifuncional: são ao mesmo tempo espaços culturais, educativos, afectivos e instrumento de educação patriótica.
Como destaca (Rabello, 1987), essas bibliotecas operam “de baixo para cima”, sendo construídas a partir das demandas reais das comunidades e não impostas por uma lógica institucional verticalizada. Esse modelo participativo permite que a biblioteca seja não apenas um lugar de acesso à leitura, mas também de escuta, pertença e formação cidadã.
No caso angolano, é notório que muitos bairros periféricos, como o Sambizanga, Rangel, O Rocha Pinto e a Robaldina, permanecem à margem das políticas públicas de cultura e educação. A ausência de bibliotecas públicas operacionais e acessíveis reforça o fosso entre quem tem e quem não tem acesso à informação qualificada. Diante disso, projectos como a Biblioteca Comunitária 10Padronizada, ContraIgnorância, Wiza’tanga, e Livros São Portas assumem o protagonismo de reverter esse quadro com criatividade, voluntariado e visão comunitária.
Na visão de (Freire, 1996), ensinar é um acto de amor, escuta e compromisso com os oprimidos. Neste sentido, as bibliotecas alternativas aproximam-se do modelo freiriano: não apenas transmitem conteúdos, mas promovem diálogo e consciência crítica, criando ambientes de aprendizagem horizontal, onde o conhecimento parte da experiência e da troca entre sujeitos.
De acordo com (Nogueira, 2013), ao estudar bibliotecas em contextos africanos e de exclusão social, aponta que sua maior potência reside na capacidade de descentralizar a cultura e democratizar o saber, sobretudo quando se moldam às dinâmicas comunitárias. Segundo ele, “a biblioteca só se torna relevante para o povo se estiver onde o povo está, falando a sua língua e respeitando os seus silêncios”.
A relevância das bibliotecas comunitárias tem sido também reconhecida pela própria população. Segundo reportagem da Rádio Luanda (2024), transmitida em alusão à efeméride do 1.º de julho, “os cidadãos defendem que a escassez de bibliotecas comunitárias tem contribuído para o fraco aproveitamento de alguns estudantes”. A matéria destaca ainda que, diante do número elevado de crianças e adolescentes fora do sistema de ensino, esses espaços tornam-se fundamentais para o acesso à informação, a promoção da alfabetização e a preservação do patrimônio cultural.
(…) a biblioteca tem sido palco para lançamentos de livros, concursos de spoken word e encontros com artistas como Ondjaki e Laton, tornando-se referência cultural para jovens da zona da Robaldina. Esses eventos demonstram que a leitura pode ser mediada não apenas por professores ou bibliotecários, mas também por artistas e leitores comuns que inspiram e criam sentido coletivo em torno do livro. (Nteka, 2021).
Essa constatação, oriunda de meios de comunicação tradicionais, reforça o que já vêm apontando estudos acadêmicos e experiências de base. A carência de bibliotecas comunitárias impacta negativamente o processo de ensino e aprendizagem, sobretudo em zonas periféricas, onde o acesso ao livro é escasso e o suporte escolar é precário.
Assim, ao contrário do modelo tradicional de biblioteca que pressupõe um leitor ideal e passivo, as bibliotecas comunitárias em Angola activam leitores reais, plurais e participantes, fazendo com que a leitura se torne um acto coletivo e socialmente transformador. Mais do que oferecer livros, esses espaços produzem pertencimento, memória e possibilidade.
A leitura como direito e como ferramenta de justiça
Ler é um direito humano fundamental, consagrado por instrumentos jurídicos internacionais e refletido, ainda que de forma insuficiente, na legislação nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 26.º, garante o direito à educação e ao pleno desenvolvimento da personalidade humana. No mesmo sentido, a Constituição da República de Angola assegura no artigo 79.º o direito à educação, e no artigo 47.º o direito à cultura, incluindo o livre acesso à criação cultural, científica e artística. Ainda assim, esses direitos permanecem limitados na prática, especialmente em zonas periféricas, onde o acesso ao livro e à leitura é precário ou inexistente.
De acordo com o Relatório da UNICEF Angola (2022), mais de 2 milhões de crianças angolanas entre 6 e 17 anos estavam fora da escola. Já um estudo do INE (2016) indica que mais de 30% da população angolana é analfabeta, com taxas mais elevadas entre mulheres e habitantes de zonas rurais. A taxa de alfabetização da população com mais de 15 anos era cerca de 69% em 2022. Além disso, o Índice de Conclusão da Educação Primária atingiu apenas 61% em 2022, comparado com a média global de 92%, esses dados escancaram o fosso entre o direito formal à educação e o seu acesso real, e reforçam o papel estratégico das bibliotecas comunitárias na promoção da equidade educativa e da justiça social.
A leitura partilhada e coletiva, como ocorre em várias bibliotecas comunitárias angolanas, reduz o isolamento social e reforça o sentimento de pertença. Mais do que um iniciativa individual, ler em comunidade torna-se um gesto político: uma forma de resistência, e de reivindicação de cidadania plena num país ainda marcado por desigualdades estruturais.
Considerações Finais
As bibliotecas comunitárias e alternativas em Angola têm revelado um poder transformador onde o Estado muitas vezes não chega. Surgidas da criatividade, da escuta e do compromisso local, essas iniciativas reinventam a prática educativa ao promoverem a leitura como acto coletivo, afectivo e politicamente consciente. Elas oferecem acesso à cultura e oportunidades de aprendizagem em territórios sistematicamente negligenciados.
As iniciativas mencionadas no presente texto não são as únicas, existem outras espalhadas por Luanda e por Angola que através das suas acções e resultados alcançados que é possível criar espaços de leitura onde antes havia apenas silêncio institucional. Esses espaços actuam como dispositivos de justiça social, permitindo que jovens e crianças desenvolvam competências cognitivas, emocionais e críticas, mesmo fora da escola formal.
No entanto, para que cumpram sua função plena e sustentável, essas bibliotecas precisam mais do que voluntariado: precisam de suporte técnico, profissional e científico, como sublinha a própria Agenda 2030. Apoiar essas iniciativas é uma forma concreta de contribuir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial os ODS 4 (Educação de Qualidade), 10 (Redução das Desigualdades) e 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis). A expressão “não deixar ninguém para trás”, tão presente no discurso dos ODS, só se realiza se a cultura e a leitura forem democratizadas até os lugares mais invisibilizados.
Diante de mais de 2 milhões de crianças fora do sistema de ensino e da ausência de bibliotecas públicas funcionais em bairros periféricos, torna-se urgente reconhecer, integrar e fortalecer essas bibliotecas comunitárias nas políticas públicas de educação e cultura. Elas não substituem o Estado, mas apontam caminhos alternativos para um desenvolvimento mais humano e participativo.
Porque, como revelam as experiências aqui partilhadas, cada livro lido é uma vida ampliada, e cada biblioteca aberta é uma porta para o país que queremos construir inclusivo, plural e justo.
Referências Bibliograficas
Freire, P. (1996). Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra.
Leite, G. (2019). Comunidades Sustentáveis. Lisboa: Alatas.
Nogueira, D. (2013). Bibliotecas para a Transformação Social em África: desafios e caminhos. Revista Africana de Educação, pp. 2-19.
Nteka, I. (2021). Bibliotecas comunitárias insurgentes: o caso da 10Padronizada”. Entretons Hurbanos: Planeamento e Design Urbano. Revista Digital, 1-2.
Rabello, M. (1987). Bibliotecas Públicas e a Realidade Social. Rio de Janeiro: NBB.
Rosa, T. B. (4 de Janeiro de 2017). O Poder em Bourdieu e Foucault: Considerações sobre o poder simbólico e poder disciplinar. Revistas Sem Aspas, pp. 3-12.
Vasconcellos, C. d. (2002). Planejamento: Projeto de Ensino e Aprendizagem e Projeto Politico-pedagógico - Elementos metodológicos para elementos de realização 10º Edição. São Paulo: Libertad.