Membranas do futuro

Aqui

“(…) hoje abre-se um desafio: encontrar a capacidade de introduzir o futuro nas coisas que se fazem no presente. Em suma, aprender a mergulhar a realidade no sonho.” (Staid, 156)

O antropólogo Andrea Staid termina o livro Casa Viva (2024) com a citação que introduz este texto. Nele, propõe-se a pensar e a pôr em prática alternativas ao habitar, pelas quais as casas onde moramos fazem um contínuo entre o dentro e o fora, protegem-nos, mas também nos expõem, tornando-nos parte da envolvente. Casas que são construídas com materiais locais e que, uma vez desabitadas e devolvidas à terra, deixam a menor marca possível da sua existência. De matriz anarquista, Staid fala das nossas habitações como direitos básicos e construções que, embora as tenhamos transformado em produtos de mercado e inventado leis que acabaram por criar dificuldade de acesso às mesmas, são consequência natural do nosso viver. Da mesma forma que outros animais fazem ninhos, tocas, nós construímos cabanas, encontrámos proteções em pedras e construímos lugares para erguer casa. Mostra-nos ainda como, ao longo dos tempos, quase sempre o fizemos em comunidade, partilhando e perpetuando saberes técnicos entre todos. Cada um de nós saberia construir a sua própria casa, porque esse saber nos teria sido transmitido, mas não o fazia sozinho. Cada construção, um momento de partilha e de comunhão. A partir da construção de uma casa, projeta-se e concretiza-se um viver vindouro e exerce-se essa capacidade que Staid refere como um desafio: introduzir futuro no presente, libertando-o do esmorecimento, pressão e daquilo que o bloqueia, abrindo-o ao sonho. Ou seja, quando tudo está prestes a terminar, encontrar a brecha de onde surge o que está por vir, o que desconhecemos porque ainda não trouxemos à realidade que compartilhamos uns com os outros. Ainda não fizemos essa casa viva – e que, porque é viva, é acolhedora mas também tumultuosa, como os sonhos, nem sempre amenos.

Todos os dias somos informados, não só pelas notícias mas também se deixarmos as coisas do mundo propagarem-se até nós, das guerras, dos massacres, genocídios e ecocídios vários em curso. Sabemos o que estiola. Por isso o projeto de introduzir futuro no presente é imenso e pode baralhar-nos pelo seu tamanho, mas não a ponto de nos bloquear e pensarmos que tal tarefa é impossível… É preciso voltar a olhar para o que está presente e ver os futuros que brotam, a abundância da qual pode provir o futuro. Para deixar em aberto as suas possibilidades, instalemo-nos no presente quotidiano, naquilo que está mais à mão de semear. Sejamos permeáveis ao que vive, quer viver e contraria a ausência de futuro. É preciso reparar, re-parar1 o presente: parar nele, não propriamente concertá-lo, embora esse seja também um apelo necessário. Reparar o que pode romper com o “realismo”, essa espessa cortina que oculta as possibilidades de futuro. 

“Não pode haver crescimento ilimitado num mundo limitado, a destruição do planeta está aí para todos verem, devemos parar, o Antropoceno é o apocalipse, em seu duplo sentido etimológico e escatológico. Talvez seja tarde demais para isto, mas a única possibilidade é repensar a nossa existência, olhando também para quem não aceitou os mitos capitalistas; caso contrário, temos de nos render ao que Mark Fisher descreveu como realismo capitalista, esse impasse catastrófico de uma sociedade em que qualquer futuro foi retirado e cujas possibilidades, ou muitas delas, foram excluídas.” (Staid, 141)

Não sendo ilimitadas, são muitas as possibilidades de não nos rendermos a este “realismo” sem alternativas e é impossível exauri-las num único texto. Comecemos pela posição que ocupamos. Olho à volta, para pequenos fragmentos do presente em que vivo, trazendo simultaneamente algumas memórias que me habitam, convidando o leitor a fazer o mesmo, escrevendo assim o seu próprio texto de futuro a partir de um olhar para o que o envolve no presente. Permitindo, a partir daí, nascer o mundo em que acredita ser possível viver.

  1. Deixando o sonho entrar

Vivi, quase sempre, nos arredores. Primeiro por circunstâncias de nascimento e economia, depois por contingência e escolha. Quando fui bolseira numa universidade parisiense para fazer doutoramento, também vivi cinco anos nos arredores. Isto tinha várias vantagens: a mais imediata, o preço de um quarto minúsculo sob um teto nos limites da cidade. Ali, tinha um T0 com espaço para viver, receber pessoas e trabalhar. Tratava-se de uma pequena casa nos fundos do jardim dos proprietários, com floreiras e uma janela de vidro no telhado por cima da cama onde, por vezes, um gato se deitava. Era como se o meu colchão, situado num mezanino junto ao teto, e a sua cama de vidro, fossem um beliche e ele o meu colega de quarto. Muito lhe vi a barriga e as almofadas das patas através da sua cama transparente. No verão, o gato entrava por outra janelinha aberta. Nunca queria comida, apenas desejava estar ali. Um dia acordei e, antes de abrir os olhos, senti uma forte presença por cima de mim. Era o gato, com o seu focinho a mais ou menos dois centímetros do meu nariz, que me fixava as pálpebras fechadas à espera que se abrissem. Não sei quanto tempo ficámos ali especados a olhar nos olhos um do outro. Ele exercia um poder evidente sobre mim. Talvez eu sobre ele. Não sei.No tempo dos relógios deve ter passado um breve ápice, mas a profundidade do tempo do encontro entre o olhar de um gato e o olhar de um humano não se mede por estes aparelhos que inventámos. Mais tarde voltei a ter a sorte de encontrar este tempo: no olhar de uma raposa e no de um cão, um velho pastor serrano, cujo olhar é do tamanho da montanha. No que na cidade o gato é o mais próximo do encontro com o jaguar, lembro-me novamente de Staid, quando procura explicar o perspetivismo ameríndio de Viveiros de Castro e o seu “mundo por vir”: 

“(…) quando um jaguar olha outro jaguar vê um homem, mas quando olha para um homem vê um macaco. Ninguém está acima ou vê as coisas de fora; não há um olhar divino ou humano superior. Assim, tudo o que existe no cosmos se vê como humano, mas não vê as outras espécies como tal. A humanidade é tanto uma condição universal como uma perspectiva estritamente deítica e auto-referencial. É por isso que toda a interacção entre espécies no mundo ameríndio é um assunto internacional, uma negociação diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a maior cautela. Precisamente porque é cosmopolítica.” (Staid, 154)  

O gato veria em mim um macaco, ou o olhar foi um limiar, uma fricção de mundos dos arredores ainda não domesticados? Veria a possibilidade de uma operação de guerra ou a de uma cosmopolítica - ou seja, um espaço criativo que não é precedido por fronteiras artificiais entre territórios ou espécies? Esse espaço sem delimitações estanques, com telhados de vidro que, por vezes, se quebram ou se atravessam, e onde coexistimos, está aqui, hoje, e talvez seja aquele que melhor nos impele a olhar para o presente considerando-o um lugar intersticial, uma membrana porosa que vinca a passagem entre as teias da história dos passados e dos futuros possíveis.  

Desde que Kant lançou as bases de um cosmopolitismo universalista2, outros pensadores se debruçaram sobre a experiência e a defesa do cosmopolitismo – por cá, lembremos os trabalhos de Viriato Soromenho Marques3, contra os populismos nacionalistas; pensemos no mundo sem fronteiras e na comunidade terrestre de Achille Mbembe, ou nos trabalhos sobre o estrangeiro de Julia Kristeva4, lembrando que foi na Grécia o surgimento da compreensão do outro como estrangeiro, o bárbaro como o “antigrego”, com as danadas Danaides, mulheres que, na tragédia As suplicantes, de Ésquilo, fugiram do Egipto e buscaram acolhimento em território grego, refugiadas de planos e de lutas patriarcais, e da obrigatoriedade de um casamento forçado5.

As Danaides ilustram o que nas pessoas fazem as definições de fronteiras estanques, da criação de Estados e, mais tarde, de nações que separam um “nós” dos “outros”. Outro contributo para um movimento de transição entre passado e futuro é o  trabalho do filósofo anglo-ganês, Kwame Anthony Appiah que, no seu texto “Patriotas Cosmopolitas”, traz uma perspetiva que não termina com a perspetiva de nação, mas abre-a, quebrando com a estanquidade dessa separação. Lembrando uma conversa com o seu pai, escreveu:

“(…) não importando onde escolhêssemos viver – e, como cidadãos do mundo, poderíamos viver em qualquer parte – deveríamos ter certeza de deixar tal lugar “melhor do que o encontramos”. (…) A calúnia favorita que os nacionalistas estreitos assacam contra nós, cosmopolitas, é dizer que não temos raízes. Mas meu pai acreditava num cosmopolitismo enraizado ou, se preferem, num patriotismo cosmopolita. Tal como Gertrude Stein, ele acreditava que as raízes não tinham sentido se não se pudesse carregá-las consigo.” (Appiah, 2)

Contra nacionalismos fechados, raízes que caminham. Este futuro no mundo que já existe:

“(…) O cosmopolita também imagina que em um mundo assim nem todos acharão melhor ficar em sua pátria natal, de modo que a circulação de pessoas entre localidades diferentes envolverá não apenas turismo cultural (…) mas imigração, nomadismo, diáspora. (…) Num mundo de patriotas cosmopolitas, as pessoas aceitariam a responsabilidade cidadã de nutrir a cultura e a política de seus lugares. Muitos, sem dúvida, viveriam a vida nos lugares que os moldaram; e esta é uma das razões porque as práticas culturais locais se sustentariam e seriam transmitidas. Mas muitos mudariam; e isto significa que também as práticas culturais viajariam (…). O resultado seria um mundo no qual cada forma de vida humana seria o resultado de processos duradouros e persistentes de hibridização cultural; um mundo, neste aspeto, muito parecido com o mundo em que vivemos.”  (Appiah, 2 e 3)

Numa multiplicidade de formas culturais que se entrelaçam, incessantemente criadas e inventadas. Numa dança de círculos que se fazem e desfazem, em processos de liberdade de associação e de dissociação, de construção de si mesmo e do mundo em que vivemos: 

“De fato, é justamente a celebração da variedade cultural – dentro e entre Estados – que distingue o cosmopolita de outros herdeiros do humanismo iluminista. É porque os humanos vivem melhor em menor escala que devemos defender não apenas os Estados, mas as regiões, as cidades, as ruas, os negócios, as corporações, as profissões, as famílias qua comunidades, como círculos entre muitos círculos menores que são esferas apropriadas de interesse moral. Devemos, em resumo, como cosmopolitas, defender os direitos dos outros de viver em Estados democráticos, com ricas possibilidades de associação entre e através fronteiras; Estados dos quais eles possam ser cidadãos patrióticos. E, como cosmopolitas, podemos reivindicar este direito para nós.” (Appiah, 14)

Não precisaremos de uma cultura comum única e homogénea, como  as que no passado se instituíram em identidades fechadas para Estados-nação, mas sim de “instituições comuns, com as condições necessárias para uma vida em comum. (…) devemos ser céticos, por razões históricas, acerca da criação de uma cultura nacional comum que centralize nossas vidas”. Appiah deixa-nos aqui a marca contextual do seu pensamento ético, o que se relaciona com a sua vivência na América do Norte e a sua opção pela defesa da democracia liberal. Este ceticismo não é mais do que a tentativa de garantir a diversidade que ainda encontramos no presente.

  1. Círculos 

Voltando aos arredores de Paris: não eram só as circunstâncias daquela casa com um telhado de vidro que me fizeram escolher os arredores. O meu código postal tinha um número que, na altura, era meio caminho para a segregação em entrevistas de emprego, marcas de um passado e de um presente de coexistência cultural e social conflituosa e de uma estrutura social racista e classista. Ali vivia uma enorme comunidade que cumpria o Ramadão; empregadas de supermercado cansadas pelo jejum; mercados de rua com azeitonas e bolos do Médio Oriente; conversas na lavandaria automática de bairro sobre  vantagens e desvantagens da poligamia; a senhoria que, sendo atriz, não deixou de confundir os meus estudos de Estética com estudos de esteticista; as línguas do autocarro para a cidade-luz quando havia greve de metro que eram, para mim, uma estranha sinfonia de sons e linguajares indecifráveis. O que me atraía eram os arredores como membrana: zona de encontro com outros mundos possíveis, diferentes dos académicos e artísticos que me tinham feito mudar de país.

Continuo nos arredores, e mais além. Apanho o comboio nesta travessia que me leva do campo para a cidade e vice-versa, e a linha de Azambuja-Sintra, aquele excerto entre Lisboa e Alverca, aparece-me como a membrana porosa que une continentes: da Europa a África, ao Médio Oriente, à Ásia do Sul e à Índia, à América Latina. Classes e culturas múltiplas. Uma cosmopolítica que diariamente ganha realidade temporária no trajeto de uma linha de comboio. Os arredores mostram o que de mais poroso existe neste território, ligado ao mundo, uma Europa cuja identidade é, como sempre foi, múltipla e de múltiplas pertenças. Será esta linha membrana ou veia que canaliza o sangue e os humores vitais que potenciam, literalmente, a cidade e o seu quotidiano? Os continentes que ali se cruzam têm ali, muitas vezes, o rosto do cansaço do trabalho.

Vou agora para os arredores campestres da cidade de Lisboa, arredados durante muito tempo. Ao conhecer esta zona há pouco mais de 10 anos, a 40 minutos do centro da cidade, vi ainda muitas faces que eram a expressão da consanguinidade e do isolamento a que estas aldeias estiveram votadas durante muito tempo, com estradas auto-construídas para os  habitantes poderem de lá sair. Mas o tecido social muda rapidamente. Também aqui se forjam novas e diversas comunidades, fundadas em associações livres, de proximidade, na crença consciente e regularmente nutrida em valores e princípios atentos à comunidade mais que humana, em prol da compreensão da nossa existência num nicho ecológico (cultural e biológico) que valoriza a biodiversidade - a diversidade das formas de vida, orgânicas, sociais ou culturais. A título de exemplo, vejamos a Comunidade do Alimento de Arruda e Arredores. Ali cultivam-se gestos e sementes antigas, que se vão recuperando, fazendo da implicação com o presente essa membrana que intervala passado e futuro. É um presente em gestação que tem sido literalmente entretecido com os fios do sonho.

Bibliografia:

Appiah, Kwame Anthony, (tad. de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães) PATRIOTAS COSMOPOLITAS,  Revista Brasileira de Ciências Sociais n. 13, vol. 36, fev. 1998, pp. 79-94, disponível em https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/kwame_anthony_appiah_-_patriotas_cosmopolitas.pdf (consultado a 11 setembro 2024)

Said, Andrea (trad. de Moreno Paulon), UMA CASA VIVA - reparar espaços, aprender a construi, Lisboa: Barricada de Livros, 2024

por Liliana Coutinho
A ler | 14 Setembro 2024 | arredores, construção, diversidade, futuro, resistência