Política da língua como prática da decolonialidade: uma reflexão começada

1. 

Este ano, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, por ocasião da cerimónia de entrega do Prémio Camões atribuído em 2021, a premiada, a escritora moçambicana Paulina Chiziane apelou à descolonização da língua portuguesa. Deu conta de como teve de enfrentar, quando começou o seu percurso literário, indicações normativas sobre o português que não devia usar – «os teus escritos não são bem bem bem na língua portuguesa» – , como se devesse abdicar da língua como a conhecera, a língua do lugar em que a vivera, e do português que realmente devia usar. “Para quem vem do chão”, começava assim o discurso de Chiziane, dando nota da comoção como dali, daquele seu lugar, chegou “a este lugar” em que discursa diante dos poderes soberanos dos países que têm o português como língua oficial, a indicação normativa «Tens de escrever bem bem bem na língua portuguesa» seria uma sentença de morte literária ainda antes de qualquer vida literária. Ignorando e vencendo as resistências – «negociando» é a palavra que usa –, Chiziane pôde fazer o caminho até «este lugar» e, di-lo assim – «achei que devia mostrar quem sou negociando a minha identidade, como mulher, como negra, como africana, através da língua portuguesa». Sabendo que a língua é coisa do corpo, ela não faz esse caminho sozinha: «Trago nas veias o sangue da cultura bantu e europeia, cuja transfusão recebi nas escolas do mundo e, por isso, a língua portuguesa que eu escrevo, tem as marcas das minhas origens. (…) No acto da escrita imprimo na língua portuguesa o poder da minha alma. Os sonhos de liberdade do meu povo.»

A língua tem lugar, enraizada num chão onde é vivida, mas, além disso, é lugar de expressão de lugares. No sentido em que através dela algo se mostra, a língua é faculdade de ser atravessada, lugar de influências e dependências que levam o nome de uma negociação e que são também uma forma de atravessar, o resultado de uma viagem do lugar de sentido que somos por lugares de sentido que outros são e reciprocamente. Era esse o sentido de negociação de identidade a que se referiu Chiziane. Travessia que consiste em se deixar atravessar, língua e território percorrem-se como uma fita de Moebius. 

A língua exprime o lugar que somos e o alcance de atravessar outros lugares, que não somos, coincidindo bem com a ideia de mundo e a abertura nele pressuposta. O mundo de cada um tem exterior, integra e vai além da identidade. Somos no mundo existindo no sentido que a etimologia do ver «existir» justamente transmite - estar fora. O vínculo entre língua e mundo percebe-se pelo que aquela tem de faculdade de atravessamento, de se fazer veículo de atravessamento de lugares, e o que este tem de abertura, ser aí, para usar a expressão de Heidegger. 

Este vínculo aponta para um horizonte em que de vários modos se declinam valores e a disputa pelo seu reconhecimento. Pelo menos três olhares podem ser focados a partir de palavras que, sozinhas, reverberam o imaginário da acção – dignidade, justiça e liberdade.  

Desde a perspectiva das Weltanschauungen (visões de mundo), cuja diferenciação Wilhelm von Humboldt (1767-1835) ligava, quase simbioticamente, a um recorte linguístico, a constituição do sentido do mundo confere especial dignidade à língua. A tese de von Humboldt viria a prolongar-se em perspectivas mais recentes como a hipótese Sapir-Whorf e habitualmente classificadas como relativismo linguístico. À luz destas perspectivas, uma língua comporta uma visão de mundo, e cada falante, na sua apropriação linguística, desenha um mundo1. Para a hermenêutica filosófica, esta dependência recíproca entre a distinção de realidades de um mundo vivido e a maneira pelas quais as exprimimos, afeiçoando-se mundo e língua e, dessa maneira, singularizando-se ambos, faz do mundo uma história de sentidos e da compreensão, nas palavras de Richard Palmer, «simultaneamente um fenómeno epistemológico e ontológico2». Uma língua tem a dignidade, pois, de um mundo inteiro, tornando indigna a supressão de uma língua. 

Há também um vínculo entre língua e território da ordem da justa oportunidade, e da igualdade dos envolvidos, num contexto de relações sociais e políticas atravessadas pela linguagem. Em suma, há uma questão de justiça, que, aliás, se desdobra em planos, seguindo a distinção de Miranda Fricker entre injustiça epistémica testimonial e injustiça epistémica hermenêutica3. Por um lado, o que se diz em língua portuguesa mais distante da norma culta tende a valer menos, a ser menos ouvido, até silenciado, independentemente do que diga, descredibilizando o testemunho, como uma espécie de falácia ad hominem; por outro, a própria língua tende a ser vigiada para que, na sua semântica e no seu fazer mundo, não dê a aparecer experiências e sentidos que estão aí, mas que desta maneira permanecem calados e inexistentes na língua-mundo em que deviam poder exprimir-se e ser.

Tanto mais que há, em terceiro lugar, um vínculo de liberdade através da linguagem, lembrando o que diz Hans-Georg Gadamer em Wahrheit und Methode4, onde faz uma oposição entre mundo (Welt) e meio envolvente (Umwelt). Para Gadamer, o habitante do mundo eleva-se do meio ambiente (Erhebung über die Umwelt) para ter um mundo. Este elevar-se forma-se através da linguagem e é, na verdade, um formar-se do próprio mundo, linguisticamente constituído. Ter mundo e ter linguagem, acima das determinações do meio ambiente, é ainda expressão de liberdade. Em suma, podemos dizer que se vive o mundo como uma linguagem que se habita e se articula acima da superfície literal das coisas. O mundo destaca-se do ambiente como o viver do mero sobreviver, do sentido livre do sentido literal, através da língua. 

Neste momento precisamos, contudo, de ir além do imaginário que informa esta leitura de Gadamer, desligando-nos da separação natureza-cultura5 pelo qual esta é informada, preservando, no entanto, este vínculo entre linguagem e liberdade. Mais do que se elevar, preservar este vínculo necessita hoje do movimento de aterrar, de fazer chão. De reconhecer que cada língua é relação, e meio de correlação, com um nicho ecológico, com o território e com o seu imaginário e que, quando estes se encontram, contaminam-se e interpenetram-se num movimento em que um e outro se desenham ou moldam reciprocamente.

Adentrando um pouco mais acerca desta relação entre língua e território, e mesmo entre língua e terra, refiramos o trabalho da linguista mapuche Elisa Locón Antíleo, quando refere que, do ponto de vista da cosmologia Mapuche, cada língua exprime uma relação específica com a terra e por isso, de cada vez que se perde uma língua, perde-se essa relação específica.6

2. 

A descrição feita por Paulina Chiziane no seu discurso pôde ser recebida com alguma amenidade porque, verdadeiramente, a escritora moçambicana chegou a este lugar, ao Prémio Camões, ao reconhecimento, o que significa que, pelo menos com ela, os obstáculos foram vencidos. O mundo-linguagem pôde exprimir-se, a língua portuguesa admitiu os atravessamentos. Mas é enganoso relativizar o seu testemunho, que realmente exprime um facto central e persistente da sua biografia literária. Melhor far-se-á em encontrar no que conta Chiziane motivos de atenção para as nossas práticas. Enquanto docentes universitários de humanidades, e, por isso, profissionais da avaliação de textos escritos em língua portuguesa, há uma atenção crítica a dedicar, nas nossas práticas de recepção e interacção, à maneira como a experiência descrita por Chiziane é partilhada pelos diferentes falantes de língua portuguesa com que nos vamos cruzando nos vários locais que vamos habitando e, em particular, o espaço da Universidade.

Milhares de pessoas do Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Lorosae estudam em universidades portuguesas motivadas pela possibilidade do uso da língua portuguesa de que são falantes. Contudo, não raro vêem-se a braços com a exigência de terem de escrever no português de Portugal apesar de serem falantes nativas de português, inteiramente competentes. Além da incapacitação a que são sujeitadas, pois, naturalmente, não são nativas de português de Portugal, vêem o português de que são falantes nativas desqualificado, bem à semelhança do lamento de Chiziane de que os seus escritos não seriam «bem bem bem na língua portuguesa». Não raro também, universitários recusam ler e avaliar trabalhos em variantes não portuguesas da língua portuguesa porque, dizem, não as dominam, como se essa não fosse uma dificuldade que se devessem imputar e fazer por superar. Domina-se competentemente a língua portuguesa se não se tem competência razoável de leitura da variante falada por 70 % ou 80% das pessoas que se reclamam falantes de português? Não raro finalmente, os mesmos universitários mais facilmente aceitam ler e avaliar um trabalho escrito em inglês, francês, espanhol, italiano, mesmo que, realmente, não dominem menos as outras variantes do português. A própria disponibilidade face a línguas estrangeiras de grandes potências cognitivas do continente europeu ou a indisponibilidade face às variantes não europeias da nossa própria língua é expressiva do alcance, muito para lá da esfera literária, do problema descrito por Chiziane. Será por estarmos mais disponíveis para estabelecer relações com esses territórios que vamos alimentando como sendo os territórios de referência do saber – e também de um certo mercado do saber – e não com os territórios a sul do mundo que ocupámos sem com eles nos termos relacionado? Sabendo que aí continua, desde tempos ancestrais, em gestação muito do que é a prática de um pensamento vivo e implicado no fazer mundo, essa seria também uma autolimitação que nos impomos. 

As três palavras de ordem acima pronunciadas – dignidade, justiça e liberdade – exigiriam uma resposta que, na eventualidade de não estar dentro das capacidades de um professor de Humanidades, deve cumprir à instituição, uma escola de humanidades, letras, artes, de forma especialmente saliente, sem prejuízo da expectativa de que assim seja em todas as instituições de ensino superior.  

Várias vozes e práticas têm aparecido a instigar uma discussão sobre este tema, de escritores, académicos, a artistas. Na sinopse da peça dirigida por Keli Freitas e Raquel André, “Outra Língua”, um trabalho coletivo que cruza criadoras de Brasil, Angola e Portugal, com criação, interpretação e texto de Nádia Yracema, Keli Freitas, Raquel André e Tita Maravilha, surgem as seguintes questões que nos parecem importar para este debate:

“Por ser o maior documento vivo da história de qualquer povo, uma língua tem de poder ser, sempre, uma nova língua. A língua é de quem a fala e é por amor à língua que se deve acreditar nela, duvidar dela, refazê-la. Todos os dias. Outra Língua é um espetáculo em que, a partir da experiência de falantes de português de diferentes países, se lança a questão: é possível, ao intervir sobre a língua, alterar a realidade que esta descreve? Que língua falamos afinal? Que histórias e que História transporta a língua portuguesa? Todas e todos que falam português podem dizer que falam a mesma língua? E a(s) nossa(s) língua(s), o que diz(em) sobre nós?”7  

3.

Aspecto central da discussão passa pela noção de “norma culta”. Há uma diferença entre os usos da fala e da escrita quotidiana, e também, na sua plasticidade, poética, e os usos da língua em contextos oficiais, jurídicos e académicos, habitualmente regulamos por essa norma. Debrucemo-nos somente sobre os usos académicos. O que acontece se só adotarmos esta norma padrão e a considerarmos como estanque? Até que ponto esta normatividade, se praticada, designadamente em contexto académico, não exprime uma perspetiva preconceituosa – um “preconceito linguístico” ou até só mesmo de dialecto – e a pressuposição, mais ou menos implícita, de subalternidade de vozes, saberes e práticas? 

Com estas questões, e com o que já se disse, não se pretende contestar a existência de uma norma culta, mas reconhecer o lugar das variações linguísticas (geográficas, históricas, sociais e de estilo) numa compreensão da língua com provida de uma organicidade viva, reflexo da sua vivência por comunidades que se encontram e atravessam numa comunidade linguística, e, mais importante, a função dessa norma culta e a atenção crítica aos seus usos extra-linguísticos, nomeadamente, de ordem política com vista a hierarquizar e subalternizar mundos-linguagem membros, por assim dizer, da comunidade linguística da língua portuguesa.

A este respeito, importa distinguir entre norma culta e norma padrão, dois conceitos da linguística que não coincidem. Antes disso, contudo, importa notar a ambivalência que perpassa no termo «norma», comum aos dois conceitos. Com efeito, norma significa tanto no plano da ocorrência estatística, sem quaisquer considerações normativas, como no campo normativo em que a correcção e a incorrecção são apontadas. Um exemplo simples seria dizer que a frase “a gente vamos” é estatisticamente bastante normal, ainda que implique um erro de concordância de número. Como no português do Brasil, se mistura o você com o tu como o arroz com o feijão8. E até que ponto o erro deve resistir ao uso, presumindo que a língua é feita por quem a fala? 

Abstraindo do problema desta ambivalência em torno da própria ideia de norma, o conceito de norma culta traz outros problemas. Como nota o linguista brasileiro Marcos Bagno, no seu incontornável ensaio A Norma Oculta[fn] Bagno, Marcos, 2003. A Norma Oculta – língua & poder na sociedade brasileira. 2ª ed. São Paulo: Parábola Editorial., grandes referências dos estudos linguísticos têm um entendimento culto e prescritivo da norma culta, bem diverso de um entendimento meramente descritivo com que coexiste. Celso Cunha e Lindley Cintra, por exemplo, entendem-na como uma «(…) tentativa de descrição do português a partir da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá». A este entendimento prescritivo da norma culta, Bagno associa dimensões doutrinárias, de preconceito, elitista, pretensamente homogénea, que separa a escrita da fala, cultuada, em contraste com o entendimento descritivo da norma culta, a que associa um tratamento científico, conceitual, socialmente variável, essencialmente heterogénea, ligando escrita e oralidade, em transformação. 

Marcos Bagno considera absurdo que no presente século se recorra ao entendimento prescritivo da norma culta, mesmo que tenha, no passado, feito sentido, nem que seja por falta de outros elementos que possam constituir um corpus linguístico. Nas nossas palavras, mantendo-se o entendimento de norma culta, estaremos diante de uma norma subalternizadora. Precisamente no âmbito da literatura, este elitismo confronta outras expressões da literatura, conduzindo a uma de duas situações: ou a rejeição dessas outras expressões por falta de cultivo, até de cultura, ao fim e no cabo, seriam incultas; ou a sua aceitação mediante uma suspensão do juízo, um estado de excepção paternalista para expressões literárias contrárias à norma culta. Talvez tenha sido nesta segunda situação que se tenha sentido Paulina Chiziane, de maneira, obviamente, inteiramente insatisfatória. 

O assunto não é fundamentalmente literário, de uma microcomunidade de falantes. A este propósito, voltemos ao discurso de Paulina Chiziane. Nele, a escritora também deu alguns exemplos de palavras cujo significado dicionarizado fazem, ainda hoje, reverberar um sentir colonial se não mesmo racista. Por exemplo, a palavra catinga. A respeito desta, pode ser controversa a discussão com base nos Dicionários de Língua Portuguesa. Os mais recentes excluíram da significação de mau odor humano a associação às pessoas racializadas que se encontrava nos dicionários mais antigos, com algumas décadas9

Pode apontar-se a Chiziane que deveria ter tido em melhor conta dicionários mais recentes. Pois, poderíamos debater se, realmente, nos usos da palavra a associação às pessoas racializadas não deixou de estar presente e se não foi o caso de dicionários mais recentes, conscientes da sensibilidade do assunto, se libertarem da associação e contribuírem assim para o seu esquecimento nos usos da língua. Contudo, talvez, a questão não esteja tanto nos dicionários, mas na língua viva usada e se, nesta, a identificação da catinga com um mau cheiro especificamente associado a pessoas racializadas persiste. Mais profundamente, há que perguntar ainda se persiste a significação social de que esse cheiro, com essa associação, não é tolerável, devendo por isso ser apagado como condição de sociabilidade. Mais profundamente porque, sob o pressuposto da associação da catinga ao próprio corpo da pessoa negra, tão inerente como a cor de pele, o que está a ser significado socialmente é que é condição de aceitação social dessa pessoa ter de renunciar à sua própria alegada “natureza”, às qualidades especificas da sua experiência e expressão. Neste curso de significações, ocorre uma objectivação de sujeitos que são, em seguida, obrigados a uma autodessubjectivação. Retomando os conceitos, fica sempre a impressão de que norma culta, mesmo num sentido descritivo e não prescritivo, não se livra de uma lógica de exclusão, que identifica, nem que seja por omissão, uma parte subalternizada. 

Distingue-se entre norma culta e norma padrão, todavia, concebida esta como norma abstracta, que apenas serviria o propósito de ligar variantes numa totalidade orgânica e não para segregar e subalternizar. Contudo, o problema persiste. Na linha de outro linguista brasileiro implicado na problemática, Carlos Alberto Faraco, que defende a necessidade de «travar uma guerra ideológica ao normativismo», Bagno escreve ainda em A Norma Oculta

“A norma-padrão que paira acima de nós como uma espada pronta para decepar nossas cabeças já deixou há muito tempo de ser um instrumento de regulação linguística: é, sim, um instrumento de opressão ideológica, de perseguição, de patrulha social, de discriminação e preconceito.”

Por outras palavras, e retomando o contexto da língua portuguesa a partir da experiência que temos dela em Portugal, a percepção que fica é que é possível uma descrição destes conceitos nos termos exclusivos de uma regulação linguística. Contudo, não estando dadas as garantias de que as práticas se contenham nesse plano, na verdade aquela possibilidade em vez de tranquilizar deve ser vista como um cavalo de Tróia que cauciona a política feita através da regulação linguística, instrumentalizando-a politicamente. Isto não significa prescindir da regulação linguística, mas de fazer o caminho estreito que distingue entre regulação e normativismo, entre linguística e política.

4.

Na Linguística, a ideia de norma-padrão pode ser pensada como um referencial estabilizador, com especial importância no ensino, desempenhando mais uma função agregadora, que mantém, junta e cola, por assim dizer, uma língua, do que, tudo ao contrário, de formação de um instrumento de segregação e criação de subalternidades, como decorre da norma culta prescritiva. Além disso, a língua portuguesa tem sido apresentada como dispondo de duas normas-padrão e entendida como língua pluricêntrica. 

Sem prejuízo desta visão da língua, parece-nos justificar-se problematizar nela dois aspectos. Por um lado, o facto de que a norma-padrão do português de Portugal, designado Europeu, servir, muito ironicamente, de norma-padrão ao Português falado em África. Por outro, a ideia de pluricentrismo induz um entendimento de que a um centro se adicionem outros sem que nesse processo nada se perca ou diminua. Na verdade, a relação da língua com a pluralidade de lugares, territórios e comunidades em que é falada deve ser problematizada mais a fundo. Pensamos, muito em particular, nos atravessamentos, entrechoques e sobreposições de uma comunidade em que num centro confluem originários dos outros centros, como, por exemplo, numa universidade, que desejavelmente recebe estudantes de todos esses centros. Como pensar essas outras relações, de atravessamento? A negociação de que falava Chiziane induz contaminações de variantes linguísticas, que são contaminações de lugares, histórias, pertenças em territórios geográficos, sociais, culturais. Em vez de pensar o território a partir da língua, como se esta conferisse alguma autoridade de domínio, pelo contrário, importa pensar a língua como matéria de transformações territoriais, fusões, hibridações, diluições de territórios de diversa natureza. 

Se, como já se referiu atrás neste texto, a língua e os modos de relação e valores que ela veicula estão intimamente ligados a um lugar, a um território, e é ponte de ligação e fluidez entre várias dimensões ecológicas, qualquer pretensão a uma universalidade de qualquer língua acaba por a empobrecer, por a desligar dessa relação vital que ela mantém com o lugar e que a faz língua viva. Torna-se um sistema de codificação – e, nesse sentido, não poderá ser a excessiva normatização uma forma de empobrecimento, de desvitalização, da língua? 

Por exemplo, numa citação do filósofo Edward Glissant, que nos lembra Elisa Locón Antileo, sobre esta relação entre língua e lugar e o risco de uso da língua como código:

“É sempre triste quando uma língua morre. Se há uma só maneira de dizer água, isso é uma limitação terrível do imaginário humano. Se todos dizem water, já não estamos perante um elemento de relação entre o homem e o mundo, mas de um elemento de codificação.”10  

Glissant interessa-se pelo trabalho poético – o trabalho sobre as estruturas da língua, a creolização, que cria densas redes de sentido e do linguajar, e não os “creolismos”, ou seja, os fáceis exotismos com os quais se podem tingir uma língua sem a transformar nos seus ritmos e formas, pensando a partir da situação francófona – que vamos aqui pedir emprestada para a reflexão que temos aqui sobre o português - e, em particular, da vivência e da ocorrência da língua nos territórios francófonos de arquipélago, nas ilhas. O seu pensamento é um pensamento de arquipélago, ou seja, onde o chão é, mais do que um ou vários territórios fixos (o que configurará um centro ou a tal situação pluricêntrica11), mas um território relacional e em movimento. Se quiséssemos usar uma metáfora, um território mais aquoso e permeável às vibrações e intensidades das placas tectónicas. Abdicando do projeto universalista mas não do estabelecimento de relações no seio de um Todo-Mundo (o conceito que forjou para definir a totalidade mundo que, não sendo totalitária, abarca em sim todas as singularidades existentes e os diferentes modos de fazer mundo), do seu trabalho podem-se extrair fios de sentido que nos permitem pensar as condições e vivências das línguas noutros lugares, compondo uma complexa tessitura ecológica, cultural, social.

 A este propósito Glissant escreve: 

“Não podemos generalizar valores particulares, mas podemos quantificar todos os tipos de valores particulares, não para daí « extrair » valores universais, mas para com eles fazer um rizoma, um campo, um tecido, uma trama de valores diferentes mas que a todo o tempo se entretocam e se entrecruzam.”12 

Esta colocação em relação convida a um uma “explosão das poéticas do mundo”13 e a um uso de uma língua infundindo-a do território que ela passa a habitar, contaminando-a, levando-a a ser porosa ao lugar e aos seus ritmos:

“(…) engendrar uma linguagem que tece as poéticas, talvez opostas, das línguas crioulas e das linguas francesas. A que é que eu chamo uma poética? O contador crioulo serve-se de procedimentos que não estão no génio da língua francesa, que vão mesmo na direção oposta : os procedimentos de repetição, de redobramento, de refazer, de nos colocar em respiração.”14 

Por exemplo, o português, ao habitar o território de uma língua bantu, é inevitavelmente enriquecido, transformado, nos seus ritmos e estruturas, na sua poética. Como o acolher quando ele volta ao território linguístico de base latina? Como acolher estes territórios-língua no nosso território? Como fazer o reconhecimento necessário das densas camadas que agora fazem a tessitura do nosso território social, cultural, linguístico e imaginário?

5.

Continuando a pensar com Glissant, para este filósofo, em qualquer lugar, já não podemos falar uma língua senão na presença de todas as outras línguas do mundo, na consciência não hierárquica da existência de outras línguas, mesmo que só saibamos um delas: 

“não é uma questão de Ciência, de conhecimento das línguas, é uma questão de imaginário das línguas. E, consequentemente, não é uma questão de justaposição das línguas, mas da sua colocação em rede”.15  

Uma língua viva é algo em devir constante e não um “ser” fechado e fundamental.

“É verdade que tradicionalmente nós estávamos, nós os outros das Antilhas, numa língua bloqueada, uma língua fixada numa atitude respeitosa em relação à norma francesa, e que esta língua na nossa boca era perfeita, sintaxicamente perfeita. A correção era total e, no entanto, o uso da língua era completamente falso e desfigurado. Não era uma língua viva, era como uma língua morta. Juntemos a isso a ausência de tomada em conta de todas as nossas realidades pelas elites, as antigas elites que falavam essas línguas. Nós nunca tínhamos refletido sobre a real presença das nossas paisagens, do ponto de vista do nosso imaginário, da nossa sensibilidade. Nunca tínhamos refletido sobre a densidade das nossas próprias histórias.”16 

Glissant acaba de descrever a situação colonial da língua. As línguas de antigas potências coloniais não têm de ser línguas coloniais, mas, com honestidade, têm de ter essa possibilidade no horizonte, enfrentá-la, para a afastar. O Instituto Camões, à semelhança do Instituto Cervantes, de L’Institut Français, Goethe Institut, Cambridge Institut exprimem políticas de cooperação internacional em torno de uma língua comum, mas só podem ter sucesso sob um pressuposto de descolonização. Ou até, fazendo uso de uma prática que teve a sua gestação conceptual por um grupo de intelectuais da América Latina - Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Catherine E. Walsh, entre outros e outras  - , sob um pressuposto de decolonialidade, ou seja, de reconhecimento das estruturas imaginárias, das matrizes ficcionais que estruturaram a realidade num mundo fundado pela prática de relações coloniais, com as suas respetivas imposições e regulações epistemológicas, económicas, da subjetividade, e inevitavelmente, da língua. 

Sendo a língua modo de correlação, no período colonial assistiu-se a uma política de substituição que impediu que as que agora chamamos línguas indígenas – as línguas maternais e não as línguas da pátria, de um determinado projeto político de estado-nação – fossem faladas, para que a realidade dos locais onde estabelecíamos colónias fossem transformados à nossa imagem e conveniência. Estas relações mudaram historicamente, mas a trajetória de transformação para que estejamos à altura de estabelecer relações de correlação e não de imposição está ainda muito por fazer. Este texto não pretendeu ser exaustivo em relação às exigências dessa trajectória - há ainda a considerar temas como a abertura do território linguístico oficial português ao multilinguismo, tal como é abordado, por exemplo, na Declaração do Porto; Reparar o Irreparável, a propósito do cabo-verdiano e do guineense.17 

No entanto, demos um passo mais nesta reflexão sobre a língua portuguesa viva e por isso que se deixa pertencer a esta densa tessitura de imaginários e modos de fazer mundo, ouvindo mais uma vez um convite que nos é feito por Pauline Chiziane, a escutar as paisagens que forjam a sua língua e a entrelaçarmo-nos com elas. Escreve Chiziane, ainda aquando da cerimónia de entrega do Prémio Camões, lembrando uma vantagem, que é dela, e também podemos chamar de epistemológica: “Nós africanos, aprendemos a língua portuguesa mas eles não apreenderam as nossas. Aproveito esta magna ocasião para convidar a todos a conhecer a beleza das nossas línguas.”18 

Aprendemos nós a língua maconde ao chegar a Moçambique? Sabemos algo daquele território relacional que tanto frequentámos e de que tanto extraímos? O contacto não foi um contacto de reciprocidade, não houve um “entrelaçamento”. Aprender uma língua indígena é considerada como um dos possíveis processos íntimos de decolonialidade. Por exemplo, e para terminar, nós filósofos, imaginemo-nos a aprender uma língua onde a palavra “ser” não existe, como acontece na língua malgaxe. Que transformações esse deixarmo-nos ser porosos a outras línguas, a outros modos de linguajar e de fazer mundo, trará àquela que mais usamos?

**

 

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no âmbito do 5º Congresso Internacional da Sociedade Portuguesa de Filosofia, que decorreu na Universidade de Évora, nos dias 14 a 16 de setembro 2023, integrado na sessão temática “República, Democracia e Colonialismo”. Programa disponível em: https://www.spfil.pt/files/files/5CIF%20PROGRAMA%20Provisorio.pdf

  • 1. Cf. Underhill, James W., 2009. Humboldt, Worldview and language. Edinburgh: Edinburgh University Press.
  • 2. Palmer, Richard, 1989. Hermenêutica (Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira). Lisboa: Edições 70, p. 21.
  • 3. Fricker, Miranda, 2007. Epistemic Injustice. Power & the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press.
  • 4. Gadamer, Hans-Georg, 1960. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: J. C. B. Mohr. 
  • 5. Cf. Descola, Philippe, 2005. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard.
  • 6. Dito durante a mesa redonda “Da relação com a Terra”, incluída no programa Questões Indigenas – ecologia, terra e saberes ameríndios, no Teatro Municipal Maria Matos, no âmbito do ciclo UTOPIAS e de Passado e presente Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=T5YHCoN7SAQ .
  • 7. http://raquelandre.com/outra-lingua/
  • 8. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2023/03/voce-vai-...
  • 9. Cf. um pequeno artigo clarificador no site Ciberdúvidas (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/controversias/as-pala...).
  • 10. “C’est toujours triste quand une langue meurt. S’il y a une seule manière de dire l’eau, c’est une terrible limitation de l’imaginaire humain. Si tout le monde dit water, ce n’est plus un élément de relation entre l’homme et le monde, mais un élément de codification. », Glissant, Edouard, L’imaginaire des langues, Entretiens avec Lise Gauvin (1991-2009), Paris : Gallimard, 2010, p. 99.
  • 11. Cf. por exemplo, comentário das especialistas Rosa Maria Faneca e Felícia Jennings-Winterle, da Universidade de Aveiro: «Uma língua pluricêntrica é uma língua com várias culturas que nela se expressam. A língua portuguesa (LP) é, atualmente, um microssistema de que fazem parte duas variedades nacionais distintas – o Português Europeu (PE) e o Português do Brasil (PB). Cada uma destas variedades tem as suas normas internas (de natureza regional e de natureza social) e uma norma de referência, que domina o uso culto, o ensino e a comunicação social, a que geralmente se dá o nome de norma-padrão. Existe, assim, duas grandes normas-padrão do português estabilizadas e variedades emergentes dos países de Africa, de Timor-Leste, variedades da Diáspora e também as variedades internas a cada país.» (https://www.ua.pt/pt/noticias/13/69335)
  • 12. “On ne peut pas généraliser des valeurs particulières mais on pet quantifier toutes les sortes de valeurs particulières, non pas pour en « extraire » des valeurs universelles, mais pour en faire un rhizome, un champ, un tissu, une trame de valeurs différentes mais qui tout le temps s’entretouchent et s’entrecroisent » (Glissant, 2010, p.45)
  • 13. «éclatement des poétiques du monde »(Glissant, 2010, p.27)
  • 14. « (…) engendrer une langage qui tisse les poétiques, peut-être opposées, des langues créoles et des langues françaises. Qu’est que j’appelle une poétique ? Le conteur créole se sert de procédés qui ne sont pas dans le génie de la langue française, qui vont même à l’opposé : les procédées de répétition, de redoublement, de ressassement, de mise en haleine. » (Glissant, 2010, p. 26).
  • 15. “ce n’est pas une question de Science, de connaissance des langues, c’est une question d’imaginaire des langues.  Et, par consequent, ce n’est pas une question de juxtaposition des langues, mais de leur mise en réseau. » (Glissant, 2010, p.28)
  • 16. C’est vrai que traditionnellement nous étions, nous autres Antillais, dans une langue bloquée, une langue figée dans une attitude respectueuse par rapport à la norme française, et que cette langue dans notre bouche était parfaite, syntaxiquement parfaite. La correction était totale et pourtant l’usage de la langue était complètement faussé et défiguré. Ce n’était pas une langue vivante, c’était comme une langue morte. Ajourtez à cela l’absence de prise en compte de toutes nos réalités par les élites, les anciennes élies qui parlaient ces langues. Nous n’avions jamais réfléchi à la présence réelle de nos paysages, du point de vue de notre imaginaire de notre sensibilité. Nous n’avions jamais réfléchi à la densité de nos propres histoires. » (Glissant, 2010, p.20)
  • 17. Na Declaração do Porto: Reparar o Irreparável, o ponto 18 das reivindicações de gestos de reparação da violência colonial refere: “Reconhecimento do cabo-verdiano e do guineense enquanto línguas nacionais, à semelhança do mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da promoção de políticas públicas do seu ensino.” Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/declaracao-do-porto-reparar-o-irreparav...
  • 18. https://www.publico.pt/2023/05/18/culturaipsilon/noticia/premio-camoes-2...

por André Barata e Liliana Coutinho
A ler | 15 Novembro 2023 | decolonialidade, língua portuguesa, moçambique, Paulina Chiziane, poder, reciprocidade