Mário Lúcio Sousa e o pão feito pelo diabo

O seu carácter (quase) documental em nada sonega o interesse e a importância de uma magistral construção literária. A literatura faz, assim, o que só ela pode fazer: dá a alguém, através de um livro, um murro no estômago, e de inquietude. Um romance corpóreo e contundente.

O romance tem a capacidade única de mostrar o que os livros de História não conseguem. É que, nos segundos, há sempre uma certa distância – um objecto –, há uma frieza de análise. Estamos em Portugal em 2019, só há pouco se começou, em praça pública, a problematizar as questões do colonialismo, a questionar a palavra unilateral, de vencedores, “Descobrimentos”. Não é tarefa fácil. O discurso entranhou-se há muito, vive-se desde criança com a ideia de que se está no país de heróis, com uma história heróica, e que isso pode elevar um país quedo em vida amorfa. Os nacionalistas, como renascidos dos livros de História, de cabeça voltada para trás, sem pensamento de presente e de futuro, ficam histéricos. Então pode desrespeitar-se assim o glorioso nome de Portugal?

Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança

Podemos ler sobre o Tarrafal, ter uma ideia vaga. Podemos estudar o assunto, conhecer cronologias. Podemos ir lá e ver a história decadente – e o ser humano que ali esteve em decadência – à nossa frente.

Fui uma vez a Cabo Verde, novembro de 2018. O campo de concentração do Tarrafal tem uma bilheteira à porta, a entrada custa o equivalente a um euro, para cidadãos nacionais ou estrangeiros. Lá dentro, a memória histórica não é cultivada por falta de meios, embora haja agora umas placas com indicações e explicações (a amiga cabo-verdiana que foi comigo disse-me que, da última vez que lá fora, nem isso, tudo ao abandono). Entrada na “Frigideira”, um paralelepípedo de cimento exíguo, usado para castigos maiores, se me pusesse em bicos de pés, chegava ao tecto, e não conseguia esticar os braços.

Não costumo iniciar críticas literárias ao jeito de crónicas, mas não deu para dissociar a vida das páginas de “O diabo foi meu padeiro”, de Mário Lúcio Sousa, do espaço que conheci brevemente, do lugar que vi noutras páginas, mais informativas e, assim, menos humanas. Para mais, o livro é de tal forma veemente que me parece que interessa o que significa para um leitor português, acostumado às versões portuguesas que ainda vão sobrevivendo em livos. Publicado pela D. Quixote, este romance tem 320 páginas de porrada.

Passaram 45 anos do fecho do campo de concentração. A história aparece nos livros de História, mas reavivá-la serve para viver e para não esquecer a troco de que é que o Estado Novo se manteve ou mesmo que crueldades perpetrou.

Em 1936, cerca de 150 prisioneiros foram amarfanhados naquela terra árida, desumanamente tratados (nem “como animais” se pode dizer), levados ao limite, afastados de qualquer coisa e instrumentalizados para que fosse dado um aviso. Numa espécie de sub-vida, eram enfraquecidos não quase até ao limite, mas mesmo para além dele. As listas de mortos andam por aí a prová-lo.

Mário Lúcio no Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança Mário Lúcio no Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança

Conhecemos a história – homens sem água, sem sabão, homens doentes, homens com fome, homens no limite, em sofrimento, doridos –, mas estas palavras que aqui deixo, que descrevem de fora, listando, em nada se comparam à voz literária usada por Mário Lúcio Sousa. Neste romance, não há descrições, há vida, e há vida mesmo quando há morte. É impossível ler sem arrepios.

A formulação literária é invulgar. O autor usou a voz de vários prisioneiros, todos com o mesmo nome – Pedro –, chegados em alturas diferentes de Portugal, da Guiné, de Angola e de Cabo Verde. Descreveu o terror de dentro com uma fluidez que em nada instrumentaliza acontecimentos para provar alguma coisa. O horror escancarado funciona, e funciona mais ao vir de uma voz humana, e provoca a reacção devida do leitor, através de uma visão panorâmica e micro do campo de concentração do Tarrafal. Abrangendo um período desde a fundação até ao encerramento, o livro acompanha as fases a partir de dentro e, lendo-o, não dá para não se estar com aqueles presos, não dá para não se ser um desses presos.

De resto, caberá dizer que o seu carácter (quase) documental em nada sonega o interesse e a importância de uma magistral construção literária. A literatura faz, assim, o que só ela pode fazer: dá a alguém, através de um livro, um murro no estômago, e de inquietude. Um romance corpóreo e contundente.

Publicado originalmente no Esquerda.net4/10/2019 

Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança Campo do Chão Bom, Tarrafal em 2010. foto de Marta Lança

por Ana Bárbara Pedrosa
A ler | 28 Outubro 2019 | Cabo Verde, Independência, Mário Lúcio, prisão, Santiago, Tarrafal