Luanda, Lisboa, Paraíso?

Casa para outros (instalação Ocupações) | 2013 | Diogo Bento (cortesia do artista)Casa para outros (instalação Ocupações) | 2013 | Diogo Bento (cortesia do artista) 

O fim dos impérios ultramarinos europeus – com processos de descolonização muitas vezes pautados por conflitos armados e insurreições – foi trazendo para a Europa, ao longo das décadas de 60, 70 e 80, importantes fluxos populacionais, num processo marcado por deslocações, ambiguidades, integração, mas também fraturas, exclusões, segregação, invisibilidade, trauma e novas e complexas identidades – repatriados, pieds noirs, retornados, ex-combatentes das guerras coloniais, ex-colonizadores, ex-colonizados, refugiados das guerras civis, imigrantes. Desde então, tem vindo a assistir-se à emergência e afirmação de uma atividade artística marcante nas artes visuais, performativas, cinema, música, dança e literatura, protagonizada não apenas pela geração que viveu os eventos – e que desta desterritoralização deu, na maioria dos casos, um testemunho traumatizado –, mas também pelos filhos destes antigos impérios, que, ao mesmo tempo que reinterrogam a situação de rutura que viveram como crianças ou que já nem viveram, por terem nascido depois, também procuram conhecer uma história outra, relativa às origens dos seus pais e avós, e, como eles, do seu país.
 
O livro de Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras, 2018), acaba de vencer o prémio Oceanos 2019, e, com ele, reafirma-se em Portugal uma linha literária de abrangência europeia – afropean, numa versão mais anglo-saxónica desta herança – ou afropolitana – afropolitan numa versão mais francesa – de identidades herdeiras dos processos coloniais, que procuram as suas continuidades na Europa de hoje, ao mesmo tempo que se inscrevem numa genealogia literária portuguesa de imaginação e de demanda de Portugal e da Europa (1).
 
Luanda, Lisboa, Paraíso descreve o percurso do angolano Cartola de Sousa, habitante da pequena aldeia de Quinzau, em Angola, rumo a Luanda, onde acabaria por casar, mudando-se depois para Moçamedes, onde seria enfermeiro assistente do médico português Dr. Barbosa da Cunha, nos tempos coloniais. O percurso vai até à Lisboa pós-colonial que acolhe os africanos imigrantes nos bairros periféricos, de que o antifrástico Paraíso, o último topónimo do título, é, ao mesmo tempo, realidade e metáfora. A narrativa centra-se à volta desta personagem, riquíssima no imaginário colonial português, mas muito pouco tratada na literatura portuguesa. Quem é Cartola de Sousa?
Em Angola, nos tempos coloniais, Cartola de Sousa tinha uma vida típica da pequena burguesia negra assimilada, a que temos acesso no romance através das suas recordações saudosas de um tempo em que era jovem e a sua vida tinha uma certa ordem, estatuto profissional, social e paz, permitindo-lhe o convívio e o sonho de ascensão social que o estatuto de assimilado perversamente configurava:

Nem o sono nem o acabrunhamento macularam o primeiro serão perfeito da vida dos Cartola de Sousa. As crianças brincavam com um cavalo de pau. As mulheres comentavam moldes de croché. No alpendre, os homens fumavam e bebiam brandy aquecido enquanto o parteiro ia perdendo a vergonha de que o médico percebesse que lhe copiava as maneiras e o médico se satisfazia na presunção saborosíssima de se saber imitado. Vista da rua, na indolência da sua coreografia de silêncios, a cena era ao mesmo tempo bela e trágica, auspiciosa e tétrica. Através das cortinas de linho de duas janelas altas, as sombras dos quatro adultos eram as de quatro defuntos a dançarem numa moldura, numa casa a óleo, fora do tempo, para lá do lugar onde uma excepção pode salvar o que não tem de pedir desculpa por ser doce. (Almeida, 2018: 44)

Em breve, este mundo, pleno de sinais de fim, iria desfazer-se: o Dr. Barbosa da Cunha regressaria a Portugal, Cartola de Sousa iria assistir, expectante, à partida dos portugueses, celebraria a independência com uma alegria contida e, ao mesmo tempo, a sua família começaria a desfazer-se: nascia Aquiles, assim batizado, devido ao calcanhar defeituoso, e a sua mulher ficava imobilizada na cama. Coincidindo, portanto, com a independência, a casa de Cartola de Sousa ficava assombrada pela doença, o que iria determinar para sempre a sua vida e da sua família.
 
Nos anos 80, e seguindo a rota de muitos cidadãos africanos dos países de língua oficial portuguesa, Cartola de Sousa viajou para Lisboa com o seu filho Aquiles de 14 anos, para que o rapaz fosse submetido às operações aconselhadas e aos tratamentos médicos que, em princípio, resolveriam o problema. Em Luanda, ficaria Glória, presa a uma cama e entregue aos cuidados de Justina, a filha do casal. A viagem para Lisboa ativa uma série de sonhos, que vão da questão prática de resolver o problema de saúde do filho à ilusão de ir encontrar uma Lisboa que o acolheria como um português, um assimilado, que tinha imaginado Lisboa como a sua metrópole dos cartões-postais, os brancos como seres como o Dr. Barbosa da Cunha, e a si próprio como um português. Na verdade, nada, nem ninguém, o esperava em Lisboa: os contatos com o Dr. Barbosa da Cunha em breve desapareceriam, mentiria a si próprio sobre os papéis que o reconheceriam como português, o problema de Aquiles não se resolveria apesar das várias operações, a Luanda deixada para trás ia-se reduzindo aos pedidos e à voz distante de Glória. Aquiles faria 18 anos e as esperanças iam-se diluindo numa cidade que não os acolhe e Cartola de Sousa e o filho seguem o destino de muitos africanos em tratamentos entre o ritmo do hospital e as pensões baratas que os alojam, sem nunca os acolher, e onde se vão endividando e partilhando a infelicidade dos outros, até irem viver para o Paraíso, um bairro onde as condições estão perto da insalubridade. Pai e filho são atirados para um quotidiano de trabalho nas obras em que o corpo explode todos os dias, interrompidos por telefonemas e contatos com Glória até ela se tornar uma pura e distante abstração e, com ela também, Luanda e Angola. Esta existência mais ou menos infeliz é pontuada pela amizade de um galego, Pepe, tão pobre como eles, mas dono de um bar barraca, pela visita de Justina que vem de Angola reconfigurar a pobreza da casa, e pela presença constante de uma mala que os acompanha por onde vivem. Uma mala mais ou menos sempre feita, alimentando a ideia vaga de um regresso adiado e cheia de objetos e papéis que guardavam uma vida anterior de que Cartola de Sousa não tinha de pedir desculpa por ter sido feliz, e que em Lisboa lhe revelavam um estatuto perdido traduzido na inutilidade dos papéis.
 
Ao contrário do filho Aquiles, que é um filho da independência e um imigrante angolano em Lisboa, saudoso da mãe, de Luanda e em luta por uma vida melhor, Cartola de Sousa transporta consigo uma identidade fantasmática, desaparecida com o fim do tempo colonial, uma identidade que o relaciona com o sonho de Portugal, como um lugar bom e ao qual ele também pertencia. Todavia, a sua vida em Portugal revela-lhe a cada passo a perversidade do assimilacionismo: o que relacionava Cartola de Sousa com Portugal era uma fantasia, e o reconhecimento da sua pertença seria sempre, como no tempo colonial, uma trágica farsa adiada. O que existia era a realidade que o tinha expulsado de Angola e a afirmação da sua condição subalterna, seja pelo lugar para onde acaba por ir viver – a periferia denominada Paraíso –, seja pela desvalorização das suas habilitações profissionais e a exploração do corpo do negro como força do trabalho. Ou ainda pela pobreza da qual não conseguiria sair, e ainda pela continuação da sua invisibilidade no cenário urbano lisboeta. 
 
Quantas vezes é que os portugueses que visitaram a Expo 98 e todo o novo bairro lisboeta à beira Tejo, e que, passados pouco mais de vinte anos da descolonização, comemoravam, mais uma vez, a gesta dos Descobrimentos, pensaram na cor que também o construiu? Quantas vezes é que os portugueses olharam no Metro estes conjuntos de homens trabalhadores de olhares cansados, vestimenta pintada e cor escura como parte de quem estava a construir esse Portugal de que hoje emergimos? Quem somos nós, portugueses, no pós-império? E Djaimilia Pereira de Almeida não situa a sua questão apenas do lado português. Afinal, o que é que a independência trouxe para estes angolanos, para esta família angolana? Também aqui o percurso é de perdas: Cartola de Sousa perdeu o seu estatuto social e profissional, Glória está acamada desde a independência, protagonizando uma fantasia cada dia mais irreal; Aquiles será para sempre o “preto coxo”; Justina regressa a Luanda sem mais dela se saber. Real é o Paraíso, a miséria do pai e do filho, universo apenas suavizado aquando da breve estadia de Justina, dos momentos de alegria com Iury, da amizade rude de Pepe, todos seres marginais e descartáveis onde se encontram. E mesmo este mundo de um aparente “cosmopolitismo de pobres” (2) desaparecerá: Justina parte, a pobre casa em que viviam é destruída por um incêndio, Iury sucumbe, Pepe morre. Cartola ficará de luto pelo seu amigo, sem forças e sem esperança, é um sobrevivente (3):

Cartola viu-se na Rua Augusta e continuou em frente. Desfilava como um soba deposto, coroado. Até então não lhe parecera que alguém reparara nele, mas um menino apontou na sua direção e disse “olha ali um mágico, mãe”.(…) A cartola nova saltava à vista como uma peça deslocada, não por não condizer com o homem, mas por não condizer com o presente. Sob o Arco da Rua Augusta, vieram-lhe à memória aqueles velhos postais da metrópole e então reparou que este se parecia com uma boca para duas goelas e que a gente se movimentava ao longo das arcadas como a refeição alegre de um leviatão. E não desviou o olhar até ao Cais das Colunas. Cartola olhou o Tejo de frente e deu-lhe uns minutos. (…) E como o rio não suportasse olhá-lo a direito nem lhe respondesse, desconversando num marulhar ambíguo, o homem tirou a cartola, jogou-a à água, e virou costas. (Almeida, 2018: 228-229)

No Portugal pós-império, a questão coloca-se de novo a partir de uma outra personagem fantasmática de Portugal. Vindo do interior do império entretanto perdido, um D. João de Portugal negro lança-nos de novo na pergunta –– Será que o Romeiro era mesmo  “ninguém”? (4) 
 
O que está em causa no livro de Djaimilia Pereira de Almeida são as ruínas vivas e humanas do império, não mais a partir da figura do ex-combatente, nem do retornado, mas de quem estava do outro lado da linha que o colonialismo traçou: os negros e, neste caso, a figura mais complexa que o colonialismo gerou, o assimilado que pela primeira vez na literatura portuguesa está no centro da narrativa. O rio Tejo, que no imaginário português, epitomiza todas as histórias do império português que dali se projetaram no “mar sem fim” e que banha a metrópole mental de Cartola de Sousa, não lhe responderá, porque não há resposta para as ruínas do império, não há restituição possível para o engano e a ilusão. Resta-lhe uma cidadania espetral de um mundo de fantasia que a história transformou em fantasma. Lisboa não existe.

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(1) Ver Isabel Lucas, “Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura”, Público, Ipsilon, 20 Dezembro, 2018.
(2) A referência é ao título da obra de Silviano Santiago, O Cosmopolitismo do Pobre: Crítica literária e crítica cultural, Belo Horizonte: UFMG Editora, 2004.
(3) Ver Roberto Vecchi (2018) “Depois das testemunhas: sobrevivências”, Memoirs JornalPúblico, 14 Setembro, p. 18.
(4) Referência ao Romeiro, D. João de Portugal, da peça de teatro Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. No seu contexto trato a questão no meu livro Uma História de Regressos- Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo, Porto: Afrontamento, 2004.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Margarida Calafate Ribeiro
A ler | 26 Dezembro 2019 | diásporaParaíso, Djaimilia Pereira de Almeida, Lisboa, Literatura, luanda, Memoirs, periferia