Apesar de você

Rubelis | 2016 | Yuran Henrique (cortesia do artista)Rubelis | 2016 | Yuran Henrique (cortesia do artista)

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

A canção de Chico Buarque que dá título ao meu texto inscreve-se nos tempos da longa ditadura brasileira, que poderemos balizar entre o golpe militar de 1964 e 1988, com o movimento “Diretas já´”, ou seja, o da reclamação de eleições livres e universais, inscreve-se. Entre um dissimulado diálogo de desgosto amoroso com uma mulher autoritária e um diálogo com o ditador, jogava-se a ambiguidade, que fez com que a canção tivesse passado na comissão de censura. Mas rapidamente acabou por ser proibida com toda a violência inerente às ditaduras perante aqueles que lhes são contrários. Pensando hoje na canção de Chico Buarque, e apesar dos anos de governos democráticos e de grande mudança social – com um acesso inédito de muitos brasileiros ao ensino, à cultura, à saúde, protagonizados pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e sobretudo de Lula da Silva e Dilma Rousseff –, este é um diálogo que muitos brasileiros ainda poderiam continuar a ter com a sociedade hierarquizada, desigual e autoritária em que vivem (1), elegendo um destinatário mais individual ou mais coletivo.
 
Seria bom não ter de evocar esta canção para falar do Brasil de hoje, mergulhado numa irrealidade, ou numa realidade insana, em que social e politicamente emerge de novo a estrutura de colónia que o formou, e em que o ódio do poder aos corpos mais vulneráveis da nação, assim como à cultura e às suas mais multiformes expressões, é manifesto. O diálogo ensaiado por Chico Buarque com o general dos anos 70, dos tempos da ditadura, teria hoje um destinatário óbvio. Apesar… da atual situação brasileira, momentos culturais prodigiosos fazem-nos apreciar a emergência sólida de outro Brasil, o Brasil daqueles que sempre foram colocados fora do discurso da nação – como o índio recalcado na paisagem, como o favelado, simultaneamente corpo forte de trabalho e vulnerável na hierarquia social que o esmaga ou torna invisível. Hoje, esses corpos são mais do que corpos políticos, elaboram a sua situação pelas suas próprias vozes, criam a sua própria linguagem com os instrumentos esperados dados pela educação, pela sua experiência de vida que a todos interessa e ensina, pela colocação nos palcos, nos livros, nos filmes de personagens fora do esperado com as suas linguagens, os seus conhecimentos, os seus espaços, as suas raivas e lutas, as suas vulnerabilidades e os seus sonhos.
 
A emergência deste Brasil nos lugares nunca antes por eles frequentados, com os instrumentos a que muitos só recentemente tiveram acesso, consome a elite brasileira de matriz colonial. Mas como se evocava na canção de Chico Buarque, dos anos 70 algum amanhã aconteceu nestes anos que nos separam dessa ditadura, e muitos outros brasileiros têm vindo a tomar a palavra. Falo dos recentes livros O sol na cabeça  (Companhia das Letras, 2019), de Geovani Martins, criado nas favelas da Rocinha e Barreira do Vasco, e hoje residente no morro do Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro, e de  Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (Companhia das Letras, 2019), o líder indígena que, em 1987, protestou na Assembleia Constituinte em Brasília, pintando a cara com tinta preta de jenipapo (Jenipa americana). Ailton Krenak clama pela defesa dos direitos indígenas e, desde então, fala-nos do fatal desequilíbrio entre os humanos e a natureza, num tempo bem anterior aos alertas de hoje relativos às alterações climáticas. Ambos, com um enorme sentido do presente, evocam uma subalternização de séculos, e lançam os protocolos para um diálogo não subalterno.
 
Ideias para adiar o fim do mundo e O Sol na Cabeça
 
Aquando dos 500 anos das comemorações do “achamento” do Brasil, Ailton Krenak foi convidado para participar nas comemorações em Portugal, mas considerou que nada tinha para comemorar, argumentando:

Essa é uma festa portuguesa, vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo. Não vou.” Porém, não transformei isso numa rixa e pensei: Vamos ver o que acontece no futuro. (Krenak, 2019:  9-10)

E o que aconteceu foi que, em 2017, foi convidado a vir a Lisboa participar no ciclo dedicado às questões indígenas, no âmbito da Passado e Presente – Lisboa, capital ibero-americana da cultura, ao lado de Eduardo Viveiros de Castro, que proferiu a conferência “Os involuntários da pátria” (entrevista “Que humanidade queremos ser”, publicada no BUALA). Neste ciclo foi apresentado o documentário “Ailton Krenak e o sonho da pedra”, realizado e dirigido por Marco Altberg, e foi aí que proferiu a conferência que também está na origem deste livro, Ideias para adiar o fim do mundo. A questão inicial, proferida com a habitual clareza, e não menor complexidade, era a seguinte:

Como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela está na base de muitas escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? (Krenak, 2019: 10-11)

Os argumentos são vários, mas coincidem num ponto matricial: o do divórcio existente na relação entre o ser humano e a natureza como se fosse uma relação binária e não uma relação integrada e integrante da nossa humanidade. Essa separação, gerada pelo capitalismo a que se associou o sistema económico e político que foi o colonialismo e que hoje são as políticas extrativistas, gerou a devoração da Terra e o apartamento da humanidade do seu ambiente e comunhão natural. De acordo com o autor, aqueles que hoje mantêm essa relação matricial são minorias esquecidas pelas

bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombos, aborígenes – a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra” (Krenak, 2019: 21-22)

Ou seja, são aqueles que ainda não foram transformados em puros consumidores. Na visão desta “humanidade bacana”, os outros continuam na paisagem, fora desse mundo.
 
Assim, a proposta para adiar o fim do mundo é aparentemente simples: contar mais uma história, que em si contém um duplo desafio: encontrar os espaços de escuta (2) e disponibilizarmo-nos para entender outras formas de conhecimento e de resistência que olham o processo civilizador protagonizado pelo Ocidente como um grande equívoco civilizacional ou, como um longo processo de aceleração do “fim do mundo”. São histórias de memória profunda da terra sucessivamente “assaltada”, histórias de resistência de homens e mulheres que há 500 anos se reinventam num país incapaz de “acolher os seus habitantes originais” (p. 41), passe o paradoxo. São histórias que enriquecem as nossas subjetividades, que é a matéria que o nosso tempo quer ainda consumir (p.32) e que nos predispõem para reelaborar a nossa relação com o planeta como a nossa casa comum, uma relação que retoma um desejo de viver em comum (3) em que a terra não é algo exterior a nós, mas algo de que a humanidade é parte. Talvez assim consigamos encontrar o equilíbrio necessariamente precário entre séculos de aceleração do fim do mundo e o profundo desejo de o adiar. Ideias para adiar o fim do mundo não é uma fábula. É uma parábola muito lúcida sobre os tempos de hoje em que nos descobrimos órfãos da nossa casa comum. E é essa orfandade iminente que cria o espaço de escuta. E é essa orfandade que gera em nós o interesse pela história das memórias da Terra.
 
O sol na cabeça, de Geovani Martins, fala-nos a partir de outros territórios, de outras pessoas, de outras linguagens. Fala-nos das pessoas que, na visão de Ailton Krenak, foram retiradas das suas terras por processos migratórios ligados à pobreza e à falta de desenvolvimento, e que foram habitar as periferias das grandes cidades como força de trabalho. Na leitura de Geovani Martins, nascido e habitante de favelas cariocas, esse era o destino traçado a que era necessário escapar – servir, servir os outros e fazer parte dessa classificada sub-humanidade urbana, na visão das elites oligárquicas brasileiras.

Era tão bom tudo aquilo, que queria continuar trabalhando pra sempre, pensava isso enquanto estava em casa; mas, quando chegava nos condomínios, pegava o cano que usava pra recolher as bolinhas de tênis, pisava na quadra, sentia o sol esquentando a minha cabeça, a obrigação de servir gente que nem olhava na minha cara, nessas horas eu queria nunca mais depender de ninguém nessa vida. (Martins, 2019: 100)

O sol na cabeça reúne um conjunto de treze contos que nos fazem entrar no quotidiano, na linguagem e nas subjetividades dos jovens habitantes de favelas de hoje, em que o território e as pessoas que neles circulam é fundamental. Ao longo dos 13 contos percebemos claramente que os pares morro/asfalto, favela/condomínio não são categorias dicotómicas mas em profunda combinação dialética, como partes e expressões daquele outro par que impôs a ordem colonial – unir/separar. Não se trata de oxímoros, mas de um sistema que se baseia na união dialética de aparentes contrários. Esta é hoje a configuração fundadora de um país em que não houve rutura efetiva entre a colónia e a nação, e em que a imagem de senhores e escravos, que fascinou o imaginário de Jean Baptiste Debret, é eternamente ressuscitada como constitutiva do Brasil.
 
As personagens do Brasil de Geovani Martins são as pessoas da favela, com o seu sentido de pertença a um território, com a sua linguagem e o seu imaginário, vistas pelo jovem narrador: é favela das mães trabalhadoras e dos pais que desaparecem, dos garotos do morro e do narcotráfico, dos religiosos que vão desde D. Iara até aos evangélicos, das armas e dos terrores da “primeira infância”, dos adolescentes e da escola ou dos primeiros trabalhos e das primeiras compras, dos namoros e da droga intrínseca ao quotidiano, enquanto comércio e consumo, das alegrias que proporciona, mas também dos medos e das perdições. Mas este é também o espaço dos narcotraficantes, dos “correios”, que trabalham na boca do morro, da milícia e da polícia corrupta e violenta, que com as suas armas, as suas palavras e com o poder performativo do seu uniforme, viola os corpos vulneráveis da favela. Tal como na matriz literária da narratividade deste espaço urbano que é Luuanda, do escritor angolano José Luandino Vieira, em 1965 relativo aos musseques de Luanda no tempo colonial, na favela o espaço de perigo é riscado pelas invasões a que este território vulnerável está exposto e pela fronteira, onde tudo se negoceia. O risco efetivo para esta comunidade, ou vem de fora – as invasões da polícia por exemplo –, ou dá-se na fronteira e no seu cruzamento. O risco está na boca do morro onde os “outros” vem requisitar os “serviços” da favela, e na cidade rica, onde os favelados não são cidadãos, mas objetos de trabalho ou de potencial perigo. Todos parecem compor um cenário em que representam papéis predestinados, um cenário em que o medo, a vulnerabilidade e o acaso formam um circuito do qual parece impossível escapar nestes territórios marcados por fronteiras de influência e domínio ligado ao narcotráfico e à hierarquia social.
 
Este é o circuito da sobrevivência num clima agressivo, mas também feito de solidariedades e alegrias próprias de comunidades que se sentem subalternizadas e alvo de violência e terror. Entre um quotidiano de drogas e passeios, de pequenos trabalhos e reflexões, manifestam-se as subjetividades das personagens perante situações de desejo, trabalho ou violência: como se sentem olhados pelos habitantes da cidade rica, como jogam com esse medo que inspiram e como administram o medo que também têm, e é desta forma que Geovani Martins devolve a todos a humanidade que todos pareciam ter perdido. Afinal, todos têm medo, e uma sociedade cujo ponto de união é o medo, autodestrói-se. Os números desta autodestruição – ambiental, no caso de Ailton Krenak, e social, no caso de Geovani Martins – têm muitos algarismos no Brasil, um país em que, como revela Geovani Martins em entrevista ao jornal Expresso, a pena de morte não existe, mas em que a condenação à morte é quotidiana (4).
 
A partir destas duas paisagens vividas de um Brasil que exclui da cidadania grande maioria da sua população, Geovani Martins e Ailton Krenak colocam todas as perguntas sobre a possibilidade de um outro Brasil que se aguarda. Um Brasil em que, na era dos computadores, um jovem favelado como ele não tenha mais de escrever um livro como este numa máquina de escrever que a mãe comprou numa feira de velharias. Mas este gesto – tal como o de Ailton Krenak, em 1987, na Assembleia Constituinte – revela-nos uma energia imparável, e a confiança que dela recebemos permite-nos acreditar na “comunidade que vem”, “apesar de você”, apesar de tudo.

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(1) Ver Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, Companhia das Letras, 2019; e Jessé Souza, A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato, Rio de Janeiro: Leya, 2017.
(2) Ver Liliana Coutinho, “Cuidar de espaços de escuta”, Jornal Memoirs – Público, Setembro 2019, p. 20.
(3) Não por acaso o título do ciclo de conferências de Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero- Americana da Cultura, e do livro organizado por António Pinto Ribeiro, O Desejo de Viver em Comum, Lisboa: Tinta-da-China, 2019, 2 volumes.
(4) Geovani Martins entrevistado por Bernardo Mendonça: “O meu maior medo era passar a vida a servir alguém. Agora é ser preso. Moro numa favela, mas tenho medo é da polícia”, Expresso, 24 de Novembro 2019 e Podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”. A edição áudio é de Joana Beleza, o genérico é uma criação original do músico Luís Severo, o retrato de Tiago Miranda.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
 

por Margarida Calafate Ribeiro
A ler | 4 Março 2020 | Ailton Krenak, Brasil, Chico Buarque, Geovani Martins, Memoirs