Lizidória Mendes lança “Sentimentos e Razão”, seu primeiro romance, em Bissau

O lançamento do livro “Sentimentos e Razão” (Nimba Edições, 2025) de Lizidória Mendes (1997) promete ser um marco tanto para a trajetória da jovem escritora quanto para a literatura guineense contemporânea. No domingo, 25 de maio, estima-se que mais de 400 pessoas tenham assistido ao lançamento da obra no Centro Cultural Franco-Bissau-Guineense (CCFBG), localizado na Praça Che Guevara. 

O movimento já era intenso na porta do CCFBG, onde uma banca de venda do livro de Lizidória Mendes estava montada. Com a obra recém-adquirida em mãos, atravessei o corredor. Pelo menos umas cem pessoas estavam diante do telão do hall de entrada, que fazia a transmissão ao vivo do lançamento que ocorria no interior do auditório. Em uma bancada próxima à porta, os livros estavam organizados aguardando a sessão de autógrafos. Alguns minutos depois, consegui entrar no auditório pela porta lateral justamente no momento em que o escritor Adbulai Sila falava ao microfone sobre o talento da jovem escritora. Sila, que tinha há poucas horas, acabado de lançar o livro “Amílcar Cabral – um nacionalista e pan-africanista revolucionário”, de Peter Karibe Mendy, em outro evento, chegara a tempo para compor a mesa do lançamento de Lizidória ao lado de Thamilton Teixeira, Nelvina Barreto e Helena Neves.

Já em entrevista, o escritor contou que conheceu a estreante quando Lizidória se inscreveu para um de seus cursos de escrita criativa: “Eu tive que desenvolver vários projetos ao longo dos últimos anos, e ela [Lizidória] se aproximou, colaborou. Primeiro foi uma sessão de formação de escrita criativa, ela participou acho que de dois cursos. Um que eu animei e outro, por uma outra pessoa mas que também participei. Depois, ela fez parte da equipe que formamos para escrever o roteiro da primeira novela guineense”. O projeto da telenovela “Sol e suor” acabou não se concretizando devido às questões da Pandemia, mas a parceria e colaboração entre os escritores continuou.

[Abdulai Sila] é uma das pessoas com quem trabalhei na revisão do livro. E o processo foi muito leve, muito bom, porque, pronto, tendo o primeiro livro publicado e ter a pessoa que sempre te inspirou a dizer que o trabalho era muito bem concebido, aquilo abriu-me portas. Não portas externas, mas internas, mais em termos de confiança, autoestima. Aquilo ajudou bastante.” – afirmou a escritora em entrevista.

Lizidória contou-nos ainda que a opinião do escritor foi decisiva na identidade visual do livro: “Inclusive, o livro não aparecia assim na capa. Estava aqui, Lizidória Mendes” – disse a escritora apontando para o livro que tinhamos sobre a mesa – “E depois estavam os ZAZIWE’S Pensamentos, que é o nome da minha página de escrita. Mas ele, humildemente e de uma forma sábia, disse, ‘olhe, vocês têm que tirar aqueles ZAZIWE’S Pensamentos, porque este livro, o teu nome tem que estar muito limpo, tem que estar lá muito claro, Lizidória Mendes. O teu primeiro livro, porque não tenho dúvida que o livro vai fazer sucesso´. Então, pronto, nós retiramos [o subtítulo].

No palco do CCFBG, Abdulai Sila com microfone, Thamilton Teixeira, Lizidória Mendes, Nelvina Barreto e Helena Neves. Foto de Miriane PeregrinoNo palco do CCFBG, Abdulai Sila com microfone, Thamilton Teixeira, Lizidória Mendes, Nelvina Barreto e Helena Neves. Foto de Miriane Peregrino

O papel da literatura expandida para alcance de um grande público 

Abdulai Sila, um dos nomes mais renomados da literatura guineense, discorreu ainda sobre a importância da publicação num país em que não há ensino da literatura nacional nas escolas e faltam políticas de promoção do livro, leitura e literatura. O escritor, que foi um dos revisores da obra de Lizidória, afirmou também que muitas pessoas querem publicar sem amadurecimento da escrita e aquele não era o caso de Lizidória. Neste cenário, não apenas o empenho e sucesso pessoais de Lizidória chamam atenção, mas o interesse de um grande público pelo lançamento da obra literária.

Em entrevista, Suaila Fonseca Cá, poeta e apresentadora de TV que também assistiu ao lançamento, destacou: “Isso [o lançamento de Lizidória] é um marco histórico para nossa geração, e que vai abrir ainda mais portas para outros jovens ousarem a publicar” - e acrescentou - “Eu acho que ela fez um marketing do evento que nunca houve! Nunca houve na história de publicação de livro [em Bissau]”. 

Com mais de sete mil seguidores, Lizidória Mendes (@mendeslizidoria) também é autora da página Zaziwe’s pensamentos (@zaziwespensamentos), que reúne mais de 12 mil seguidores nas redes sociais, e nas quais a escritora divulga seu trabalho literário há pelo menos uns cinco anos. 

Ela já tinha um público de leitores, um público que a acompanha. E aquele público se identifica com a escrita dela” – afirmou Suaila Fonseca Cá – “Então, vão querer saber o que ela escreveu dentro daquele livro. E uma outra coisa tem a ver com uma menina daquela idade que vai publicar. Todo mundo vai querer saber o que aquela menina [que acompanham nas redes sociais] tem a dizer à sociedade (…). E para além disso, Lizidória também fez parte de muitos movimentos nacionais que promovem o direito das crianças, como também das meninas, e essas pessoas estiveram a engajar a publicação, participaram”. 

Devido ao grande movimento no dia do lançamento de “Sentimentos e Razão”, entrevistei a escritora alguns dias depois no próprio CCFBG. “Realmente, durante este processo não tive apoio financeiro. Todos os custos foram cobertos por mim, a minha poupança. Mas há apoios que não posso ignorar, é o caso do Ivan Barbosa” – revelou Lizidória Mendes que trabalhou a divulgação de seu romance em diálogo com outras linguagens artísticas. Da música, artistas e grupos tais como Binham, Betinho, Didity, As One, Klash entre outros, musicaram capítulos do livro e/ou personagens. A própria nota final do livro confirma que cada capítulo “é acompanhado por uma extensão artística que o amplifica e traduz em formas visuais e sonoras” (MENDES, 2025, p. 167). Já das artes plásticas, Cálida Baldé criou 13 quadros baseados em temas e/ou capítulos do livro. 

Quando decidi mesmo que ia lançar o livro, eu quis que fosse algo inédito. Não queria que fosse mais um lançamento de livro, porque o conceito é muito grande e o lançamento também tinha que ter a dimensão, a altura do próprio livro, a altura do conceito que nós trouxemos.” – afirmou Lizidória – “Então, pus tudo no papel, entrei em contato com as pessoas que eu achei que fossem ideais para ajudar na concretização [do lançamento], uma vez que eu estou em França [morando e estudando]. Entrei em contato com eles. Nós montamos a equipa, começamos a trabalhar, elegendo o responsável da coordenação – Ruan Gomes. E foi assim, tudo foi fluindo”. A escritora contou ainda com subcomissões das quais fizeram parte, por exemplo, o Clube Amor à Leitura (@clube_amor_a_leitura), um destacado coletivo ativista de promoção do livro, leitura e litetura na Guiné-Bissau.

Lizidória atribuiu o grande alcance de público no dia do lançamento à multiplicidade de linguagens que procurou associar ao seu romance: “Eu acho que foi o próprio conceito do livro que eu trouxe, porque o livro tem três dimensões. A música, que para ver o nosso contexto, no fundo, a música arrasta mais pessoas, sobretudo a camada jovem. Então, a pessoa pode não vir aqui interessando-se justamente no livro, mas nas músicas que foram cantadas através do livro. E há outras pessoas que vieram aqui porque interessaram-se pelos quadros que foram ilustrados através do livro. E houve pessoas que estiveram cá pelos três motivos: o livro, as músicas e os quadros. Então, para mim, estamos num contexto em que fazer qualquer coisa tem que exigir mesmo um propósito. Qual é o resultado que nós queremos com isto? E eu, desde os primeiros momentos, já havia pensado nisso. Ao lançar o livro, será que devo lançar apenas o livro? É importante poder explorar contextos, poder explorar alguns detalhes para chegar ao público que tu queres tocar. Então, foi o que eu fiz, trazendo o livro não só, mas com uma extensão na música e arte plástica. Eu acho que, pronto, talvez fosse a justificação da casa cheia até fora.

Hall de entrada do CCFBG durante o lançamento de Sentimentos e Razão Foto de Miriane PeregrinoHall de entrada do CCFBG durante o lançamento de Sentimentos e Razão Foto de Miriane Peregrino

Um romance sobre a emancipação da mulher guineense nos dias atuais

Para além da produção cultural em torno do lançamento do livro, conversamos com a escritora sobre seu processo de produção literária. Em “Sentimentos e Razão” (Kroson ku Rosou no kriol), Mendes conta a história da personagem Malia, uma jovem guineense que procura seu lugar na sociedade e trava uma luta por emancipação ao mesmo tempo que recusa o feminismo nos moldes ocidentais.

Enquanto autora tenho as minhas crenças e talvez através das minhas personagens tento fazer a costura daquilo que a sociedade tem que encarar como lutas. Quando digo lutas, são lutas, por exemplo, como o feminismo. E para mim, enquanto alguém que já está nesta carreira de seguir a pesquisa, a escrita em si, eu acredito que qualquer luta para que possa alcançar resultados concretos, resultados reais, exige que sejam feitos num contexto. Não podemos fazer lutas descontextualizadas. Quando nós vamos falar de direito, quando nós vamos falar do feminismo, quando nós vamos falar do lugar da mulher, é importante levar em consideração o contexto. Então, é isto que a Malia vai encarnar, mostrando que, sim, é importante certas afirmações feministas. Mas enquanto mulheres negras, quando nós vamos apelidar de feministas, é importante identificar que feministas nós somos. Se somos feministas negras, se somos até feministas guineenses, aquilo importa, porque nós falamos de um contexto. Não podemos, em nenhuma circunstância, igualar uma mulher, por exemplo, guineense, que nasceu e cresceu nesse contexto, com uma mulher que praticamente fez as suas vivências em Portugal.” – explicou Lizidória – “Então, o livro traz ao debate esta questão. Será que todas as lutas que nós vamos fazendo devem ser encaradas numa perspectiva global, ignorando as realidades locais e até as suas complexidades? Então, é importante partir do princípio que para resolver um problema é bom partir do local, porque este problema é o local que impacta. Não adianta, na minha perspectiva, encarnarmos certas lutas, sem, no entanto, levarmos em consideração o nosso contexto. É verdade que a Guiné-Bissau é um país multiétnico, com as suas particularidades, um país plural, quando nós vamos falar de etnias, diferentes culturas, então não podemos singularizar a luta. Porque a minha forma de pensar como uma mulher, por exemplo, da etnia manjaca, pode ser diverso da forma de pensar de uma mulher que é da etnia pepel, que é da etnia balanta, que é da etnia mancanha. Então, são essas particularidades que nós devemos juntar e nomear, não é só chegar como se fosse um contexto homogêneo. Não é.

A data do lançamento do livro, 25 de maio, Dia da África, também foi mais uma escolha cuidadosa da escritora, que demarca e reafirma o lugar simbólico de sua produção literária: “Eu fiz questão de escolher 25 de maio [para o lançamento], por causa das temáticas que o livro traz. Se formos ver, “Sentimento e Razão” é uma temática muito universal, como dizem, mas ao fundo [do livro], encontramos aspectos africanos (…) com componentes guineenses muito patentes no livro, sobretudo as expressões crioulas, os nomes dos personagens, o próprio enredo. Para mim não teria um outro dia melhor que não fosse 25 de maio para fazer o lançamento”.

Genealogia do livro: Lizidória compartilha seu processo literário 

Malia, a personagem central do romance de Lizidória Mendes, no entanto, não nasceu rapidamente. Conforme nos conta a escritora, o processo de escrita do romance foi longo. 

Este é o meu primeiro livro, mas é um livro que já estava pronto desde os meus 17, 18 anos, porque comecei a escrever muito cedo. Mas depois, não é que eu não tivesse a coragem de publicar, mas eu cheguei à conclusão que faltava ainda muito tempo para publicar, porque eu precisava de uma maturidade literária para blindar o livro. Então, foi o que aconteceu. Depois que eu terminei de escrever o livro, tive a oportunidade de ingressar no curso, neste caso, de licenciatura em estudos de língua portuguesa. Aquilo ajudou-me bastante a retrabalhar o livro, pensar no conceito que eu queria trazer no momento do lançamento” – conta a escritora, que continua – “Fiz revisões, inclusive para poder comprovar mesmo isto e, para um dia poder falar da trajetória deste livro de uma forma pública, fiz questão de guardar todas as cópias, todas as versões do livro, na medida que vai crescendo, na medida que vai mudando. E o produto final que eu tenho, eu considero que é um fruto de maturidade, é um fruto de mudança tanto na escrita, em termos linguísticos, a própria consistência da história. Então, foi um processo interessante, apesar de ter levado muito tempo, mas foi necessário”.

Lizidória Mendes afirma que deveria ter lançado o livro em 2020, ou seja, há cinco anos atrás: “Mas, após ter partilhado [o livro] com algumas pessoas, fizeram algumas recomendações para tirar algumas cenas e tal. Foi ali que eu tomei a decisão de que eu tinha que dar um tempo para fazer o livro crescer. Logo fiz a questão mesmo de guardar todas as versões do livro. Para mim, aquilo marca uma espécie de crescimento do livro. Logo na altura, entrei em contato com a editora Nimba, porque vi que é uma editora que publicou muitos escritores guineenses. Logo à partida, aceitaram publicar o meu livro, só que depois, como não segui com a ideia, deixamos. Quando cheguei à França, ressurgiu a ideia de publicar. Entrei em contato e ficaram felizes em me receber de novo. E foi assim o processo”. 

Através do depoimento da escritora, fica evidente sua preocupação com todas as etapas de produção e divulgação do seu livro de estreia. Lizidória Mendes já sinaliza aos futuros estudiosos do romance que ela guarda várias versões da escrita da obra, o que permitirá que o romance venha a ser analisado não apenas na sua versão final publicada, mas através dos textos que atestam a genealogia do livro ao longo do tempo.

Lições de um lançamento fenomenal

A primeira vez que entrevistei Lizidória Mendes foi por sua participação como jurada do Slam Poetry Mulheres de Bissau que organizei, ano passado, também no CCFBG. Na ocasião, Lizidória ainda residia em Bissau e compartilhou comigo a expectativa de lançar seu primeiro livro em breve.

Em maio deste ano, eu vinha acompanhando os eventos culturais que estavam agitando a capital guineense e, mesmo naquele dia 25, eu tinha acabado de sair de outro lançamento quando cheguei ao CCFBG para o evento de Lizidória Mendes. Ali, deparei-me com um verdadeiro fenômeno de público e mobilização. Algo fora do comum, mesmo naqueles dias nos quais a agenda cultural de Bissau contava com vasta programação. Neste contexto e diante dos aspectos já elencados até aqui, o lançamento de “Sentimentos e Razão” foi um evento que leitores, pesquisadores e demais interessados nas culturas e literatura guineenses não podem ignorar visto que incide não apenas sobre a popularidade de uma jovem escritora, mas também dizem respeito à uma literatura expandida e seus caminhos de produção, difusão e circulação no campo cultural contemporâneo. 

Durante a entrevista realizada com Lizidória Mendes após o lançamento, três aspectos ficaram em destaque: 1) que o sucesso de público do lançamento, para além da trajetória da escritora e sua influência nas redes sociais, foi resultado de um trabalho coletivo, pois Lizidória contou com um grupo de pessoas que acreditaram em seu projeto e a apoiaram na produção do evento. Embora, em termos financeiros, os custos do empreendimento tenham sido custeados por ela própria; 2) a autora acertou ao colocar a linguagem literária em diálogo com outras linguagens artísticas, de forma estendida, garantindo um alcance mais amplo da obra mesmo antes do seu lançamento; e 3) Lizidória também passou pelo caminho solitário da literatura, de escrita e reescrita da obra visto que o processo de criação de seu primeiro romance acompanhou o amadurecimento literário, acadêmico e humano da escritora. 

E esses aspectos, além dos demais já citados, nos convidam a repensar o lugar da literatura, em geral, e guineense, em particular, nos dias de hoje com e apesar da efemeridade das novas mídias, com e apesar da ausência de políticas públicas que atendam às demandas educacionais e culturais, sobretudo, de uma juventude ávida e esperançosa no contexto guineense mas não só, e com e apesar do ainda conflituoso embate entre o ocidente e as práticas tradicionais de povos africanos, tais como as abordadas por Lizidória Mendes em seu romance de estreia. 

Além de realizar mais alguns eventos em Bissau, a escritora confirmou o lançamento do livro em Portugal e na França a partir do mês de julho deste ano. Neste período, também deverão ser disponibilizadas mais músicas relacionadas ao livro no YouTube.

LIZIDÓRIA MENDES (1997) nasceu em Canchungo, norte da Guiné-Bissau, passou a infância no Senegal e retornou à Guiné-Bissau aos oito anos de idade. É licenciada em Estudos da Língua Portuguesa pela Escola Superior de Educação Tchico Té, na Guiné-Bissau. Em 2024, ingressou no mestrado em Sociologia, com especialização em estudos de gênero, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. Foi Deputada do Parlamento Nacional Infantil e coordenou a plataforma GIRLS OUT LOUD – NHA FALA, uma academia de liderança feminina com mais de 500 membros, dedicada à formação política e empoderamento econômico das meninas. É Embaixadora da Paz na Guiné-Bissau. 

por Miriane Peregrino
A ler | 16 Junho 2025 | Dia de África, Guiné Bissau, Literatura, Lizidória Mendes, slam poetry