Viemos roubar os vossos maridos, um espetáculo de teatro documental
“O ponto da peça é que as mães de Bragança são um bom dispositivo pra gente refletir sobre questões que são pessoais e são coletivas, e que têm a ver com fricção entre o diferente. Isso me interessa muito enquanto artista. E acho que o sucesso da peça também tem a ver com isso” – disse-nos Maria Giulia Pinheiro.
Neste mês de setembro, o Auditório Camões teve sua lotação esgotada com o espetáculo teatral “Viemos roubar os vossos maridos”. A peça, que tinha estreado em abril, ganhou sessão única na programação do Festival Todos, em Lisboa, no último dia 12. Com criação, encenação e dramaturgia de Maria Giulia Pinheiro, e textos e interpretação de Tati Pasquali, Camila Cerqueira e Eliene Lima - todas artistas brasileiras, o espetáculo traz o episódio das Mães de Bragança como mote para discutir os estereótipos que perseguem as imigrantes brasileiras na sociedade portuguesa contemporânea.
A encenação começou no hall de entrada do auditório. Sim, este texto contém spoiler! Pare agora ou siga consciente. O público masculino foi convidado a entrar e ocupar as primeiras fileiras do teatro. Burburinho, curiosidade. Qual a intenção daquilo, afinal? Os homens teriam uma participação especial? Enquanto as mulheres continuavam aguardando na entrada, a atriz Tati Pasquali, usando um biquini verde e amarelo e enrolada numa bandeira do Brasil, circulava entre o público oferecendo uma dose de cachaça. Após alguns minutos, o público feminino foi convidado a entrar e ocupar os lugares restantes do teatro.
No palco, a personagem-atriz Tati Pasquali narra sua própria história em Portugal e como tomou conhecimento de um dos episódios que marcaria a história recente do país: As Mães de Bragança. Camila Cerqueira, num primeiro momento, encarna a mulher portuguesa brigantina e, usando um traje tradicional, realiza a leitura da carta que quatro de mulheres de Bragança endereçaram às autoridades pedindo a expulsão das brasileiras trabalhadoras do sexo da cidade. O ano era 2003 e a história virou capa da Revista Time: “When the Meninas came to town”. A plateia reage a leitura da carta com muita risada. O episódio tinha mesmo todos os ingredientes de uma boa “novela da vida real”, como declarou Tati Pasquali em cena.
Aos poucos, a personagem portuguesa interpretada por Camila Cerqueira retira o traje tradicional e a imigrante brasileira Camila se revela como mais uma personagem-atriz, compartilhando com o público sua própria história e experiência de imigração. A dicção da atriz também muda, sai do português de Portugal e manifesta as marcas do português brasileiro. Os gestos, o olhar e vestido branco usado pela atriz, neste momento, propositalmente remetem as/os espectadores à uma personagem bastante conhecida da literatura brasileira, Gabriela, do escritor Jorge Amado (1912-2001).
O romance “Gabriela, Cravo e Canela”, publicado no Brasil em 1958, foi adaptado pela Rede Globo em 1975, e exibido em Portugal, em 1977, pela Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Ao mesmo tempo que a imagem sensual da personagem interpretada por Sônia Braga parecia (e parece) escandalizar os costumes portugueses, o altíssimo índice de audiência e sua longiva exibição em Portugal, revelam sua grande popularidade no país. A peça teatral indica que a novela brasileira foi uma das difusoras dos estereótipos associados às imigrantes brasileiras em Portugal e mesmo a reação das “Mães de Bragança” coincidia com a indignação das mulheres casadas de Ilhéus contra as prostitutas do Bataclan no romace amadiano. Uma entrevista de Sônia Braga sobre a popularidade da novela em Portugal, é reproduzida na tela do palco e a declaração de que ela era casada com um homem português soa como mais um elemento fantástico e irônico de uma novela da vida real.
Já a história de Eliene Lima, única das personagens do espetáculo envolvida diretamente no episódio das Mães de Bragança, surge também na tela do palco, numa entrevista concedida a encenadora Maria Giulia Pinheiro. Gestora de uma casa de alterne à época do caso das Mães de Bragança, Eliene conta sua história de imigração e como eram vistas as prostitutas brasileiras na cidade. Sobre o episódio, Eliene lembra que tinha dado à luz ao primeiro filho e como se revezava entre os cuidados da criança e seu trabalho na casa de alterne naquele tempo. A personagem-atriz leva o público a questionar a dicotomia “mães portuguesas” e “prostitutas brasileiras”, pois “mães”, muitas delas, também eram.
Em determinada altura da peça, enquanto a personagem-atriz Camila Cerqueira transita entre a plateia, no palco, Tati Pasquali, sutilmente aperta um botão que apaga parte do letreiro iluminado que trazia o nome da peça. Agora “os vossos maridos” brilha isoladamente, indicando para onde, o desfecho do espetáculo, caminhava.
A peça teatral convida a plateia a questionar a sociedade patriarcal, que em Portugal e também no Brasil, estabelece a dicotomia entre a mulher de casa e a mulher da rua, a branca e a racializada, que convence a/o outra/o de que a estrangeira, aqui no caso “a brasileira”, é a promíscua, é a macumbeira que faz feitiço para segurar o homem português.
fila no auditório do Camões, foto da autoraOs homens, privilegiados com os lugares das primeiras fileiras do teatro, viram alvos dos olhares das atrizes e das mulheres na plateia. “Os homens” eram, eles próprios, as autoridades que ignoraram os apelos das Mães de Bragança. Eram eles também, “os homens”, os clientes das casas de alterne. Eram “os homens” que traíam os contratos de casamento e negligenciavam seus deveres junto às suas famílias para satisfazer seus próprios prazeres. Eram eles, “os homens”, que abandonavam as esposas portuguesas e exploravam os corpos das brasileiras trabalhadoras do sexo. Eram “os homens” que se beneficiavam da rivalidade feminina. “Os homens”, afinal, precisavam ser responsabilizados por suas escolhas.
As Brasileiras
Em um dos momentos marcantes do espetáculo, a personagem-atriz Tati Pasquali se volta para o público e conta como conheceu sua colega de cena, Camila Cerqueira: ambas trabalhavam numa produção audiovisual portuguesa na qual interpretavam prostitutas brasileiras. A revelação é feita em tom de brincadeira e tira risos da plateia. Afinal, o que poderia ser mais engraçado do que a ironia de uma novela da vida real?
Em “Viemos roubar os vossos maridos”, a peça também chama atenção para o fato de que, com o tempo, a circulação do caso das Mães de Bragança deixou de referenciar as imigrantes trabalhadoras do sexo como “as prostitutas brasileiras”, retirando a palavra “prostitutas” e reduzindo e generalizando essas imigrantes apenas como “as brasileiras”.
Em entrevista, a encenadora Maria Giulia Pinheiro nos falou um pouco sobre o espetáculo:
“Eu já tinha essa obsessão há muito tempo de falar sobre isso, eu trabalho com teatro documentário autoficcional, geralmente eu estou em cena, mas eu sentia que para esse caso não fazia muito sentido eu estar em cena, porque eu não tinha nenhuma relação visceral com esse caso. O que eu queria, minha ideia inicial, era procurar uma trabalhadora do sexo portuguesa e uma mulher brasileira para contar essa história, uma mulher brasileira que de alguma forma fosse afetada pela xenofobia, o que não é muito difícil. Mas isso foi tudo em 2019, e teatro tem uma grande dificuldade… Eu migrei para cá como poeta, e foi fácil migrar como poeta, porque eu só preciso de mim, então eu consegui fazer vários eventos de poesia, porque eu sou agitada, mas a poesia também requer pouca coisa para acontecer, mas o teatro requer uma equipe. Requer pessoas que pensem com a mesma linguagem que você, que queiram criar a mesma linguagem que você, é muito difícil migrar enquanto artista do teatro, [o teatro] é muito coletivo. E foi nesse processo que eu ouvi um episódio da Rádio Novelo, em que a Tati Pascuale fala sobre esse caso, e sobre a história dela com as mães de Bragança, que ela também conta em peça, e eu falei: ´Nossa, tá ali, essa é a minha personagem perfeita. Eu tinha que falar com ela [Tati]”.
A partir da conversa com a Tati Pasquali, Pinheiro conheceu a atriz Camila Cerqueira e mais adiante na Eliene Lima. Mas Maria Giulia tinha, como imigrante brasileira em Portugal, um interesse também pessoal no tema:
“[Fazer esta peça] veio um pouco do meu incômodo, quando eu cheguei aqui em 2019, com o fato de que queriam muito sempre saber se eu tinha marido ou não. Era logo das primeiras perguntas que me faziam sobre mim. E que quando eu dizia que eu não tinha, falavam que eu tinha vindo arranjar marido em Portugal. E depois, quando eu comecei a namorar, me perguntavam a nacionalidade do meu companheiro. Isso era sempre um assunto. Eu achava isso muito curioso. E um dia, falando numa mesa de bar sobre isso, sobre esse meu incômodo, alguém falou, brincando, que tinha a ver com as mães de Bragança”. – contou Maria Giulia. – “E quando eu encontrei as mães de Bragança, eu percebi, me saltou nos olhos, porque ela [essas história] me pareceu a metáfora e a metonímia perfeita para alguns dos assuntos que me obcecam. A questão da operação da branquitude, como forma de separar dentro da branquitude, como a branquitude opera as suas categorizações de pessoas. Então, essa questão do racismo ser muito evidente, uma operação da branquitude mesmo para perpetuar esse lugar de dominação. Toda a questão do feminismo de mulheres umas contra as outras, enquanto essa separação entre as mulheres de casa e as mulheres da rua, que é uma das separações basilares da acumulação primitiva de capital, de quando a gente precisa muito separar as mulheres para poder controlá-las, como isso operava aqui, e a questão do capitalismo brutal, porque é uma região muito pobre também, e pouco dinheiro que eles tinham estava indo embora nessa situação”.
Lisboa 12 de setembro, foto da autora
“Viemos roubar os vossos maridos” é um espetáculo de abordagem direta, que denuncia, que informa, que diverte e que dá visibilidade as narrativas de imigrantes brasileiras em Portugal. Neste momento, no qual os ataques aos imigrantes ganham força, em Portugal e na Europa, culminando na recente Lei anti-imigração, este espetáculo deveria correr o país, promovendo debates e a desconstrução dos preconceitos longa e massivamente disseminados sobre a mulher brasileira, mas tem sido realizado como uma “guerrilha”, nas palavras de Pinheiro, com recursos e apoios limitados.
“A gente fez a peça com pouquíssimo financiamento, o único financiamento que a gente teve foi da Fundação GDA, que é um financiamento curto, porque ele é só para as intérpretes. E a gente teve o apoio das bibliotecas de Lisboa e do Rua das Gaivotas 6. Mas por que eu estou falando isso? Porque foi uma temporada que foi feita na guerrilha, né? Foram pessoas que toparam fazer isso, tudo ganhando nada ou muito pouco. Mas foi uma temporada lotada, a gente lotou muito rapidamente, com muito interesse das pessoas e com uma recepção muito boa. Mas isso é, em um teatro muito pequeno, né? Quer dizer, é um lugar que cabiam 40 pessoas. Então, a lotação era mais fácil.” – nos contou Maria Giulia Pinheiro – “O Festival Todos é um festival maravilhoso, que trabalha migrações em bairros específicos de Lisboa, é um festival que foi incrível com a gente. E aconteceu isso, né? A gente saiu de um teatro de 40 lugares para um teatro de 200 com uma fila gigantesca na porta. Enfim, acho que tem bastante procura da peça, porque também acho que são vivências que as pessoas se identificam, né? Então, querem ouvir. E na complexidade também, né? Eu acho que tem a camada histórica social, a gente olha no contexto da criação da mulher brasileira, dessa imagem da criação da mulher brasileira, da venda dessa imagem para o exterior, o quanto isso reverbera aqui, com todo o passado colonial, e o quanto isso também reverbera numa dimensão muito pessoal. Então, acho que essa junção de camadas interessa as pessoas, porque é uma forma de refletir sobre vivências que a gente tem cotidianamente”.
“Viemos roubar os vossos maridos” é uma peça construída a partir do encontro de histórias autoreferenciadas pelas personagens-atrizes e a própria encenadora, mas que qualquer mulher brasileira em situação de imigração e em contato com portuguesas/portugueses, em Portugal ou mesmo outros países, pode se identificar. Os olhares de desconfiança (de umas) e de desejo (de outros), revelam as nuances de uma imagem construída historicamente sobre o corpo e o caráter das mulheres brasileiras desde a colonização.
Teatro documental e a (des)construção de estereótipos sobre as mulheres brasileiras
As origens do teatro documental remontam as primeiras décadas do século XX e a consolidação de seu conceito nas artes cênicas é atribuída ao dramaturgo alemão Erwin Piscator (1893-1966). Como gênero teatral, o teatro documental utiliza os mais variados tipos de documentos na construção da dramaturgia de um espetáculo – reportagens, diários, cartas, entrevistas, entre outros – que atestam a veracidade da história apresentada.
Em “Viemos roubar os vossos maridos” vemos uma dramaturgia costurada cuidadosamente entre as experiências das personagens-atrizes, reportagens da época, trechos de propagandas, novelas e entrevistas que revelam uma pesquisa atenta sobre o episódio das Mães de Bragança e suas ressonâncias nos dias atuais. A relação entre tecnologia e arte também marca o cenário, tornando mesmo, em alguns momentos, as personagens-atrizes em cena em espectadoras sentadas no sofá, de costas para a plateia, mas partilhando a atenção à tela do palco.
De fato, quem conhece o trabalho da encenadora brasileira Maria Giulia Pinheiro sabe que esse gênero teatral vem sendo trabalhado pela artista há alguns anos. Com show-poético e autobiográfico, “A palavra mais bonita”, Pinheiro iniciou sua circulação artística em países de língua portuguesa em 2019. Ano passado, no Festival Felicidade, encenou “Poetry-up, stand-poetry ou algo assim, entre a língua, a boca, a faca, ação e riso” no qual, afirma, ter discutido “a madrastidade como metáfora para a branquitude nas mulheres”. E está para estrear, em dezembro deste ano, o espetáculo “Arqueologia de um amor contemporâneo”, criado em parceria com o artista português Gonçalo Antunes.
Já a oferta de uma dose de cachaça no início do espetáculo, também é uma marca de outras produções de Maria Giulia. A Ginginha poética, evento que a encenadora realiza há alguns anos em Lisboa, conta também com a oferta de uma dose da bebida tradicional portuguesa. Quem conhece e aprecia a cultura brasileira, interpreta este gesto como o que ele é: uma gentileza. No entanto, esta marca de brasilidade, sob as lentes de conservadores, é destituída de sua intenção original a fim de reforçar estereótipos sobre o corpo da brasileira imigrante. “Viemos roubas os vossos maridos” também coloca a ambiguidade de intenções e olhares em discussão.
Miriane Peregrino.
Abrindo um breve parênteses aqui, recordo a entrevista concedida pela jornalista brasileira Marília Gabriela ao programa Por outro Lado da RTP. A entrevista foi realizada em 2003, não sabemos dizer se antes ou depois da repercussão das Mães de Bragança, mas a entrevistadora portuguesa, Ana Sousa Dias, fez uma pergunta sobre a sexualidade brasileira. Transcrevemos, aqui, a resposta de Marília Gabriela:
“_Mas isso é muito louco, sabe porquê? Porque vocês vieram ao Brasil. E vocês são tão rigorosamente sensuais, os portugueses trouxeram o paladar e a sexualidade para o Brasil. Se você ler Casa grande e senzala, tá toda a história lá, do que aconteceu na nossa colonização. Quer dizer, nós fomos colonizados sobre sexo e sangue. Os portugueses vieram e se cruzaram com todos. Cruzaram-se com os negros, os indígenas. Todos. Os grandes sensuais foram os patrões, foram os colonizadores, os portugueses. Nós herdamos isso dessa colonização. Sexo é para gente, mesmo, uma coisa muito natural. Às vezes, exagerado. Exageradamente espontâneo, digamos. Agora, não é um assunto que nos cause constrangimento, absolutamente, faz parte da vida, não é?”
Em sua resposta, a jornalista brasileira marcou a palavra “Vocês”, relembrando a sua interlocutora portuguesa, o papel histórico dos portugueses na formação da cultura brasileira. Afinal, a forma como os povos que foram colonizados lidam com a sexualidade não tem a ver apenas com fatores endógenos, como muitos portugueses costumam afirmar.
Na dissertação “Ser mulher e ser brasileira: o impacto dos estereótipos na integração de estudantes brasileiras no ensino superior em Portugal” (2023), a pesquisadora Hannah Schifft Braz chama atenção para o documento que inaugura a disseminação de um imaginário sexualizado da mulher brasileira: a Carta de Pero Vaz de Caminha que descreve o primeiro contato dos navegadores portuguesas com os indígenas brasileiros. Nesta carta, digida ao El Rei D. Manuel I de Portugal, Caminha afirma que a mulher daquele novo mundo: “era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não a terem a sua como ela”. Esta comparação estabelece os primeiros marcadores de diferença entre as mulheres do “novo mundo” e as “da terra”, e certamente acompanha o imaginário coletivo até hoje.
As brasileiras, descritas na carta como seres inocentes, mas também irracionais, cujos costumes não se assemelhavam aos valores cristãos dos colonizadores, chamavam atenção pelo seu porte físico, sua nudez e, por fim, sua sexualidade livre. Através de suas próprias lentes, os colonizadores portugueses entendiam a nudez feminina das indígenas brasileiras como um convite sexual. A carta de Caminha é um exemplo histórico de como a mulher não-ocidental e racializada passa a ser objetificada e figura como “tentação” para o homem na tradição colonialista.
Ao longo do tempo, a construção desse imaginário continuou e, infelizmente, passou a ser disseminado também por agentes brasileiros. Além de obras literárias e/ou televisivas como “Gabriela, Cravo e Canela”, temos muitos outros exemplos. Destaco aqui imagens de mulheres brasileiras em algumas chamadas publicitárias.
1975 – Imagem de divulgação da novela Gabriela com a atriz Sônia Braga. |
1983 – Capa da Revista Embratur. A Agência Brasileira de Promoção Internacional de Turismo estimulou, durante décadas, o turismo sexual. |
1990 – A Rede Globo de Televisão cria a chamada “Carnaval 90”, com Valéria Valenssa personificando a sambista Globeleza. |
|
|
|
1993 – Capa da Revista Manchete. Luiza Brunet, um dos símbolos do carnaval na época. |
1997 – Capa da Revista Manchete. “Xuxa para Maiores” |
1998 – Na imagem as personagens Tiazinha e A Feiticeira do Programa, Band. |
|
|
|
Fica evidente nestas imagens que essas campanhas objetificavam os corpos de mulheres brasileiras de diversos fenótipos. Este imaginário sexualizado da mulher brasileira, construído desde a colonização, tem diversas consequências nos dias atuais. Nas entrevistas realizadas por Braz, diversas estudantes brasileiras contam que são chamadas de “mulheres fáceis” e as/os portuguesas muitas vezes afirmam que elas estavam em Portugal não para estudar, mas “para roubar maridos” (BRAZ, 2023). Um episódio emblemático da institucionalização deste pré-julgamento, ocorreu em 2021, quando um professor da Universidade do Porto virou notícia ao insultar estudantes imigrantes e afirmar que “brasileira é mercadoria”. Essas representações sociais construídas sobre a mulher brasileira estigmatizam, constrangem e dificultam a integração da mulher imigrante no novo território.
Durante muito tempo, a mulher imigrante, foi apagada nos estudos migratórios por ser entendida apenas como acompanhante do homem imigrante e sem trabalho remunerado considerado relevante. A mulher imigrante resumia-se a esposa, a filha, a irmã. É só a partir dos anos de 1970/80 que o deslocamento migratório das mulheres deixa de ser invisibilizado em pesquisas sobre imigração e suas vozes começam a ser ouvidas. A vulnerabilidade da mulher imigrante passa a ser reconhecida e discutida. Como nos lembra Braz, a “migração feminina é marcada de forma multidimensional, o gênero, a cor, a nacionalidade, sendo estes fatores determinantes de pré-julgamento e segregação social” (BRAZ, 2023, p. 27).
O tempo não tem macha ré
Na minha releitura da história colonial e transposição para o que muitos de nós construímos hoje nas artes, nas pesquisas acadêmicas, na política, no cotidiano, enfim, gosto do entrelaçamento de ideias de dois escritores que, talvez, não se conheçam: Manuel Rui (Angola) e Luz Ribeiro (Brasil).
Em 1985, o escritor angolano apresentava a comunicação “Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto” no Encontro Perfil da Literatura Negra, em São Paulo. Em 2017, a slammer brasileira apresentava o poema “je ne parle pas bien” na Coupe du Munde de Slam de Poésie, em Paris. Em comum, a língua portuguesa imposta pela colonização.
Manuel Rui (1985):
“Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão,
desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar
não contra o teu texto não na intenção de o liquidar
mas para exterminar dele a parte que me agride”.
Luz Ribeiro (2017):
“je ne parle pas bien
o que era pra ser arma de colonizador
está virando revide de ex colonizado
estamos aprendendo as suas línguas
e descolonizando os pensamento
estamos reescrevendo o futuro da história”
A irreversibilidade do tempo nos lembra que não podemos mudar a história, apagar a herança colonial, mas que é preciso revisitá-la, relê-la, reelaborá-la para escrever um presente mais justo e desenhar um futuro que nos permita ter alguma esperança.
“Viemos roubar os vossos maridos” se apropria de uma frase de acusação dirigida a nós, brasileiras, nas mais variadas situações, para colocar o dedo numa ferida recente e incómoda. Não para “agredir”, não para “liquidar” a/o outra/o, mas por que é preciso reescrever o “futuro da história”.
Segundo a encenadora, “Viemos roubar os vossos maridos” é carrega ainda uma utopia de encontro entre as mulheres – brasileiras e portuguesas: “A peça termina convidando as portuguesas, mesmo, a entender que a gente está do mesmo lado, que o inimigo é o patriarcado. A gente está falando a partir de uma perspectiva brasileira, e com certeza a perspectiva portuguesa é muito diferente.” – e prossegue chamando atenção para as relações de gênero em Portugal – “São relações muito violentas e tem uma tendência das mulheres portuguesas também quererem se libertar disso”.
A imagem que Maria Giulia Pinheiro nos traz, a seguir, também é um convite para que reconheçamos alguma poesia neste encontro de gente e suas contradições.
“Eu acho que a gente tá num momento, eu acho não, a gente tá num momento, de migração brasileira muito forte aqui em Portugal e que muitos dos casamentos se dão entre portugueses e brasileiras”. – afirma Maria Giulia Pinheiro – “Eu adoro essa imagem. [Aqui] a gente tem muitos amigos que têm avós portuguesas, então que faziam doces portugueses e a gente ia comer o doce da avó portuguesa. Eu acho que em breve, aqui em Portugal, vão ter muitas avós brasileiras, sabe? E, as crianças, irão pra casa [delas] pra comer brigadeiro. E eu acho isso engraçado. Acho que é uma coisa que a gente vai ter que lidar e que, cada vez mais, vai ser mais forte, na cultura portuguesa, essa entrada dos brasileiros nessas famílias”.
VIEMOS ROUBAR OS VOSSOS MARIDOS
Ficha técnica
Criação, encenação, dramaturgia e textos: Maria Giulia Pinheiro
Textos e Interpretação: Tati Pasquali, Camila Cerqueira e Eliene Lima
Realização em vídeo e direção de projeção: Anna Zêpa
Direção de cena e design de iluminação: Lucas França
Direção de movimento: Deborah Kramer
Trilha sonora: Ágatha Cigarra
Olhar exterior: Patrícia Portela e Jorge Louraço
Artes gráficas: Pat Cividanes
Apoio técnico: Hugo Vasconcelos
Produção: Tati Pasquali e Maria Giulia Pinheiro
Referências:
Rede social de “Viemos roubar os vossos maridos”: https://www.instagram.com/viemosroubarosvossosmaridos/
Site da encenadora Maria Giulia Pinheiro: https://www.mariagiuliapinheiro.com/
Entrevista de Marília Gabriela à RTP: https://www.rtp.pt/programa/tv/p14865/e1
Dissertação “Ser mulher e ser brasileira: o impacto dos estereótipos na integração de estudantes brasileiras no ensino superior em Portugal” (BRAZ, 2023): https://repositorioaberto.uab.pt/entities/publication/a2f613a0-1708-4391-ba8b-cee449eb8a76