Heranças africanas em língua portuguesa: «sempre habitámos um espaço maior que nós»

Num ensaio lucidamente intitulado “Da ficção do império ao império da ficção”1, publicado em 1984, Eduardo Lourenço escreve a propósito da descolonização portuguesa:

“Temos de nos habituar a pensar que sempre habitámos um espaço maior que nós e por isso mesmo sem sujeito. É a parte de verdade da nossa imperial ficção. Contentemo-nos hoje com a ficção dessa verdade. E adaptemo-nos em casa e fora dela a essa ficção. (Lourenço, p. 269)

No referido ensaio, Eduardo Lourenço defende a ideia segundo a qual, na percepção sobre a descolonização durante os anos 1980 em Portugal, mantinha-se a atitude de “desdramatização” quanto ao facto colonial, a coberto da ideia imperialista do regime salazarista de uma “colonização diferente”. Desta forma, Lourenço critica o argumento (avançado, na altura, num editorial do jornal Expresso) da persistência de um “espaço luso-africano” após o derrube do império colonial português. Assim, para o ensaísta, verificar-se-ia uma tendência a “tratar agora o império da ficção como o substituto da realidade historicamente perdida”” (Lourenço, p. 268)
 
Na minha opinião (e com a devida ressalva do contexto histórico próprio do texto de Lourenço), esta ideia de “habitar um espaço maior que nós”, relativa à relação de Portugal com as suas antigas colónias africanas encontra eco no último volume da Coleção MEMOIRS, intitulado Heranças Pós-coloniais nas Literaturas de Língua Portuguesa (orgs. Margarida Calafate Ribeiro e Phillip Rothwell, Porto: Afrontamento, 2019). 
 
O “império da ficção” de que fala Lourenço encontraria a sua actualidade no conceito de “África lusófona”, que os editores do livro Heranças Pós-coloniais nas Literaturas de Língua Portuguesa problematizam no prefácio nos seguintes termos:

“A África lusófona é então e ainda um conceito operativo, não mais como uma reivindicação colonial ou como uma ressaca pós-colonial, não mais como um território fixo e absoluto que determina a nacionalidade, mas como um fluxo pós-nacional no qual as identidades individuais não podem ser contidas em termos excessivamente simples ou ideologicamente motivados. Em certo sentido, e culturalmente falando, a África lusófona pode ser um termo agregador e que em nada retira o ser angolano, moçambicano, são-tomense, guineense ou cabo-verdiano.” (Ribeiro e Rothwell, p. 14)

Não se trata, claro, de ver nesta obra “a África lusófona” nos termos do “espaço luso-africano” criticado por Lourenço. Antes pelo contrário, a abordagem pós-colonial do volume da Coleção MEMOIRS (que, numa perspectiva mais alargada, é a do projecto MEMOIRS) faz com que a África lusófona sobre a qual se debruçam os 22 textos do volume Heranças pós-coloniais corresponda àquele império da ficção que Lourenço propunha, já em 1984, para substituir a falaciosa e colonial ficção do império português.
 
Não é por acaso que o livro Heranças Pós-coloniais nas Literaturas de Língua Portuguesa está estruturado à volta de três secções de cariz essencialmente espacial. Nos “Mapas” (Parte I), estão reunidos seis ensaios panorâmicos sobre as literaturas de São-Tomé, Moçambique, Angola, Cabo Verde e Guinea-Bissau. Pela sua vez, os “Recortes” (Parte II) contém oito aproximações temáticas ou de autores destes países, enquanto que os “Trânsitos” (Parte III) apontam para os prolongamentos no espaço além-África dessas literaturas de língua portuguesa na actualidade, isto é, as diásporas. O volume apresenta um leque diverso de autores, tanto pela sua origem (africanos, europeus, latino-americanos) quanto pela variedade de gerações e de especialidades em que estes se enquadram, e que faz com que o espaço lusófono seja retratado na sua pluralidade. No mesmo sentido, a capa do livro, do artista guineense Nu Barreto, aponta para o carácter cosmopolita das expressões artísticas africanas na actualidade. Contudo, mais do que destacar as contribuições individuais, interessa-me ressaltar aqui a organicidade do volume no contexto transnacional das literaturas africanas de língua portuguesa.
 
Sendo assim, os textos que compõem o quarto volume da coleção MEMOIRS respondem à necessidade de fazer com que o conceito de “África lusófona” que os reúne seja lido através da “multiplicidade flexível” (p.15) que caracteriza a produção artística dos países africanos de língua portuguesa na actualidade. O projecto MEMOIRS, dedicado nomeadamente às representações da pós-memória do colonialismo europeu na Europa, não podia deixar de considerar esse outro espaço, o africano, que de alguma maneira é a origem real e metafórica das transferências de uma grande parte das memórias entre as gerações pós-imperiais da sociedade europeia actual.
 
Com este volume dedicado ao estado da crítica sobre as literaturas africanas de língua portuguesa quase sessenta anos depois do início das lutas pela independência, MEMOIRS revivifica as palavras de Eduardo Lourenço sobre a necessidade, para os Portugueses, de reconhecer que “sempre habitámos um espaço maior que nós”. Espaço vasto e múltiplo, acrescentaria eu, que afinal se afigura naquele território imaterial que representam as literaturas pós-coloniais de língua portuguesa.
 
Margarida Calafate Ribeiro e Phillip Rothwell (orgs.), Heranças Pós-coloniais nas Literaturas de Língua Portuguesa, Porto: Afrontamento, 2019, Coleção MEMOIRS.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Eduardo Lourenço, “Da ficção do império ao império da ficção”. Texto publicado originalmente no Diário de Notícias a 24 de abril de 1984, e recolhido em volume sob o título O Colonialismo Como Nosso Impensado (ed. Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Lisboa: Gradiva, 2014).

por Felipe Cammaert
A ler | 18 Julho 2020 | Literatura, Memoirs, retornados