Gerir

Perante o desafio de refletir sobre o verbo «Gerir», vale a pena fazer uma breve abordagem ao conceito de Gestão aplicado à Cultura e às Artes. Entende-se, aqui, a Gestão como ferramenta de tomada de decisões com base no conhecimento e compilação de dados que, ao serem estudados e analisados, permitem fazer escolhas, reduzindo tanto quanto possível a margem de erro. 

No entanto, a Gestão aplicada à Cultura ou às Artes acarreta outros pontos menos suscetíveis de serem medidos, analisados, melhorados e controlados. Além da dimensão efémera que caracteriza, em grande medida, os projetos artísticos e culturais, neste setor, gere-se fundamentalmente recursos humanos, expectativas, incertezas e emoções. Muito diferente, por exemplo, da gestão de uma empresa de produção de grogue, de queijo ou de telemóveis que, em regra, centra a sua atividade em resultados e metas quantitativas.

A missão das organizações culturais é a arte e a educação, não a saúde financeira. (Kaiser, 2008) 

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Ter a consciência de que um gestor cultural ou artístico é um técnico ao serviço da utopia, que deve sempre priorizar a criação em detrimento dos recursos financeiros — na tomada de decisões, é um passo fundamental para o sucesso do setor. Todavia, não quero com isto dizer que não se deva primar por uma gestão rigorosa dos recursos financeiros, particularmente quando se gere dinheiro público. Defendo, no entanto, que antes de qualquer corte que possa desvirtuar ou enfraquecer a criação — fim primordial de uma instituição de programação e gestão cultural e artística — devem procurar-se alternativas e soluções que priorizem e salvaguardem a sua integridade. Tendo em consideração que cada criativo ou artista, ao se debruçar sobre uma criação — espaço de exercício da liberdade de expressão e autonomia —, emprega nela a sua imaginação, perceção, memória e expressão, é fundamental que o gestor seja um aliado e que crie condições favoráveis ao exercício dessa criação. Normalmente, o grau de expectativa por parte de quem cria é bastante alto e, por acarretar um elevado nível de exposição, também encerra muita dúvida, ansiedade, inquietação e outros sentimentos. Quando se gere neste setor, tudo isto deve ser tido em conta na tomada de decisões.

Mais do que competência técnica, possível de ser adquirida e aprimorada ao longo do percurso profissional, a gestão cultural e artística requer um alto grau de sensibilidade. Não se trata, porém, de uma aptidão abstrata que se adquire apenas através de leituras ou assistindo palestras. É sobretudo uma competência concreta que é desenvolvida e amadurecida através de uma procura incessante e, naturalmente, da prática e de uma longa experiência. Considero de particular importância prestar atenção às sensações, emoções e pensamentos da classe com que se trabalha, tendo em vista adquirir ou melhorar progressivamente as capacidades necessárias à tomada de decisões mais acertadas no exercício da gestão.  

Centrando-me, particularmente, no setor em discussão, o artesanato e o design, arrisco afirmar que gerir neste contexto não difere de outras áreas — atendendo que comporta, também, as dimensões artísticas, culturais e criativas. Permitam-me utilizar a minha formação e experiência profissional para aprofundar esta afirmação. Nesta caminhada de mais de vinte anos, tive a oportunidade de me relacionar e experienciar diferentes setores artísticos e culturais. Tendo me iniciado na dança, formado em Teatro e Gestão Cultural e trabalhado no setor do teatro, da música e das artes plásticas em diferentes países e, sendo diretor e programador do Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD, em Cabo Verde — posso afirmar que as ferramentas de gestão cultural e artística não diferem de um setor para outro, o que se distingue são as instituições, os equipamentos (teatro, museu, galeria, entre outros) e o conteúdo com que se trabalha. Naturalmente, as ferramentas de gestão devem ser ajustadas às especificidades de cada setor, de modo a responder melhor aos desafios que cada um acarreta. Por exemplo, o campo das artes performativas, designadamente o teatro, a dança, ou a música, convoca desafios diferentes das artes visuais ou do design. Se nas artes performativas a apresentação ao público é feita, fundamentalmente, através do espetáculo, nas artes plásticas ou visuais, prevalece o formato de exposição. 

Alguns aspetos não alteram. Gerir, independentemente da área em que se está inserido, pressupõe conhecimento do setor. Este último, por sua vez, possibilita traçar uma visão sobre o projeto ou a instituição cultural e artística que se está a gerir. A visão, por sua vez, conduzirá ao desenho de um plano estratégico a ser implementado e acompanhado.

Feita esta primeira abordagem, passo a debruçar-me mais aprofundadamente sobre alguns pontos fundamentais no exercício da gestão, designadamente o estudo e conhecimento do setor e o contexto onde está inserido, visão estratégica, plano de médio a longo prazo, condições necessárias à implementação do plano/projeto.

Irlando Ferreira Irlando Ferreira

Estudo e conhecimento do setor e o contexto onde está inserido

Em qualquer área de atividade, o estudo e a aprendizagem contínuos são fundamentais para se alicerçar um trabalho sério e consequente. Na cultura e nas artes e, bem entendido, no artesanato e no design, não é e nem poderia ser diferente. Pelo contrário, tendo em conta o dinamismo destes setores, talvez seja ainda mais exigente — por requererem uma reflexão e ação ininterruptas. O conhecimento assemelha-se a um organismo vivo em contínuo crescimento e transformação à medida que se relaciona com o meio ambiente (Davenport e Prusak, 1998). Este conhecimento adquirido e maturado ao longo do tempo, através do estudo, análise, transformação e tomada de decisões, funciona como a urdidura onde se vai assentar a visão estratégica. Quando se gere no domínio do artesanato, por exemplo, além de se colocar ao serviço de uma larga classe de artesãos com conhecimentos, saber-fazer, técnicas e tecnologias distintas, trabalha-se, também, com um vasto património material e imaterial e com capital acumulado e transformado ao longo de muitas gerações e que integra, também, a dimensão cultural, identitária e simbólica da região e do lugar. Naturalmente, para se poder conhecer e potenciar este capital humano, cultural, histórico, social e económico é indispensável uma profunda imersão neste campo. De outro modo, parece bastante improvável que se possam desenhar projetos, tomar decisões e implementar ações que respondam, efetivamente, aos anseios e aos interesses da referida classe. 

Quando se trabalha o artesanato e o design enquanto disciplinas que se correlacionam e interagem na procura de novas soluções e propostas no domínio da criação, os desafios tornam-se ainda mais complexos, pois, normalmente, as preocupações, os interesses e metodologias de trabalho diferem consideravelmente atendendo às suas especificidades. Neste caso, sugere-se estreitar os pontos de interesse comum. Esta ação pode abrir espaço para uma colaboração profícua para ambas as disciplinas e promover, deste modo, novas abordagens estéticas ou funcionais do artesanato e do design. Quem gere tem de estar atento a todas essas dinâmicas no sentido de prestar um serviço relevante à classe. 

Visão estratégica

Independentemente do campo de atuação, para se empreender uma ação, é fundamental definir de modo geral onde se encontra, para onde se quer avançar e como é que se pode lá chegar. De outo modo, não há vento favorável que facilite a jornada. Como referido acima, o estudo e o conhecimento podem constituir as bases de partida, no entanto, é essencial projetar, no tempo e no espaço, aquilo que se pretende alcançar a médio e a longo prazo. Para citar um simples exemplo, um artesão, ao projetar uma peça, recorre aos conhecimentos técnicos e tecnológicos, matéria-prima, ferramentas e analisa a viabilidade e a relação custo/benefício de tal empreendimento. A execução resulta dessa primeira fase, mas antes de tudo é preciso saber que peça ou peças se pretende produzir e como produzi-las. Este princípio também é válido para projetos e empreendimentos de larga escala, com outros níveis de complexidade que integram o sentido e a razão de tal visão. 

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Na gestão de pequenas ou grandes instituições culturais e artísticas, onde se inclui o setor do artesanato e do design, é importante trabalhar sob um horizonte temporal amplo e, de preferência, que extravase o período de liderança de quem gere a instituição.

A experiência, particularmente em Cabo Verde, leva-me a crer que uma das razões que travam o desenvolvimento do setor cultural e artístico, em específico no artesanato, é o alto nível de amadorismo com que tem sido gerido. É, por isso, imprescindível garantir a competência e o profissionalismo neste domínio, pois de outro modo não parece viável beneficiar do pleno potencial criativo, cultural e económico que este setor possa oferecer. A visão estratégica, neste universo, passa essencialmente por uma mudança de paradigma que promova ações e tomada de decisões, públicas e privadas, na base do domínio das melhores ferramentas de gestão aqui refletidas. 

Plano de médio a longo prazo

O plano de médio a longo prazo comporta os projetos, as ações e a estratégia a serem implementadas de modo a alcançar os objetivos preconizados na visão. 

Não me debruçarei sobre o conceito de «curto prazo» porque este acontece no momento presente ou num futuro muito próximo. Interessa, pois, refletir sobre uma baliza temporal mais alargada. 

Referir, em primeiro lugar, que o plano não é uma ferramenta estanque ou intocável. Particularmente, quando comporta um longo período temporal, de 10 a 15 anos. Este deve ser uma ferramenta passível de melhorias, alterações e adaptações que, na maioria dos casos, resultam de fatores externos que facilitam ou limitam a sua materialização. Como agendas governamentais, no caso das instituições públicas, situações pandémicas, como é o caso desta que estamos a viver atualmente (que está a afetar, consideravelmente, o setor do artesanato e do design), surgimento de novas ferramentas tecnológicas de informação e de comunicação, entre outras variáveis sociológicas, culturais, políticas e económicas que podem condicionar ou fazer avançar, consideravelmente, a implementação de um projeto.

Todos estes fatores têm de ser tidos em linha de conta no exercício da gestão. Estar atento ao contexto local, nacional, regional e internacional e à mudança de paradigma no setor é essencial quando se lidera a implementação de um plano que visa traduzir a visão de uma instituição ou projeto. 

Este ponto compara-se, por exemplo, a uma embarcação à vela que planeia fazer uma travessia do Atlântico e que, não obstante ter o objetivo de sair de Cabo Verde e aportar no Brasil, por razões climatéricas, é forçada a ajustar a rota com vista a debelar uma tempestade — aproveitando para reabastecer e aguardar uma vaga de ventos favoráveis para seguir a jornada. 

Nesta linha de raciocínio, além de conduzir a implementação do plano e acompanhar as suas diferentes fases, parece fundamental, também, que o gestor seja um profissional com um olhar «drone», capaz de analisar a complexidade do seu setor — atendendo a um conjunto de elementos e circunstâncias internas e externas — com o intuito de desenvolver melhores estratégias e tomadas de decisões. Em síntese, ajustar a rota sempre que se justificar. 

De modo geral, a principal causa da fragilidade inerente ao setor cultural e artístico, com destaque no artesanato, é a sua considerável informalidade e falta de orientação. Investir em profissionais devidamente qualificados, a fim de introduzir melhorias na gestão do setor, poderá acarretar outros custos, mas certamente os benefícios daí resultantes justificam o investimento. 

Condições necessárias à implementação do plano/projeto

Tratando-se de uma reflexão sobre o verbo «Gerir» no contexto cultural e artístico, com particular foco no setor do artesanato e design, utilizarei o percurso que a instituição CNAD — Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — tem feito nestes últimos seis anos para fundamentar os aspetos que me parecem essenciais à implementação de um projeto e que, de certo modo, justificam a abordagem feita ao longo deste texto.  

Importa referir, a título de contextualização, que em 2015, o CNAD carecia da maioria das ferramentas de gestão indispensáveis ao bom funcionamento de uma instituição cultural e artística — designadamente equipa, visão estratégica, enquadramento jurídico (estatuto), orçamento, comunicação e imagem, liderança… Em contrapartida, dispunha de um património histórico e cultural e acervo particularmente ricos, um edifício centenário e um vasto setor — artesanato e design — por estruturar e orientar. Hoje, o CNAD é um Instituto Público que integra vários projetos estruturantes, considerado uma referência nacional e internacional na vanguarda da promoção da cultura como vetor de desenvolvimento social.

Retomando o ponto em discussão, quando se trata da implementação de um projeto, os recursos humanos têm um papel determinante. Uma equipa comprometida e que compreende os propósitos da instituição, naturalmente coloca o seu foco, capacidade e competência ao serviço desta. Ao analisar os fatores que têm sido essenciais na materialização dos objetivos preconizados pelo CNAD, que podemos considerar ambiciosos, a equipa ocupa um lugar cimeiro. Não se trata aqui de retórica, mas de realidade comprovada no terreno através dos projetos materializados — graças à entrega e ao esforço abnegado dos seus colaboradores — da base ao topo. O sucesso ou insucesso — no exercício da gestão e consequente implementação de um projeto — depende fundamentalmente do desempenho das pessoas. Justifica-se, assim, que se conceda especial atenção à gestão dos aspetos humanos — sentimento de pertença, reconhecimento de capacidade e valor, perspetiva de evolução — no contexto de um projeto. 

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Outro fator importante na implementação da visão estratégica do CNAD, que remonta a 2015, foi a implementação do seu estatuto legal de Instituto Público, dotando-lhe de personalidade jurídica de direito público e de inerente autonomia administrativa, financeira e patrimonial e, consequente, protagonismo necessário ao cumprimento da sua missão e atuação. 

O enquadramento legal é essencial, no sentido em que define as atribuições da instituição e norteia as suas ações. Não é por acaso que muitos agentes culturais se apoiam no estatuto de «Associação» para poderem desenvolver os seus projetos. Isto é uma prática bastante comum no setor do artesanato.

Outra das condições essenciais à materialização de um projeto ou sobrevivência de uma instituição — os recursos financeiros. Não obstante, o CNAD ser uma instituição pública, vale a pena notar que inicialmente não dispunha de dotação orçamental que lhe permitisse alavancar projetos verdadeiramente estruturantes. Sem condições financeiras, a materialização dos projetos fica comprometida. 

Acresce ainda o facto de que no setor cultural e artístico, a capacidade de mobilização de recursos financeiros por parte de quem gere constitui um verdadeiro desafio na medida em que, apesar de contribuir para a economia, o principal foco não são os benefícios económicos, facilmente contabilizáveis e apresentados como argumento adicional de negociação.  

Contudo, importa referir que a limitação financeira não deve constituir um entrave no desenho do futuro de uma instituição ou projeto. O sonho precede a obra, e a experiência leva a crer que se o projeto for estruturante e inovador, atrairá as condições financeiras indispensáveis à sua implementação. As condições financeiras, por sua vez, possibilitarão a tomada de decisões e assunção de compromissos de médio a longo prazo e, além disso, proporcionam maior previsibilidade ao gestor.

Neve InsularNeve Insular

A comunicação e imagem, sendo responsáveis pela divulgação e promoção da instituição, têm, também, um papel de particular relevância no domínio da gestão cultural e artística. A credibilidade do projeto depende muito da forma como a informação é cuidada e apresentada ao público. Para Michael Kaiser (2008), um passo importante para o sucesso do projeto, que depende em grande medida da sua comunicação e imagem, é fazer com que as pessoas conheçam e se apaixonem pela nossa organização, fiquem curiosas em relação à sua atividade, ouçam falar dos seus projetos, pensem, questionem e pesquisem sobre ela. Na gestão do CNAD, temo-nos guiado por estes princípios e podemos considerar que têm resultado, particularmente na divulgação e comunicação da URDI — Feira de Artesanato e Design de Cabo Verde, promovida anualmente pelo CNAD.

Por último, é de acrescentar uma breve referência ao papel do gestor cultural e artístico responsável por liderar a implementação de um projeto. A liderança deve ser sólida de modo a transmitir confiança à equipa, à classe e a outros decisores. A confiança, por sua vez, é conseguida através dos resultados alcançados. Por mais que se possa motivar uma equipa, se não houver resultados que justifiquem o esforço, facilmente ocorrem desmotivações e consequente perda de foco. Na condução do processo, a um gestor cultural e artístico é exigido um vasto leque de competências especializadas. Além de ser um profissional conhecedor do setor em que está inserido e um permanente estudante da cultura e das artes, deve ser um especialista em gestão de recursos financeiros e humanos, com particular atenção a este último.

Como conclusão geral, em relação à gestão aplicada ao setor do artesanato e do design, importa colocar a tónica no desenvolvimento deste setor com base na sua profissionalização. Como tivemos a oportunidade de verificar, este não difere das outras áreas como o teatro, a dança ou a música, o que difere é o conteúdo com que se trabalha. O alto nível de rigor e profissionalismo deve estar na base dos projetos que orientam este setor — que detém um vasto património histórico, cultural e artístico, matriz essencial para impulsionar a criatividade e a inovação através do saber-fazer, as técnicas e tecnologias artesanais, conhecimentos ancestrais e ferramentas de design. Outros aspetos fundamentais a realçar são priorizar a criação em detrimento da saúde financeira e gerir o setor na base do bom senso e da sensibilidade, treinados e aprimorados através de uma longa experiência prática. E, por fim, salientar a importância do estudo e conhecimento do setor a nível nacional e internacional e ter sempre em consideração que os principais recursos são as pessoas — que devem integrar e sentir o projeto como uma causa comum. 

 

Artigo originalmente publicado no livro PAOLIELLO, Carla, ALBINO, Cláudia (Eds.), Design e artesanato 22 verbos – 22 autores. (pp207-214). UA Editora. ISBN 978-972-789-817-6 e gentilmente cedido para este efeito. 

 

Referências

Davenport, T. H., Prusak L. (1998). Conhecimento empresarial: como as organizações gerenciam o seu capital intelectual. Tradução de Elsevier. Campus. 

Kaiser, M. M. (2008). The Art of the Turnaround: creating and maintaining healthy arts organizations. Brandeis University Press.

por Irlando Ferreira
A ler | 10 Março 2023 | artesanato, Cabo Verde, cultura, design, gestão cultural