“Eu falo português, você fala brasileiro”: uma língua com múltiplas variedades, falada por milhões, ainda motiva discriminação
Parecem mundos opostos. Língua nativa de 260 milhões de pessoas, ensinada em mais de 80 países e 400 universidades, é considerada uma língua global. Tem apenas duas variedades oficiais, o português do Brasil e o português de Portugal, embora existam muitas mais. Mas persiste a ideia de que o português de Portugal é que é o correto, levando a situações de discriminação dentro da própria escola.
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“O português é uma língua global, pertence a todos, sem hierarquias” – a docente da Universidade de Leeds e presidente da Associação de Professores e Investigadores de Língua Portuguesa no Reino Unido, Sofia Martinho, reage assim à ideia de superioridade linguística que diz que ainda persiste em Portugal. “Os meus alunos também são um bocadinho donos da língua.”
Os estudantes de Sofia Martinho são uma pequena amostra do interesse internacional pela aprendizagem de português. O Camões – Instituto da Cooperação e da Língua tem protocolos de cooperação com 395 universidades, em 81 países, o que se traduz em perto de 40 mil alunos, além das instituições de ensino superior que oferecem estudos de português de forma autónoma. Estes números reforçam a internacionalização daquela que se estima ser a língua nativa de 260 milhões de habitantes, com um peso esmagador do Brasil (212,6 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Oficialmente apenas são reconhecidas as variedades de português do Brasil e de português de Portugal. Em países como Angola, Moçambique, Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe existem variedades que ainda não foram formalmente codificadas, por exemplo com dicionários e gramáticas. No entanto, é a existência de todas estas variedades que leva à classificação do português como língua pluricêntrica — a palavra usada pela academia para as chamadas línguas globais.
“Eu falo português europeu, mas o meu trabalho traz a obrigação de conhecer as outras variedades e de incluir textos, canções, expressões culturais, receitas, de todos os países de língua portuguesa”, clarifica Sofia Martinho. Além disso, implicou aprender a gramática do português do Brasil. Apesar de dividir a docência com uma colega brasileira, ambas corrigem trabalhos nas duas normas. “Como se ensina uma língua pluricêntrica? Nenhuma variedade deve estar hierarquicamente acima. Infelizmente são só duas variedades, mas é melhor do que só uma”, remata Sofia Martinho.
POUCA FLEXIBILIDADE NAS ESCOLAS
“Há o reconhecimento do pluricentrismo, mas depois quando se chega às escolas há muito pouca flexibilidade, especialmente do IAVE [Instituto de Avaliação Educativa, responsável pela conceção dos exames]”, diz por sua vez Raquel Matias, investigadora de Sociologia da Linguagem do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) –Iscte. Isso mesmo foi respondido ao Expresso pelo Ministério da Educação, que reconhece a importância da “valorização das diferentes variedades do português”, mas reforça que são as competências de português, “variante europeia”, que estão em causa nos exames.
É na valorização das diferentes variedades que radica grande parte da discussão que está por fazer na sociedade e, com ainda mais pertinência, no ensino, sublinha Raquel Matias. A própria designação de “português europeu” lhe merece contestação. “Continua nessa ideia de superioridade da Europa face aos países do Sul Global. Não há nenhum outro país europeu que tenha português como língua oficial.”
Para a socióloga, persiste uma visão de superioridade baseada na ideia de Portugal como o detentor da língua pura. “É uma ideia colonialista que pensa no português como uma língua que sofreu uma contaminação nos outros territórios”, explica. “A raciolinguística fala sobre essa visão de superioridade. Primeiro, os habitantes dos países que foram explorados, colonizados ou escravizados não eram seres humanos iguais a nós; depois, eram falantes de não-língua; antes de passarem para a situação de falarem uma língua que é inferior em termos de complexidade.” A mesma opinião defende o linguista Marco Neves, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa: “A ideia de que o português é mais simples no Brasil não faz sentido nenhum linguisticamente.”
Mas serão motivos desta natureza que levam a atitudes de exclusão. Dylan Cardoso, 16 anos, começa por recordar uma boa experiência com a professora de Português, antes do regresso ao Brasil. Foi uma exceção. Quando lhe perguntamos se alguma vez se sentiu discriminado, a sua expressão fecha-se: “Sim, muitas vezes. Sempre sofri preconceito por falar diferente. Professores de várias disciplinas diziam que a forma como eu falava não era a correta.” A experiência mais pesada viveu-a durante três longos anos com a professora de Matemática. “A forma como retratava a minha forma de escrever e de falar… rebaixava-me por isso.”
“FALAR PORTUGUÊS DE FORMA ERRADA”
Renata Rodrigues Carone e colegas, do CIES-Iscte, mostram como a experiência de Dylan Cardoso não é um caso isolado. Um estudo intitulado precisamente “Eu falo português, você fala brasileiro”, enumera diversas situações que indiciam como “o uso da variedade brasileira ativa estereótipos negativos nos professores”, muitos dos quais pensam no português do Brasil como “falar português de forma errada”.
Marco Neves é perentório: “Não se pode dizer que está incorreto, porque não está. O professor deve ter o cuidado de explicar que o português tem duas normas e as duas são valiosas, independentemente de estar a ensinar a norma portuguesa.” Grande divulgador das relações entre as línguas, contesta qualquer ideia de facilitismo nesta atitude: “A escola tem o papel de explicar que a diversidade de línguas e variedades da mesma língua são uma riqueza da humanidade.”
No entanto, este pensamento ainda desperta muita resistência mesmo dentro da universidade. “Tenho uma grande luta com colegas que querem obrigar os alunos brasileiros a usar a norma portuguesa”, diz Marco Neves. “Aceitam a norma dos EUA e do Reino Unido em inglês, por que razão não hão de aceitar as duas normas do português? Não faz sentido que sejam mais papistas que o Papa”, critica. “É um absurdo estarmos a obrigar uma pessoa adulta a mudar de norma, só porque não nos apetece ler a norma dela.”
Para Marco Neves, parte desta atitude nasce do receio da influência do português do Brasil na forma de falar portuguesa. “As línguas estão sempre em mudança e a sofrer alterações. Essa importação e exportação das línguas acontece continuamente. E se é para ter medo, então é do inglês”, diz, com humor. “A interferência do inglês é muito mais marcada e muito mais visível”, contesta. “Será que os brasileiros nos trazem algumas expressões? Claro que trazem. E nós levámos a língua para o Brasil.”
Enquanto muitas resistências ainda estão por ultrapassar, há movimentos em sinal contrário. Em maio, a Associação de Professores de Português promoveu uma formação dedicada à presença do português do Brasil em sala de aula. O assunto mais abordado foi a necessidade de se conhecer a norma culta brasileira, segundo explicou o formador Fernando Pestana, gramático brasileiro. “Não se deve corrigir em todas as situações de fala, mas na escrita, sim, o aluno deve aprender a norma culta. E é aí que surge a necessidade de conhecer também a norma culta brasileira para o professor poder filtrar quando deve ou não corrigir.”
10 de Junho, o Dia de Camões, está também consagrado como o Dia da Língua Portuguesa, mas o português como língua de Camões é um mito, estabeleceu inequivocamente o linguista português Fernando Venâncio, falecido em 30 de maio. O linguista fez uma investigação exaustiva dos vocábulos usados em “Os Lusíadas” e concluiu que o poeta inovou pouco na língua portuguesa, tendo, na verdade, transportado para a escrita portuguesa o que de mais expressivo já circulava em castelhano, a língua da classe culta portuguesa na época. “Esta visão monolítica, fechada, associada a uma identidade nacional, contribui para esta falta de discussão interna sobre a riqueza das variedades do português”, conclui Raquel Matias.
Artigo publicado originalmenten no jornal Expresso, 10 de junho de 2025.