Era assim, à distância…
Quando, em Janeiro, recebi o convite da Marta Lança para participar no Seminário Internacional “Como se constrói um país: diálogos interdisciplinares”, organizado pela BUALA no âmbito das celebrações dos 50 anos de Independência de Angola, a primeira coisa que me ocorreu foi uma frase do António Ferreira Neto, meu co-réu em 1970/71, quando voltei a encontrá-lo em Luanda, na Angola já independente: “Diana, nós pensávamos que era difícil conseguir a independência, mas difícil mesmo é construir um país!”
Ele passara já pela experiência de ser Ministro da Saúde, eu ficara em Portugal, onde testemunhara as convulsões de construção da democracia, mas só de longe acompanhara o que se passava nessa Angola por cuja independência lutara.
Recordei escutas de gravações de discursos de dirigentes dos movimentos de libertação, que a PIDE apreendera ao prender-nos, conversas noites fora sobre o país que sonhávamos – e que tinha consciência de conhecer muito mal. E as conversas com “mais velhos”, de gerações anteriores à minha, que recordavam a importância das conferências na Casa de Estudantes do Império e no Centro de Estudos Africanos, e do que nelas aprendiam sobre esse seu país que queriam libertar e construir.
Vindo para Portugal em 1948, Mário Pinto de Andrade referia a importância do encontro com outros angolanos e oriundos das outras então colónias e dos polos de congregação que os reuniam: “O primeiro era a Casa dos Estudantes do Império. Aqueles que no nosso grupo eram estudantes, frequentavam-na pelas facilidades de ordem social, recreativa, que permitia. Mas como africanos, nós organizámo-nos para lá da Casa dos Estudantes do Império.” Depois de terem falhado a direção da Casa da África Portuguesa, que em 44 sucedera ao Grémio dos Africamos de 1929, procuraram outras vias de se afirmar como grupo, criando, com Francisco José Tenreiro, um Centro de Estudos Africanos.
Nas palavras do Mário, era ”um grupo cultural que se materializava, essencialmente, por uma série de palestras realizadas na casa da Família Espírito Santo, no 37 da rua Actor Vale, de que Alda Espírito Santo era, naturalmente, uma das hóspedes. Cada um dos participantes tomava um tema a desenvolver, podia ser Linguística, Geografia, História, e apresentava aos restantes, e havia uma espécie de seminário em torno desse tema. Isso foi, digamos, uma primeira forma de consciencialização cultural, com dimensão política. Porque a contribuição de cada um não se limitava a uma exposição de tipo académico, mas congregava outros elementos de tomada de consciência contra o assimilacionismo, e, evidentemente, de defesa do colonizado.” Na sequência dos acontecimentos em São Tomé, nomeadamente o massacre de Batepá, os elementos da família Espírito Santo foram presos e os trabalhos do Centro ficaram suspensos, mas prosseguiu um projecto de publicações: “Tínhamos um plano de publicações de ordem literária, e saiu uma publicação em 1954, o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Foi a primeira antologia, magra antologia, de 16 páginas, mas era o que nos era possível fazer nesse tempo, com um prefácio, uma introdução da minha autoria, e uma nota final de Francisco José Tenreiro, e que publica alguns poemas pela primeira vez. O poema Monangambé, de António Jacinto, publicado pela primeira vez nessa antologia, os poemas de Agostinho Neto, de Noémia de Sousa, de Alda Espírito Santo, do próprio Francisco José Tenreiro, do Viriato da Cruz. Era a primeira afirmação literária da negritude em língua portuguesa, e na sequência, até, do massacre de São Tomé. Era também, digamos, uma afirmação de revolta, tinha um conteúdo de revolta contra o massacre de que tinha sido vítima a população de São Tomé.”
Nessa fase, muitos dos estudantes angolanos militavam no MUD Juvenil. Entre os antifascistas portugueses, lembra Mário, “não estava de maneira nenhuma clara a ideia da independência das colónias portuguesas”, a ideia era “de que era necessário concentrar os esforços na luta antifascista, e que o fim do fascismo era, naturalmente, a porta da independência das colónias.” Opinião diferente tinham os africanos, salientou Mário: “Se alguns continuaram a ser membros do MUD Juvenil, e mesmo em direções de organizações portuguesas, como é o caso do Agostinho Neto, era para defender justamente esse posicionamento de que a independência das colónias devia ser obra dos colonizados, era necessário que os colonizados se organizassem autonomamente para poderem lutar pela sua própria independência.”
A importância da Casa de Estudantes do Império é salientada também por angolanos mais jovens, como Costa Andrade, chegado a Portugal em1956: “Eu era filho de um português liberal, mas português na aceção, direi, portuguesa, do liberal. O meu pai não estava, nesses anos, de acordo com a independência de Angola como veio a estar mais tarde. No entanto, era bastante, declaradamente, antissalazarista e isso, nesses anos, na região de onde provenho, do Huambo, era bastante marcante, significativo. Queria dizer que ser-se antifascista, antissalazarista não era necessariamente ser anticolonialista, eu apercebi-me disso uns anos depois. E é já em Lisboa, em 1957, 58, na Casa de Estudantes do Império (CEI), que a consciência desse facto se torna mais clara para mim. (…) Creio que entre aqueles angolanos provenientes do planalto central, do Huambo, do Lubango, etc., havia essa situação a que me referi agora, aqueles que eram filhos de liberais ou antissalazaristas portugueses, tinham uma ideia da oposição, mas não eram, efetivamente, anticolonialistas.”
Também Paulo Jorge sublinhou a importância da CEI: “A maior parte dos estudantes que depois se engajaram nos movimentos de libertação passaram pela CEI, e foi aí que, praticamente a partir de 1957, comecei a ser despertado para o nacionalismo angolano, para uma participação. E comecei essa militância no seio do MPLA a partir de 1957. Há uma pessoa que esteve na base desta mobilização de vários de vários angolanos que inclusivamente depois se tornaram dirigentes deste país, o Dr. Arménio Ferreira. Como médico e como angolano, ia dar consultas aos sócios da CEI, e através dessas consultas (…) ia orientando “os miúdos”, como nos chamava, ia desenvolvendo, chamando a atenção da necessidade, do que era o MPLA, o momento de participarmos, enfim… E com outros colegas na altura, Carlos Ervedosa, Fernando Costa Andrade, Rui de Carvalho e vários outros, começámos a despertar, a abrir os olhos, para a situação colonial. Alguns de nós foram facilmente mobilizados pela realidade que puderam viver em Angola, ver as injustiças que se cometiam em relação ao povo angolano, o problema do trabalho forçado, a exploração da força de trabalho.”
Também já frequentador da CEI, Bento Ribeiro verificou, numa deslocação de férias a Angola, a crescente tensão ali vivida:
“Na minha estadia em Luanda, juntamente com alguns camaradas, nós tivemos a possibilidade de entrar em contacto com a situação, digamos, pré-insurrecional, os meses que precederam o 4 de fevereiro de 61. No nosso espírito estava claro que só havia uma alternativa, a luta armada e a luta clandestina, ou, então, sair de Portugal para fugir à repressão. Portanto, quando regressei, foi isso que transmiti aos meus colegas e camaradas. E encontrámos uma situação na Casa de Estudantes do Império que também era extremamente repressiva: a nossa direção tinha sido suspensa, havia uma comissão administrativa. Todo esse processo tinha-se agudizado durante o verão, na minha ausência. Normalmente era assim, porque isso apanhava grande parte dos estudantes dispersos e a reação era mais diluída em relação às autoridades. E isto reforçou ainda mais, digamos, a nossa determinação de passar absolutamente ao rigor da clandestinidade em termos de organização. E também ficou bem claro no nosso espírito que era impossível continuar em Portugal, como estudante ou não, naqueles termos, portanto, nos meses que precederam a luta de libertação e face à repressão do regímen de Salazar. Foi assim que nasceu, propriamente, a ideia e a determinação da nossa fuga .(…) Portanto, a partir dos princípios de 61, nós procurámos organizar-nos para sair de Portugal. As instruções que na altura recebemos dos nossos dirigentes no exterior iam no sentido de contactarmos embaixadas de países africanos (…) para nos ser facilitada a emissão de documentos de viagem para podermos abandonar Portugal, porque os limites da concessão dos documentos oficiais, dos passaportes portugueses, já tinham sido alcançados. Tínhamos sido interpelados várias vezes pela polícia, pela PIDE, a PIDE fez várias investidas junto da Casa de Estudantes do Império, chamou-nos várias vezes para interrogatórios, porque tinha sido despertada pelo facto de haver tanta gente a pedir passaportes, e principalmente estudantes no meio do ano escolar.”
A solução acabou por chegar, lembrou Cabulo, através de estudantes protestantes:
“Através deles, contactámos com o Conselho Ecuménico das Igrejas, e o Conselho Ecuménico das Igrejas contactou com uma organização chamada CIMADE (Comité Inter-Mouvements Auprès des Évacués), uma organização que era presidida por um pastor francês, o Sr. Marc Boegner, que era uma pessoa muito influente junto dos movimentos progressistas, tinha já tomado uma posição clara contra a guerra da Argélia e era uma pessoa muito respeitada junto dos intelectuais e dos movimentos para a paz. O secretário-geral da CIMADE, Jacques Beaumont, era mais jovem, e foi ele que veio a Portugal contactar connosco. Encontrou-se connosco em Lisboa, e nós pusemos-lhe, claramente, a situação: tínhamos a possibilidade de sair através dos contrabandistas galegos, mas não tínhamos possibilidade de sair de Espanha. Ele voltou pouco tempo depois, disse que tinha contactado a sua organização – que, além do Conselho Ecuménico das Igrejas, trabalhava com a Federação Protestante de França – e os jovens países independentes de expressão francesa poderiam emitir documentos de viagem que nos permitissem passar da Espanha para França e exilar-nos em França. E foi isso que, mais ou menos, foi feito.”
Foi assim que, em Junho de 1961, um grupo de mais de 6 dezenas de estudantes africanos, predominantemente angolanos, abandona Portugal, chega a França e, a partir daí, se vai juntar aos Movimentos de Libertação criados pela geração de Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos.
Ficha prisional de Diana Andringa.
A viver em Portugal desde 1958, com 11 anos, só vim a conhecer a CEI ao entrar para a Faculdade, em 64. A PIDE fechou-a no ano seguinte. E foi só quando, em 1969, jornalista na Vida Mundial, tentei escrever um artigo para marcar os 8 anos de início da luta armada, que vim a encontrar antigos frequentadores da CEI, defensores da independência de Angola e quase todos simpatizantes do MPLA. Rapidamente comecei a colaborar nas pequenas e possíveis acções de solidariedade com o movimento, fosse através da difusão de informação para o estrangeiro da repressão vivida em Angola, nomeadamente sobre os presos mantidos no Tarrafal ou outros campos de concentração, envio de correspondência para responsáveis do Movimento no Exterior, envio para Angola de documentação e literatura política relevante, material de propaganda – máquinas de escrever, stenceis, tinta – medicamentos, etc. Convém dizer que se alguns do nosso grupo tinham contactos directos com militantes organizados no Comité Revolucionário de Luanda, que estava em ligação com a Primeira Região Militar do MPLA, e muitos dos quais foram presos e enviados, por simples medida administrativa, para o Campo de Concentração do Tarrafal. Só vim a conhecer esse meus camaradas anos depois da independência, embora, aquando das suas/nossas prisões, a PIDE em Angola tenha interrogado alguns deles sobre mim e a de Lisboa me tenha interrogado sobre acções levadas a cabo por esse grupo, que eu desconhecia completamente.
No julgamento, apesar da tensão e das interrupções, muitas vezes claramente racistas, dos juízes, aproveitámos para explicar a razão pela qual defendíamos a independência de Angola e como as nossas vivências na colónia nos tinham conduzido a essa posição, aliás coincidente não apenas com a das Nações Unidas, mas até com as defendidas por Encíclicas papais.
As acusações que me eram feitas, e que eram, a meu ver, ridículas – vou, aliás, lê-las – mereceram-me a pena de 20 meses de prisão, que me pareceu francamente desproporcionada, mas honrosa.
Afinal, aqui, de longe, fizera apenas o pouco que me fôra possível fazer – mas me fez seguir, com grande emoção, a substituição da bandeira portuguesa pela angolana, a 11 de Novembro de 1975. Nela flutuavam, apesar de tudo, os meus sonhos da Angola independente e a memória dos meus 20 meses de prisão.
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Intervenção no contexto do Seminário “Como se Constrói um País: Diálogos Interdisciplinares”, 22 a 25 maio, organização BUALA.