Do dever de memória ao direito de não ser um perpetrador - "Memórias em Tempo de Amnésia" de Álvaro de Vasconcelos

«“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje” – o presente o passado e o futuro são realidades entremeadas. (…) Nós estamos vivendo, nesse momento, passado/presente/futuro. É o passado que nos faz presentes.» 

Discurso de tomada de posse do Prof. Sílvio Almeida, como Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, no dia 03 de janeiro de 2023.

 

Memórias em Tempo de Amnésia nasce da necessidade de sanar, ou pelo menos mitigar, a contradição visível entre a consciência de que o passado não passa desdobrando-se num interminável presente e a de que ele é apagado das memórias e recriado ao sabor dos interesses do poder do dia, das classes privilegiadas, ou simplesmente do grupo que recorda. Os modos como recordamos e o que recordamos são regidos por imperativos sociais e políticos e a luz que fazemos incidir sobre determinado acontecimento remete sempre para a obscuridade muitos outros, que o circundam. O modo como as nações se recordam é também, ou sobretudo, uma estratégia para sobreviver ao desgosto sobre si próprias. 

O último livro de Álvaro de Vasconcelos (nascido no Porto, 1944) é um livro sobre o passado com os olhos postos no futuro.  Numa das primeiras páginas de Memórias em Tempo de Amnésia, podemos ler: 

cada geração vive a sua época como se fosse um novo início da história da humanidade e por isso pouco aprende com os erros do passado, pelos quais não se sente responsável. Por isso vinga a amnésia com que tantas vezes se enfrentam os desafios do presente, tanto mais que o horror do fascismo, das guerras mundiais ou do colonialismo parecem tão impensáveis que se tornaram pouco credíveis. Quando o impensável acontece, a nossa razão recusa aceitar que podemos estar a regressar a uma idade de barbárie. (pág. 33).

 

O autor oferece-nos um testemunho e uma reflexão sobre o fascismo em Portugal e sobre o colonialismo português, pelo dever de memória, a mesma responsabilidade que Primo Levi assumiu ao escrever sobre o holocausto.  Porém, ao contrário do autor judeu, que foi juntamente com os seus familiares vítima dos campos de concentração nazi, Álvaro de Vasconcelos não foi vítima do colonialismo; como confessa, foi seu beneficiário.  Além disso, a sua condição de homem, nascido num meio privilegiado permitiu-lhe, mesmo durante o fascismo, o acesso a uma liberdade com a qual a maior parte dos portugueses - e sobretudo portuguesas - não podia sequer sonhar. No entanto, Álvaro de Vasconcelos não lamenta “paraísos perdidos” nem no Douro da sua infância, nem na Beira da sua adolescência, nem na Joanesburgo da sua juventude. O autor não escamoteia a forma como as suas condições de classe, de raça e de género o colocaram sempre em vantagem face aos outros 90% da população, contudo escreve este livro para falar das injustiças em que o seu privilégio é sustentado. Memórias em Tempo de Amnésia dá testemunho da forma como Álvaro Vasconcelos sentiu a injustiça, viveu a sensação de impotência que o assolou na infância e adolescência e de como se aliou às esquerdas revolucionárias na juventude, procurando relacionar os acontecimentos da sua vida com a História do século XX, à escala global. 

A conversa de pendor lusotropicalista sobre a benevolência do colonialismo português, sobre a educação que era dada aos povos africanos e sobre a agradável convivência entre todas as raças nas colónias portuguesas não resiste às 161 páginas de Memórias em Tempo de Amnésia, onde, como se de um filme se tratasse, Álvaro de Vasconcelos começa por descrever o país pobre, iletrado e parado no tempo em que nasceu - com os seus vícios e abusos patriarcais - para depois viajar no seu vasto império colonial chegando a Moçambique, onde se praticava o trabalho forçado e uma violência racista cotidiana e onde a vida era muito semelhante à do apartheid de África do Sul, pela impossibilidade de atravessar a linha de cor. Depois, o autor descreve a sua experiência em Joanesburgo, para onde foi estudar, porque não queria participar na guerra colonial. Finalmente brinda-nos com uma visita virtual à cidade da Beira, feita em 2020.

No momento presente, o desalinho entre quem é Vasconcelos por herança familiar e cultural e o olhar que escolhe ter levanta a questão da legitimidade política desta obra. Podemos pensar que o autor devia abster-se de tomar a palavra. Podemos até exigir das pessoas como Álvaro Vasconcelos que abdiquem do seu protagonismo no espaço público no que se refere à discussão sobre memória, racismo, sexismo e violência colonial, cedendo lugar a vozes tradicionalmente silenciadas (i.e., pessoas racializadas e mulheres).

É indiscutível que urge diversificar as vozes audíveis na esfera pública portuguesa, contudo, parece-me que o gesto de Álvaro de Vasconcelos é também imprescindível à luta por um futuro melhor. Socorro-me do pensamento de Ariella Aïsha Azoulay, uma mulher judia que escreve numa condição muito diferente daquela em que escreveu o já referido Primo Levi. A autora classifica o atual estado de Israel como um estado colonial branco.

Diz-nos Azoulay que os crimes que justificam o boicote a Israel não são apenas crimes contra os palestinos, mas, usando a expressão de Hannah Arendt, crimes contra a humanidade. Acabar com os crimes contra a humanidade não deve ser apenas do interesse dos palestinos, mas também – e em primeiro lugar - dos judeus israelitas e da comunidade judaica em todo o mundo. Mais importante ainda, diz-nos a autora, que este deve ser o interesse de todos os que foram implicados nesses crimes, porque todos aqueles que colaborando com os regimes políticos ordenantes dos crimes, se recusarem a reconhecê-los e espalharem informações falsas sobre os ditos são privados de seu direito inalienável de não serem perpetradores. 

No caso de Alvaro de Vasconcelos, este direito inalienável de não ser um perpetrador (que é também uma herança) é o direito de lembrar como lembra, de se distanciar de uma grande parte da sua geração – sobretudo dos que viveram em África – de contribuir para aquilo que ele considera ser a reposição da verdade e de combater, com as forças que tem, o racismo e o recrudescimento do populismo e do fascismo.

Dito isto, é preciso dizer também que Memórias em Tempo de Amnésia não faz do seu autor um líder antirracista, não cicatriza nenhuma ferida colonial e não salda qualquer divida histórica. Trata-se apenas (e já não é pouco) de um testemunho sobre o passado recente de Portugal que contribui para uma memória coletiva mais plural, e quem sabe, possa concorrer também para uma discussão que urge fazer sobre os legados coloniais presentes na sociedade portuguesa de hoje. Os problemas não estão resolvidos, longe disso, e as consciências lusas não podem ser limpas com tanta facilidade, mas é importante que todas as pessoas percebam que se avizinham tempos difíceis, que as batalhas do passado são presentes e que estamos sempre a fazer História. Escolham o vosso lado. Álvaro de Vasconcelos já escolheu. Considero-o meu aliado.  

Azoulay, Ariella Aïsha (2021) “Querida Marianne”, em Ana Rebelo Correia; Margarida Calafate Ribeiro (coord.) Europa Oxalá, Ensaios (37-50). Lisboa: Edições Afrontamento.

Azoulay, Ariella (2015) ““We,” Palestinians and Jewish Israelis: The Right Not to Be a Perpetrator,” South Atlantic Quarterly, 114 (3): 687–693

Levi, Primo. (2010). O Dever de Memória. Lisboa: Cotovia

por Ana Cristina Pereira (AKA Kitty Furtado)
A ler | 10 Janeiro 2023 | Beira, colonialismo, memória, Memórias em Tempo de Amnésia, moçambique