Porquê agora? A partir de um texto de Abdaljawar Omar
Durante a tarde do dia 31 de maio de 2025, Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios palestinianos Ocupados, expressava, nas redes sociais, um desconforto provavelmente partilhado pela enorme maioria das pessoas palestinianas, mas, também, por todas aquelas que se mobilizam desde outubro de 2023 –a grande maioria desde muito antes dessa data– em solidariedade com o povo palestiniano e com a sua luta de libertação nacional. As sua palavras foram:
Agora que os ventos estão a mudar e que todas as pessoas começam a opor-se à moagem de carne humana a ter lugar em Gaza:
Netanyahu não comete o genocídio sozinho. O problema não será resolvido transformando-o em bode expiatório e ignorando tudo o resto.
1. Fim ao genocídio;
2. Fim à ocupação/anexação;
3. Fim ao apartheid.
O texto refere-se, em primeiro lugar, à torrente de declarações feitas, durante o mês de maio deste ano, por vários líderes políticos cúmplices, facilitadores ou participantes no genocídio em curso –de países da UE, do Reino Unido e do Canadá–, mas também, acredito, à ténue mudança de abordagem que está a ter lugar na cobertura de alguns meios de comunicação social, aos artigos de opinião e aos discursos de comentadores em vários jornais e estações de rádio e televisão e, por fim, às cartas abertas e manifestos assinados por figuras públicas de várias áreas –desde a academia, à política, ao mundo das artes– muitas delas em silêncio há mais de 19 meses (muito mais, a Nakba começou há mais de 77 anos e nunca li ou ouvi, de muitas delas, qualquer palavra sobre a limpeza étnica levada a cabo pelo movimento sionista e pela sua máquina de triturar carne humana, a que chamam estado de Israel) ou, pior, com posicionamentos públicos que contribuíram para a legitimação do genocídio em curso na Palestina.
Em condenações tímidas, muitas delas absolutamente vazias dizem, precisamente agora, –poderia, para enquadrar, colocar aqui os números das pessoas palestinianas assassinadas, mutiladas, desaparecidas, sequestradas, torturadas, humilhadas, desalojadas, forçosamente deslocadas, submetidas à fome, à sede e à doença pelo projeto genocida de Israel, mas não o vou fazer porque eles nunca conseguirão traduzir o nível de violência abjeta a que todas as pessoas palestinianas são expostas diariamente– que não serão cúmplices e que se trata, agora sim, de um genocídio.
Mas vamos por partes.
Esta reflexão parte da leitura de um texto –traduzido no final desta primeira divagação– de Abdaljawad Omar, académico palestiniano cuja maior parte do trabalho se foca, de forma abrangente, na política de resistência palestiniana. Para o autor, herdeiro de uma longa tradição intelectual-militante onde se cruzam nomes como Ghassan Kanafani ou Walid Daqqah, o pensamento é lugar, tempo, método e prática como parte de um mesmo movimento que permite interpretar o mundo, mas, sobretudo, transformá-lo. E, dificilmente, poderia ser de outra forma, já que a uma pessoa palestiniana que escreve a partir de um território colonizado não é dado o privilégio de esconder a sua pele por detrás de uma máscara de neutralidade e de um miserável e ignorante jargão que permite meditar sobre uma “filosofia sem política” ou que descreve a história do lugar como “labiríntica” ou “demasiado complexa”. Essa dissimulação pode ser tentada, mas isso não lhe garante o direito à vida e, muito menos, à dignidade.
À parte: por esta altura já estamos todas familiarizadas com a necessidade de citar este ou aquele autor israelita (da chamada “nova escola” ou “escola pós-sionista”, seja lá o que isso for, se estivermos realmente empenhados) para que toda a gente tenha bem a certeza de que determinado autor palestiniano não mente, porque, esse sim, ou confirma a mitologia produzida pelo colonizador contribuindo para a sua própria eliminação ou é, certamente, um trapaceiro –ou, com terminologia mais científica, demasiado subjetivo ou parcial.
Numa altura em que alguns ditos “progressistas” (termo problemático, vago e higienizado para quem vê outros como uma espécie de doença que nem com a companhia da palavra “democrático” se pode curar) apresentam, como resposta ao processo de fascização em curso, a defesa do modelo neoliberal existente, o Omar pensa, a contrapelo, duas faces de uma mesma moeda chamada humanitarismo, ou indústria humanitária. Ao descrever a arquitetura humanitária vigente em Gaza, cujo principal novo ator é a obscura Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma mistura entre capital israelita e estadunidense sob o comando de mercenários provavelmente a soldo de algum dos governos desses dois países, o autor não se esquece dos ensinamentos de Kwame Nkrumah e recusa ignorar a realidade de imperialismo “neocolonial” do pós-Segunda Guerra Mundial onde se tornaram evidentes os vínculos entre ajuda humanitária, logística militar, vigilância e dominação.
No contexto palestiniano, essa realidade era (e continua a ser) colonial –sem direito a um prefixo que indica a arquitetura de dominação e extração de recursos e mais-valia nas ex-colónias depois destas se terem tornado estados independentes– e, assim sendo, a presença de agências humanitárias, mais do que servir de fachada à referida extração ou do que ajudar a pacificar ou a reduzir o impacte humano em regiões onde ela acontece, serve como testemunho e registo do roubo de terras e de vidas, mas também como sua possibilitadora indireta a partir de uma posição de neutralidade que, no fundo, ajuda a administrar a perda e a reduzir o impacte humano, ao mesmo tempo que o sustenta no tempo. Ora, com a GHF, como nos diz o Omar, a forma muda, deixando não apenas a nu essas contradições, mas resolvendo-as, ao cancelar/eliminar o registo e o testemunho e usando a ajuda humanitária não como atenuadora do desespero e da desagregação social, mas como isco para a limpeza étnica e para o genocídio. A fachada ruiu.
Lanço então duas perguntas: qual a relação entre todos estes parágrafos? e porquê agora a condenação de Israel e o reconhecimento de que o que está a acontecer é um genocídio?
Para além da reconhecida competência e coragem que tem caracterizado o mandato de Francesca Albanese como Relatora Especial da ONU, a importância do seu trabalho também está relacionada com a forma como ela consegue –a partir de dentro das instituições e das condicionantes a isso inerentes, mas também impostas pelo imaginário e pela linguagem do direito (mesmo quando falamos de direitos humanos)– expandir e denunciar o entendimento sobre este genocídio e a sua relação com um projeto e uma história de colonização violenta, ocupação e apartheid que se arrasta há mais de 77 anos. Nesse sentido, tanto a sua declaração pública, quanto as transformações em curso no terreno, que o Omar apresenta no seu texto, podem ajudar a compreender a segunda pergunta: porquê agora?
Começo por dizer que não ignoro nem um pouco o contexto presente, onde é clara a deterioração da condição humana e dos elementos mais básicos para a sustentação da vida em Gaza, imposta pelo apertar do cerco israelita, pela expansão diária da chacina indiscriminada de seres humanos, mas onde também são claras as intenções declaradas de expulsar toda a sua população e de anexar parte ou todo o território da Faixa, assim como vários territórios na Cisjordânia. Contudo, e como aponta Albanese, nada disto começou em outubro de 2023, muito menos em maio de 2025 e Netanyahu não é uma exceção, mas um produto e o atual chefe-administrador do projeto colonial de povoamento pensado no século XIX em Basileia e da sua estrutura, posta em prática desde o início da Nakba (na realidade antes disso, com o apoio imperialista da administração britânica), há mais de 77 anos, na Palestina. Netanyahu também não está a cometer este genocídio sozinho, ele conta com a ajuda direta de vários governos em todo o mundo, principalmente no Ocidente –com proteção diplomática, manutenção ou expansão de relações económicas e, principalmente, com a coordenação militar e o envio de armamento–, com a conivência de vários setores interna e externamente, particularmente dos media, e foi apoiado por uma sólida maioria no parlamento israelita –o extermínio dos palestinianos em Gaza raramente ou nunca foi questionado pela oposição ao governo Netanyahu que é sionista– e por uma maioria social que, apesar de poder questionar a estratégia –muito fruto da presença de reféns e de prisioneiros de guerra israelitas em Gaza– não questiona os objetivos.
O genocídio em curso na Palestina está a ser denunciado desde o dia 15 de outubro de 2023 por centenas de juristas, investigadores e profissionais em várias áreas do direito, despoletou a acusação movida pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça (dezembro de 2023) e foi analisado e exposto em diferentes documentos, desde o relatório Genocídio como apagamento colonial elaborado por Francesca Albanese (outubro de 2024), aos relatórios de organizações internacionais como a Federação Internacional para os Direitos Humanos (dezembro de 2023), os Médicos Sem Fronteiras, a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional (todas em dezembro de 2024). Contudo, como nos explica Patrick Wolfe e como disse o palestiniano Fayez Sayigh antes dele, em qualquer contexto colonial de povoamento (como o da Palestina) o genocídio opera como processo e estrutura e não como evento, uma vez que o objetivo central do colonizador é a eliminação física e simbólica da população indígena. Toda a estrutura colonial é então pensada e desenvolvida com esse propósito, de modo a possibilitar a ocupação da maior quantidade de território com a menor quantidade de pessoas indígenas, facilitando uma reivindicação de originalidade exclusiva e a exploração desimpedida dos recursos, vertidos somente para a sociedade colonial estabelecida sobre o território ocupado.
O genocídio é um componente essencial da estrutura de despossessão da Nakba palestiniana, que não se fecha em 1948 com a expulsão de mais de 750.000 pessoas palestinianas do seu território, com a destruição de mais de 500 povoações palestinianas e com o estabelecimento de Israel como estado, mas que continua até hoje como bloqueio absoluto e extermínio da população palestiniana em Gaza, como roubo, sequestro e tortura de pessoas palestinianas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, como limite à liberdade política das pessoas palestinianas nos territórios ocupados em 1948 e tantas outras formas de opressão em curso.
É neste ponto que o texto do Omar me parece fundamental, porque ele fala do desmoronamento, agora absoluto, de uma fachada que permitiu –mesmo que de forma ténue, mesmo sendo necessários níveis alarmantes de desonestidade para se fazer de conta que não se vê–, até há pouco tempo, fabricar uma legitimidade do projeto colonial que na realidade nunca existiu, até tendo em conta que este desrespeita despudoradamente o direito internacional, o direito internacional humanitário e várias resoluções da ONU desde 1948. Mesmo que algumas pessoas ainda continuem, de forma perversa, a apresentar Israel como a “única democracia no Médio Oriente”, a entidade colonial deixou, definitivamente –e posso facilmente afirmar que o fez de várias formas, principalmente desde o dia 7 de outubro de 2023– de se preocupar com qualquer performance “democrática”. Como refere o Omar, agora Israel “desafia o mundo a responder e prospera não na legitimidade, mas na impunidade.”
Parecem estar agora reunidas as condições para avançar com três hipóteses para responder à pergunta: porquê agora?
1) O desabar desta fachada que permitiu a Israel, desde o seu estabelecimento, reciclar mentiras sobre o seu caráter democrático ou sobre o cumprimento do direito internacional e do direito internacional humanitário, mais concretamente, as mutações no status quo colonial que permitiu a Israel avançar de forma mais lenta, mas segura, para a ocupação de mais territórios palestinianos e para a destruição da sociedade palestiniana com absoluta impunidade deixaram muita gente insegura, assim como a dificuldade em continuar a reciclar discursos sobre uma “solução de dois estados”. Esse status quo dava uma certa tranquilidade a muita gente, já que permitia varrer para baixo do tapete o que agora é demasiado explicito, agora que um genocídio é assumido pelos próprios líderes políticos israelitas.
Neste contexto, as condenações que, na melhor das hipóteses, descrevem o que está a acontecer na Palestina como genocídio, estão somente preocupadas com essa transformação que não lhes permite mais declararem o seu amor à “única democracia no Médio Oriente”, fazerem de conta que não sabem de nada, ou afirmarem que é tudo “demasiado complexo”. No fundo, pretendem salvar Israel do seu atual governo –apoiado, repito, por uma ampla maioria social– que é o mesmo que dizer que pretendem salvar Israel de si mesmo para que não se torne num estado pária, recusando-se a ver o projeto sionista como aquilo que é, um projeto colonial de ocupação e apartheid, recusando-se a admitir que a violência atual é o resultado desse projeto e dessa estrutura e contribuindo para o esquecimento de todos os crimes cometidos por Israel desde o início da Nakba. O seu ponto de partida é semelhante àquele de quem vê na defesa de uma razão neoliberal uma forma de combate ao fascismo, recusando-se a aceitar que essa mesma razão produz a atomização, o desespero e a devastação social que o produzem. É esta a posição sem posição, de quem crê que existe “fora da história e para lá da história” e se coloca em cima de um muro a analisar o mundo a partir desse lugar inexistente chamado neutralidade.
2) Uma segunda hipótese está relacionada com um olhar complacente sobre as lutas de libertação nacional e sobre os processos de descolonização, vistos como algo arcaico e anacrónico ou usados como parte de um extrativismo crítico que os trata quer como metáfora, quer como património. Ou seja, quando é ultrapassado o limite de uma descolonização ontológica, epistemológica ou simbólica, quando ela sai das instituições e é praticada como resposta a um presente de violência quotidiana e normalizada, como transformação da realidade, como retorno à terra roubada e deixa de estar encerrada dentro de um museu, de um livro ou de uma fotografia congelada no tempo e pronta para ser admirada, a descolonização passa a ser incómoda para o conforto que algumas de nós ocupamos. Esse conforto apenas regressa quando a resistência anticolonial está fragilizada, na defensiva, desestruturada e quando as imagens que passam a ocupar os ecrãs das nossas televisões e smartphones são aquelas com crianças famintas, doentes e subnutridas, quanto menos agência puder ser vislumbrada melhor, para assim as poder “ajudar” do alto do muro da neutralidade e da humanidade iluminada e bem-intencionada, como “fardo do homem branco”, que dispensa sempre uma caridadezinha para os pobrezinhos.
3) A última hipótese é aquela mais óbvia e assenta na cobardia e hipocrisia de para quem tudo ocorre no plano da transação. Isso torna-se particularmente claro quando nos apercebemos que a grande mudança na narrativa pública se deu depois da declaração conjunta de Emmanuel Macron (Presidente de França), Keir Starmer (Primeiro-Ministro do Reino Unido) e Mark Carney (Primeiro-Ministro do Canadá). Ou seja, num momento em que o risco de condenar publicamente Israel diminuiu e passou a ser potencialmente visto como uma vantagem em determinados círculos liberais, a funcionar como uma mercadoria cujo valor de troca é manter um determinado status, adquirir maior grau de legitimidade perante determinados públicos, dizer que se esteve do “lado certo da história”, como um investimento financeiro cujas contrapartidas podem ser colhidas no futuro. Contudo, a condenação também tem um impacte no passado, contribuindo para ocultar qualquer declaração de sentido oposto, quando ainda pensavam que Israel poderia assassinar aquilo que consideram ser uma quantidade aceitável de pessoas palestinianas –como as várias centenas assassinadas todos os anos, antes de outubro de 2023. Resumidamente, o objetivo foi não perder valor para a concorrência no mercado que se disputa.
É, assim, tarde para quem esteve em silêncio ou contribuiu para a legitimação do genocídio em curso dizer que não será cúmplice. Nunca é, contudo, tarde para que se junte a esta luta pelo isolamento internacional do estado colonial. Quantas mais pessoas disserem “presente!” mais capacidade teremos para ser bem-sucedidas. Mas que não se mobilize com o intuito de limpar o rastro de miséria e cumplicidade que deixou para trás (nem espere que a ajudemos a fazê-lo), ou a partir de uma culpa individual que não contribui para nada, ela é um sentimento vazio e autocentrado que apenas alimenta ou destrói egos. Também não permite, nunca permitiu, que algo fosse coletivamente construído, muito menos um movimento assente em princípios de solidariedade e apoio mútuo, onde se pratica, em comum, o mundo que se quer construir, em comum.
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Seja bem-vindo quem vier por bem. Juntem-se de corpo inteiro, não de forma circunstancial, informem-se e informem, saiam às ruas, pressionem os vossos governos para que cortem relações com Israel e lhe imponham sanções, boicotem e obriguem cada empresa que faz negócios com a entidade colonial e que lucra com o seu projeto de opressão a fazer o mesmo, organizem e mobilizem-se, pelo fim do genocídio em curso, sim! Mas também pelo fim do que está na sua raiz, de toda a estrutura colonial de ocupação e apartheid imposta por Israel a todas as pessoas palestinianas na Palestina e também àquelas que compõem a sua imensa shatat, impedidas de retornar a casa.
pele neutra máscaras palestinanas, produção da maravilhosa Catarina Soares Barbosa, 2025.
(trabalho da Catarina Soares Barbosa)
— Tradução de texto —
Israel está a usar a chamada Fundação Humanitária de Gaza para concentrar as pessoas palestinianas em enclaves cada vez mais estreitos, forçando a sua deslocação pela via da necessidade. Estamos a assistir ao surgimento de um novo humanitarismo em que os locais de ajuda funcionam também como zonas de extermínio.
Não estamos a assistir a uma rutura em relação ao modo como as coisas costumavam ser.
O que se passa hoje em Gaza, onde a ajuda alimentar cai do céu e os “corredores humanitários” funcionam como zonas de matança, não é o colapso do humanitarismo, mas a sua consumação lógica nas condições da necropolítica colonial.
É tentador ler estas situações –o paraquedas que falhou, os sacos de farinha ensopados de sangue– como anomalias trágicas. Elas não o são.
São antes a gramática de um sistema que há muito une a preocupação humanitária à logística militar, o socorro à vigilância e a ajuda à dominação.
Mas algo mudou –não no conteúdo, mas na forma.
Durante décadas, Israel manteve uma aliança desconfortável, mas instrumental, com a arquitetura do humanitarismo. No longo período entre os anos que se seguiram à Nakba e o cerco e destruição de Gaza, esta aliança operou como um duplo gesto: garantindo a legitimidade internacional através da prática da contenção, enquanto coreografava a violência dentro do idioma da “segurança” e da “autodefesa”. A Cruz Vermelha, a UNRWA e um coro de ONGs serviram de testemunhas e facilitadores, simultaneamente limitando e legitimando a maquinaria da ocupação.
Nesta guerra, o humanitarismo já não é simplesmente absorvido e transformado numa arma. Está a ser ignorado, descartado e canibalizado.
A Fundação Humanitária de Gaza (GHF), o novo modelo de Israel para a entrega de ajuda humanitária, assinala esta mudança com uma clareza brutal: a ajuda já não é mediada pelo direito internacional ou pela ótica da neutralidade, mas flui através de empresas privadas estadunidenses sob comando militar.
O novo plano de ajuda está a ser utilizado por Israel como parte da sua guerra demográfica em Gaza: ao orquestrar fluxos de ajuda humanitária em zonas selecionadas, sobretudo no Sul, Israel está a trabalhar para condensar a população em enclaves cada vez mais estreitos e governáveis. Esta concentração forçada não é uma consequência da guerra –é o seu objetivo estratégico.
Por outras palavras, a ajuda é uma ferramenta de transferência suave, empurrando as pessoas palestinianas para regiões que podem ser mais facilmente monitorizadas, controladas e, eventualmente, separadas de qualquer reivindicação sobre a terra. A fome e o desespero não são efeitos secundários, mas efeitos intencionais, forçando a deslocação por necessidade.
A infraestrutura humanitária existente –da UNRWA e do Programa Alimentar Mundial– simplesmente não permite a Israel fazê-lo. Tentou isso mesmo durante 19 meses de genocídio e não o conseguiu. É por isso que o afastamento das organizações internacionais de ajuda humanitária assinala uma mudança no sentido da gestão unilateral da Faixa sob um novo aparelho de controlo militar-humanitário. Ao marginalizar estes organismos, Israel abre espaço para uma infraestrutura mais complacente: empresas privadas, programas de ajuda militarizados e colaboradores palestinianos produzidos internamente, que podem gerir as populações locais sem desafiar o regime mais amplo de ocupação e apagamento.
Estes locais de distribuição de ajuda, sob a capa de socorro, são também espaços coreografados de aprisionamento, onde a arquitetura do caos, do desespero e da humilhação é meticulosamente encenada. As pessoas esperam durante horas sob o sol escaldante, debaixo de drones e armas, sob o olhar de um exército de ocupação que controla o que entra, quem vive e quem morre. A multidão aumenta, as vedações caem, disparam tiros e as pessoas palestinianas são mortas.
A pessoa palestiniana só se torna visível na fome e como motim. Nestes momentos, a dignidade não é apenas adiada, mas é sistematicamente roubada, substituída pela performance da desordem que justifica mais assassínios e mais controlo. O local de ajuda humanitária tornou-se palco da encenação onde Israel pode atrair os famintos para zonas de matança e usar um pedaço de pão como pretexto para um disparo.
O novo humanitarismo
Isto inaugura um novo paradigma em que o humanitarismo já não é mediado pelo direito internacional ou pelo consenso multilateral, mas é agora militarizado, privatizado e securitizado. É o capitalismo de catástrofe levado ao extremo, corroendo as instituições humanitárias liberais em favor de empresas neoliberais militarizadas.
Chegou a hora de o fazer porque Israel está cansado de performance. Já não são necessários os rituais de contenção, com as contagens de corpos cuidadosamente medidas, a linguagem proporcional de resolução de conflitos e as arquiteturas erguidas no pós-Segunda Guerra Mundial. No seu lugar, encontramos uma nova modalidade de poder que transgride abertamente, desafia o mundo a responder e prospera não na legitimidade, mas na impunidade.
O que aconteceu em Tal al-Sultan, a 27 de maio, ofereceu ao mundo mais um vislumbre desta lógica emergente. No lançamento do primeiro centro de distribuição de ajuda humanitária da GHF, milhares de pessoas palestinianas amontoaram-se motivadas pela fome extrema. Quando as vedações se romperam sob o peso da multidão, as forças israelitas responderam com o que chamaram de “tiros de advertência”. Ao final do dia, três pessoas palestinianas estavam mortas, 48 ficaram feridas e outras sete estavam desaparecidas. Isto não foi uma falha da logística humanitária; foi o cumprimento dos seus objetivos. O local de ajuda humanitária torna-se palco da encenação onde Israel pode atrair as pessoas famintas para zonas de matança e usar um pedaço de pão como pretexto para um disparo.
Esta não é apenas uma nova guerra em Gaza. É uma guerra contra a própria categoria do “humano” aplicada às pessoas palestinianas e, eventualmente, uma reformulação que terá impacte no mundo inteiro. Onde um dia o discurso humanitário funcionou como enquadramento através do qual a violência podia ser tornada legível, disciplinada pelo jargão jurídico e temperada por comunicados de imprensa, o humanitarismo está a ser descartado como uma condição limitativa.
Esta reconfiguração implica também uma guerra contra a memória. As organizações internacionais, por mais limitadas que sejam, funcionam muitas vezes como responsáveis pelos registos da fome, dos ataques, das deslocações e das mortes. Com a sua expulsão, vem o apagamento de testemunhos e o silenciamento da documentação. A ausência de observadores institucionais permite a Israel prosseguir a sua campanha de aniquilação sem os fardos da imagem, do número ou do nome. Isto porque a presença da ONU e de outras organizações humanitárias, mesmo que parcialmente cúmplices, implicava que o mundo ainda estava a observar e que a ajuda ainda estava a ser distribuída de uma forma que não conduzia à limpeza étnica.
Desigualdade da fome
Para além de atingir os seus objetivos demográficos, Israel está também a utilizar a GHF como parte da sua política, que poderia ser efetivamente chamada de “desigualdade da fome”: a ajuda fornecida pela GHF é calamitosamente insuficiente para satisfazer as vastas e urgentes necessidades da população sitiada de Gaza; com a ONU a estimar que são necessários um mínimo de 500 camiões de ajuda por dia para sustentar as necessidades de vida básicas, menos de 100 têm permissão para entrar. A redução deliberada da ajuda humanitária para um nível tão abaixo do limiar mínimo de sobrevivência não é apenas uma crueldade arbitrária; destina-se a criar as condições para o colapso social.
Já foi salientado que se trata do uso da escassez fabricada como moeda de troca para extrair concessões políticas da resistência palestiniana. Mas é também necessário realçar que a privação é um instrumento de desintegração social: ao distribuir alimentos suficientes apenas para ativar o desespero, mas nunca suficientes para sustentar a dignidade, o sistema fabrica o colapso moral. O tecido social fragmenta-se, resultando na lenta erosão da solidariedade –o campo de batalha final de qualquer luta coletiva.
Uma coisa é ter fome, o que pelo menos significa igualdade na fome. Outra coisa bem diferente é injetar apenas recursos suficientes para criar uma luta interna que resulte na canibalização das relações sociais, algo com um impacto mais forte do que qualquer massacre.
O crime da ajuda humanitária
Pode dizer-se que há duas formas de crime em ação nos corredores da fome em Gaza. A primeira é higienizada, institucional e inteiramente racional, aquilo a que poderíamos chamar de crime da logística perpetrada pelo colonizador. A fome deliberada é conseguida através do controlo das fronteiras, usando a ajuda como espetáculo, o fecho das entradas e, em seguida, o lançamento aéreo do socorro em caixas cuidadosamente embaladas. Isto não é apenas uma falha ética, mas um sucesso destas políticas. É o crime do controlo biométrico, da capa humanitária que oculta as botas cardadas, possibilitada tanto pelo governo de Netanyahu como pela gente da Trump Inc., essa curiosa síntese do capitalismo mafioso e da violência estatal a levar a cabo massacres em nome da ordem.
Mas não é tudo. Os colaboradores internos organizados, os micro senhores da guerra que “taxam” a ajuda e a desviam antes que esta chegue aos famintos, formam um aparelho local de distribuição baseado no roubo como política. Este é o suplemento interiorizado da ocupação –o executor colonizado recrutado no meio da guerra para servir uma maior desintegração social.
Neste cenário, o crime está em toda a parte: no próprio massacre e na própria arquitetura da ajuda humanitária que cria a sua necessidade. Israel não é o único criminoso; toda a configuração é criminosa, incluindo as agências de ajuda, a papelada, o silêncio, o drone a sobrevoar e o colaborador em terra.
O outro “crime” desenrola-se quando a multidão avança, rompendo a vedação e procurando o que sempre foi seu –pão, azeite, arroz, o direito à vida. Isto não é pilhagem, mas a retoma de sustento roubado. É o planeamento daqueles que não têm um plano, a logística de uma comunidade em erupção através das fraturas do desespero planeado. É a recusa em morrer na fila debaixo dos drones, com a dignidade adiada.
As pessoas não são uma turba, mas uma inundação –uma força viva que rompe a zona de contenção da fome, libertando alimentos da sua prisão marcada com logótipos. Aquilo que Israel enquadra como caos é, realmente, um ato de clareza coletiva.
Este segundo crime –o da sobrevivência– é incompreensível ao olhar humanitário e liberal. Continua ilegível para as instituições condicionadas apenas a distinguir os necessitados e obedientes dos desviantes perigosos. Mas este ato coletivo de tomar não é um pedido de ajuda, mas uma rutura da própria lógica que tornou a ajuda necessária. Após 600 dias de massacres e destruição, as vedações caíram, os sacos foram passados de mãos e o tempo colonial gaguejou.
Foi também isso que aconteceu na semana passada, as pessoas palestinianas em Gaza invadiram o cenário de dominação rigorosamente planeado, interrompendo a ilusão de controlo total de Israel –mesmo tendo este externalizado a sua soberania a empresas privadas estadunidenses. A cena em si foi destruída duas vezes: primeiro, quando a maioria das pessoas palestinianas em Gaza não apareceu, recusando a coreografia e, depois, quando a multidão invadiu a vedação.
Este é, pois, o momento que nos resta: um momento em que Israel já não se preocupa em esconder as suas ações por detrás de fachadas humanitárias, mas despreza abertamente a própria linguagem que outrora mascarava a sua violência. E o mundo está a ser desafiado –a intervir, sim, mas mais precisamente, a confrontar o facto de que as suas intervenções e discursos sempre fizeram parte do problema, sempre vazios e desprovidos de substância.
Poderíamos perguntar aos liberais o que resta deste idioma, não apenas em Gaza, mas nos futuros que se avizinham?
E no meio de tudo isto, o que permanece central é que, apesar de tudo, as pessoas palestinianas ainda encontram uma forma –seja através de um planeamento deliberado ou de uma rutura espontânea– de inundar a infraestrutura de aniquilação.
Abdaljawad Omar, 30 de maio de 2025