A última lição de Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço | 2014 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo) Eduardo Lourenço | 2014 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)

Nos dias que se seguiram ao falecimento de Eduardo Lourenço, emergiu com nitidez, apesar do considerável esforço comemorativo, a impossibilidade de abarcar uma obra que parece escapar por todos os lados. A questão de saber o que esta obra é e, em particular, de como definir o estatuto ex-cêntrico de um estudioso como Eduardo Lourenço, ficou evidente em muitos momentos: definições marcadas por uma profunda insuficiência afloraram nos atos públicos e nos meios de comunicação.

Como era previsível, as comemorações, na quase totalidade - com algumas exceções relevantes, e, entre estas, incluiria a homilia de José Tolentino de Mendonça -, cumpriram a sua função formal, mas iludiram as questões fundamentais que podem formular-se em torno do intelectual mais famoso que deixava de ser - sem ênfase hagiográfica - o maior intelectual vivo de Portugal.
A assimetria entre fama e conhecimento foi, seguramente, o traço mais saliente do esforço de homenagem. Um enigma que Lourenço nunca fez nada para deslindar - aliás aquilo que poderia ser definido como mais uma impropriedade, o seu “ecletismo”, colocou sempre em jogo a estabilidade de qualquer definição possível. E acrescente-se que, como observa Alessandro Portelli, as definições, mais do que definir um objeto, remetem, sobretudo, para o horizonte de quem define.

A verdade é que o problema existe há muito. Eduardo Lourenço foi, sozinho, uma grande família intelectual: filósofo, professor, crítico literário, pensador, mitólogo, crítico de artes, de cinema, ensaísta, precursor da crítica pós-colonial e dos estudos culturais, escritor, homem de letras, só para fornecer uma lista funcional e sempre incompleta. Foi um triunfo não de disciplinas, mas de “indisciplina”, num mundo sempre mais virado para o elogio (preguiçoso) da “especialização”.

Ao mesmo tempo, há temas que surgem na obra como um todo e o perseguem como obsessões ao longo da vida inteira: veja-se o primeiro ensaio - onde é visível o diálogo do jovem assistente com Joaquim de Carvalho - que inaugura o primeiro livro publicado, Heterodoxia (1949), “Europa, ou o diálogo que nos falta”. A primeira frase desta tomada de palavra juvenil funciona como um manifesto ou um programa para os 70 anos seguintes de trabalho crítico: “O mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro séculos uma existência crepuscular”.

Eduardo Lourenço não fez esforços para se consagrar à posteridade, não fez absolutamente nada para alimentar a fama que tinha, mas lhe era estranha. O seu ofício era ler, ver, pensar e escrever. Ações que desempenhou sempre, de modo incansável, com ou sem público, de forma indissociável. Lourenço não tinha uma forte vinculação institucional, não disputava um campo particular (a Universidade, o meio intelectual, a cultura de um País e de um continente, o organigrama de um partido). Tal condição tornou-o um homem extremamente livre. Disso decorre a sua força crítica e a sua irredutibilidade a esquemas ou convenções. Os livros também, de certo modo, “aconteciam”, não nasciam de um plano longamente premeditado: a sua respiração (sobre isso já muito foi dito e escrito) é a do ensaio, do fragmento, da tentativa de encontrar uma forma mais estável ao correr do pensamento e das palavras.

A pilha de obras (publicadas e inéditas) está diante de nós a demonstrar a persistência do esforço de ler, de compreender o mundo, sem um projeto prévio de transformação ou conservação. Uma noite, em Bolonha, andando pela rua, perante uma montra, num momento em que se celebrava na Universidade o seu saber sem fronteiras, confessou, com uma inocência impressionante, “se tiver de sintetizar o que eu tenho andado a fazer, posso dizer só que sou uma pessoa curiosa”. 

O funeral de Eduardo Lourenço, o dia de luto nacional, as manifestações que não podiam faltar por ocasião da perda de um intelectual celebrado, brilharam, no entanto, por uma caraterística curiosa e própria: dividiram-se, maioritariamente, entre os elogios acríticos e as críticas sem elogio. Os primeiros recorreram à retórica de ocasião com as inevitáveis referências à obra monumento que é O labirinto da saudade, a qual, felizmente, possui um título tão brilhante que não se deixa esquecer (o conteúdo exige um esforço maior, por isso dispensa-se).

As críticas sem elogio, que traíram um ressentimento longamente adiado (os 97 anos do Professor foram uma idade venerável) concentraram-se sobretudo no “exsultet” de que finalmente poderia discutir-se a obra de Eduardo Lourenço. Pena que, em muitas intervenções, o que emergia fosse, essencialmente, um desconhecimento embaraçoso do que efetivamente o Professor escreveu e uma crítica concentrada sobretudo numa “mitologia” biográfica de Eduardo Lourenço. O que mostra como certas epistemologias revelam muito mais o horizonte do epistemólogo do que do seu presumido objeto.

No entanto, ambas as posições revelam um imenso desconhecimento direto e não mediado da obra de Eduardo Lourenço. É uma obra, de facto, labiríntica (e o adjetivo não é figurado) fragmentária, complexa, que exige uma atitude de estudo não extemporânea ou impressionista como as muitas exibidas por ocasião desta imensa perda. Quero pensar que esta é a última lição que Eduardo Lourenço nos deixa. A crítica feroz de um Portugal superficial, inocente, sem nenhuma consciência de culpa, portador de muitos impensados, como vazios que, no entanto, surgem camuflados em formas de saber, conformista e radical, sofisticado e simplório. No longo exercício de análise amorosa e passional que Eduardo Lourenço dedicou ao seu país, uma lúcida anamnese põe a nu as contradições, as leis não escritas, os tiques que traem a permanência de valores normativos, hierárquicos, autoritários, que havia antes e depois das fraturas contemporâneas da história e que, apesar de tudo, continuam. Totalmente inocentes.

Na sua despedida da vida, Eduardo Lourenço conseguiu reunir todos os que se reconheceram num desconhecimento substancial do seu legado intelectual real e não imaginado. Agora o que fala é - prosopopeia imensa e filologicamente exigente - a obra que nos deixa. Basta lê-la antes de discuti-la, e não vice-versa. É um processo que, felizmente, ainda antes da morte do autor e da nuvem que surgiu em seu torno, já se iniciou e merece ser aprofundado. O pensamento de Eduardo Lourenço - complexo, fragmentário, luminoso também nos seus pontos menos desenvolvidos ou mais opacos - está à nossa disposição. Lê-lo e conhecê-lo é o melhor antídoto contra os simulacros das interpretações distorcidas e parciais. Uma última lição, não só filológica, que fica. 

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Roberto Vecchi
A ler | 16 Janeiro 2021 | Eduardo Lourenço, homenagem, intelectual, Memoirs, percursor da crítica pós-colonial