Cenas da memória colonial: a decadência e as ruínas de Macau

The Bedroom in English | 2015 | Tatiana Macedo (cortesia da artista)The Bedroom in English | 2015 | Tatiana Macedo (cortesia da artista)

A decadência não é só uma forma própria de uma certa vertente da modernidade. É também um modo de lançar um olhar retrospetivo em relação a um passado carregado e condicionador: as inapagáveis tintas da decadência, a que Frantz Fanon se refere no contexto colonial da guerra da Argélia. A decadência assume assim a forma de uma relação tensa entre presente e passado. E pode também ser inscrita dentro de uma dinâmica de transmissão do passado, onde a memória vivencial que se pretende transmitir sofre uma alteração, uma reformulação profunda, degrada-se e, de algum modo, perde força de representação: a identidade impossível com um passado escoado e próximo da extinção.

Uma cena dominada por uma decadência profunda é Macau assumida como pano de fundo de um filme, belo e complexo, Hotel Império 1 de um diretor particularmente sensível aos temas da memória problemática do colonialismo português, Ivo M. Ferreira, realizador de Cartas da guerra, de 2016. O filme, coproduzido por Portugal e pela China, encena um conflito agudo entre temporalidades, culturas, espaços e línguas onde a idealização de uma interculturalidade chino-portuguesa, devida ao profundo convívio das duas culturas, esboroa-se de vez. Mas o filme expõe, sobretudo, um conflito surdo entre gerações que coexistem em planos autónomos e irredutíveis.
O que está em jogo é o destino – seria impróprio falar de futuro – de um hotel decrépito de propriedade de um português idoso e doente, cujos clientes são, na verdade, moradores marginalizados da cidade. A protagonista é a filha do dono, Maria, que não poupa esforços para tentar salvar os restos da estrutura, o resíduo controverso e familiar do passado, inclusive pondo-se ela própria à venda. O hotel situa-se na parte chinesa da cidade e recorta um microcosmo social que se configura através de uma atenta direção de luzes e sombras, com uma predominância noturna, pelas conotações de um mundo popular revelado por detalhes e seriamente ameaçado de ser engolido pela especulação imobiliária.
O que é interessante a partir do nome próprio do hotel – Império – é evidenciar a alegoria que se insinua entre a ideia do passado colonial de Portugal (que na Ásia chegou a construir um império, precoce e efémero) e o presente representado pelas ruínas de um edifício imperial improvável, próximo de ruir. O jogo de pormenores alegóricos disseminados pelas imagens é significativo: o quarto do pai, Gustavo, tem o retrato de Camões, uma viola portuguesa largada num canto, Maria canta o fado no célebre casino flutuante. São essas as evidências – talvez estereotipadas, mas pulsantes – da emersão de uma alegoria histórica do hotel/Portugal ambos afundados num presente problemático não só no plano material mas, sobretudo, no plano das ideias: uma ideia anacrónica. E as alegorias, como defende Walter Benjamin no volume sobre os Trauerspiels, representam no discurso, no reino do pensamento, o que as ruínas são no plano material.
A decadência afeta ao mesmo tempo o mundo dos objetos mas atinge também um universo de ideias e narrativas sobre o passado. O detonador do enredo e da sobrecarga decadente que carateriza o filme é um recuo simbólico para o passado proporcionado por uma figura enigmática e misturada: Chu, chinês e português, obcecado por Maria e pelo hotel. Na verdade, trata-se de um regresso, e o tempo em que ocorre o retorno é, por sua vez, simbólico: ocorre exatamente 20 anos depois do tempo do fim da soberania oficial portuguesa no território chinês de Macau.
Chu, que reúne traços ao mesmo tempo de alteridade e familiaridade, de próprio e impróprio, sendo na verdade o meio-irmão de Maria, regressa para reivindicar a sua metade do Império. Numa cena central que levou à imprópria classificação do filme como “thriller erótico” – a humilhação pela exposição e a oferta do corpo da irmã – emerge um traço constitutivo da obra que se traduz no uso pelo autor de citações literárias ou culturais. No presente caso trata-se de uma referência a uma situação de certo modo associável, representada no romance Campo de sangue de Dulce Maria Cardoso. Também as ressonâncias mitológicas – a evocação do mito clássico, dos irmãos iguais e diferentes, como os Dióscuros Castor e Pólux, gémeos mas concebidos por pais diferentes – acrescentam espessura à trama intertextual e tragicidade. Um certo ar trágico aliás, perpassa toda a estrutura do filme.
O que no entanto é importante salientar é como o filme Hotel Império define uma obturação problemática e irredutível da transmissão da memória intergeracional no contexto da decadência. No filme, a metáfora convencional da herança é dissecada para mostrar o seu lado substancialmente encoberto e subjetivo, o que corresponde à atitude diferenciada de quem como herdeiro é chamado a receber o património (neste caso negativo) que vem do passado. A mesma herança – a do Hotel Império – produz de facto duas reações opostas e contraditórias: por um lado, implica a decisão de continuar na linha do legado familiar (o caso de Maria); por outro lado, exibe a vontade de destruir a mesma linha hereditária com uma brutal damnatio memoriae, que implica uma vingança pelo avesso, da nova geração (Chu) em relação à mais velha.
No âmago da contradição, ambas constituem, no polimorfismo semântico da memória projetada de uma geração para outra, uma efetivação diferencial das memórias recebidas da geração anterior. Trata-se de um conflito, próprio de um tempo de decadência, que não só não se resolve como fica exposto e é exibido até depois do desenlace (pessimista), sobre o futuro controverso e incerto dos restos da memória familiar.
O que resta do Hotel Império, além de uma alegoria asiática com referência a Portugal? Não só um aglomerado de ruínas de um edifício que evoca a memória de um esplendor antigo e agora desbotado, que sobrevive só residualmente, mais como imagem estética do que como um fato documentável e reconhecido. Sobrevivem fantasmas assombrados de uma casa nunca inteiramente própria, mais imaginada do que real, que em Macau, hoje, disputa o seu futuro precário num debate iníquo de uma modernização sem alma e esmagadora. As condições ideais, em suma, para abrir o espaço definitivo a uma nostalgia pungente e inexorável que se torna assim o que está unicamente destinado a restar.

 

memoirs.ces.uc.pt  Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação.

  • 1. O filme é de 2018, com distribuição nas salas em Portugal em Maio de 2019.

por Roberto Vecchi
Afroscreen | 6 Julho 2019 | cinema, Hotel Império, Ivo M. Ferreira, Macau