A Imigração no Cruzamento dos Discursos

Na altura em que este livro vê a luz do dia, em meados de 2012, já não podemos repetir, como se fosse novidade, o adágio, tantas vezes repisado, de que Portugal, antigo país de emigrantes, se tornou também, nos tempos mais recentes, espaço de receção de imigrantes. Claro que aquilo que aqui entendemos como “tempos mais recentes” não pode deixar de depender do horizonte temporal que estamos a considerar. Mas se tomarmos como medida a história política recente, percebemos que já antes do 25 de Abril o território de Portugal era procurado por trabalhadores que vinham de outros espaços geográficos, nomeadamente das então colónias africanas, mesmo se esses movimentos não eram percebidos como parte de um fenómeno de larga escala, a “imigração”.

Essa perceção foi sendo gradualmente construída ao longo das três últimas décadas, quando esses imigrantes se foram tornando visíveis no tecido urbano dos grandes aglomerados populacionais (especialmente na zona da grande Lisboa), e à medida que se foram constituindo como objeto de discursos com larga circulação social: o discurso mediático, o discurso científico e o discurso do Estado. Estes discursos estão, de resto, profundamente interligados entre si: o discurso mediático reflete, muitas vezes acriticamente, o discurso das autoridades políticas (quando adota a sua terminologia e, muitas vezes, o seu ponto de vista) e a agenda da investigação científica sobre a imigração e os imigrantes está, por sua vez, intimamente ligada, em Portugal, aos esquemas de financiamento promovidos pelo Estado.

Mas a relação entre estas instâncias está longe de constituir uma via de sentido único com o Estado a comandar os restantes discursos: é uma relação complexa, em que a retórica oficial sobre a imigração se deixa, por sua vez, marcar pela agenda mediática e penetrar por problemas e conceitos surgidos no âmbito das ciências sociais. Basta atentarmos no facto de que termos como “multiculturalidade”, “diálogo intercultural”, “minorias étnicas”, “integração”, ou “gestão da diversidade” entraram no léxico político e mediático.

Tarrafal, filme de Pedro CostaTarrafal, filme de Pedro Costa

Esta produção discursiva terá atingido o seu auge na década de 2000, pelo menos até ao momento em que a atual crise do capitalismo se tornou mais percetível. Aliás, poucos objetos das chamadas ciências sociais terão marcado de forma tão visível as agendas de investigação como a imigração para, e os imigrantes em, Portugal.

Papel determinante neste “boom” (comparável com o crescimento da historiografia colonial e imperial a partir de finais da década de 90, também função de programas de financiamento estatais, nomeadamente aqueles que estiveram mais diretamente ligados ao calendário de comemorações) teve o organismo governamental responsável pela gestão da chamada “integração” dos imigrantes (a expressão “integração”, com a sua carga normativa de paterna- lismo de Estado, será objeto de considerações mais alargadas neste livro, nomeadamente no artigo de Nuno Oliveira), o AltoComissário para a Imigração e Minorias Étnicas, entretanto reconvertido em Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, uma vez que não deixava de constituir um paradoxo legal e institucional um organismo governamental ostentar no seu nome uma categoria, a de “minorias étnicas”, que não tem qualquer lugar no quadro legal português – uma prova de como o discurso institucional se deixa penetrar por categorias que lhe são extrínsecas1. A criação do Observatório da Imigração2, com a publicação de teses e monografias dedicadas à imigração e a temas que lhe são comummente associados, como o racismo e, sobretudo, a encomenda de uma série de trabalhos a investigadores vindos, na sua maior parte, dos meios académicos, que resultou na coleção Estudos3, representou um momento importante na política de promoção da investigação.

Ao mesmo tempo, os principais centros de investigação nas universidades desenvolviam projetos de investigação à volta da temática das migrações, algumas vezes financiados pela união Europeia, outras pelo Estado português, tendo a literatura sobre a imigração em Portugal rapidamente atingido um volume significativo4. Alguns dos livros e artigos que saíram desta tendência são sem dúvida importantes contributos para o conhecimento da realidade da imigração para Portugal, e do modo como os imigrantes vivem no território Português, de como as próprias estruturas sociais e institucionais se transformaram com a imigração. Lidos de forma crítica (ou seja, à luz das suas consequências políticas), estes estudos são muitas vezes um excelente documento acerca do modo como a alteridade se constrói na relação diferencial (por exemplo na construção de uma diferença entre o “estrangeiro”, ou o “imigrante” e o “autóctone”), e de como a própria ciência social contribui para a consolidação de categorias através das quais o Estado produz e faz a gestão de grupos e de identidades. E também permitem, no seu aspeto mais puramente descritivo, antecipar alguns desenvolvimentos económicos e sociais, nomeadamente no campo laboral, que depressa se estenderam ao todo social.

Juventude em Marcha, filme de Pedro CostaJuventude em Marcha, filme de Pedro Costa

Propósito do Livro

O livro que se segue não é um balanço crítico dessa vasta bibliografia, muito menos uma tentativa de sistematização dos seus aspetos mais importantes. Trata-se tão somente de uma revisitação, em modo crítico, de alguns dos principais temas que fizeram a agenda política, mediática e social-científica da imigração em Portugal nos últimos anos. Crítica no sentido que são os próprios limites das categorias usadas para fazer sentido dos fenómenos assim identificados que são expostos, procurando, desse modo, desnaturalizar conceitos que, pela repetição com que foram empregues, acabaram por se apresentar como transparentes, como reflexos da realidade que são supostos espelhar, quando, muitas vezes, são eles que comandam uma certa intervenção na realidade.

Um exemplo disto é o conceito de “integração”, um importante princípio orientador das políticas estatais dirigidas aos estrangeiros. Ora a integração parte do princípio de que as sociedades nacionais têm sistemas centrais de valores, aos quais os imigrantes terão de se adaptar. Na sua versão musculada, essa adaptação é responsabilidade unilateral do estrangeiro, na sua versão mais benevolente é um processo dialógico do qual a sociedade de acolhimento retira alguma coisa. Mas a falácia, aqui, é a postulação de um tal sistema central nacional de valores, que esconde as divisões dentro da própria sociedade de acolhimento, e o facto de que os trabalhadores imigrantes estarão, provavelmente, politicamente mais próximos dos trabalhadores nacionais, do que estes últimos estão dos capitalistas, sejam estes de que país forem.

Essa proximidade está bem patente no modo como as formas de precarização do vínculo laboral que faziam parte da experiência de trabalho do estrangeiro se estão a generalizar ao conjunto dos trabalhadores, mostrando assim a falsa oposição entre “trabalhadores nacionais” e “trabalhadores imigrantes”. Não deixa de ser curioso que o trabalho seja tomado como axial no processo da dita “integração” ou, o que é dizer o mesmo, que a presença do estrangeiro em território nacional esteja indissociavelmente ligada à exigência de trabalho. Que tal aconteça quando uma parcela cada vez maior da produção de valor no capitalismo exige um cada vez menor volume de mão de obra5, à medida que o consenso austeritário exige mais daqueles que têm um emprego e continua a ligar, indissociavelmente, o rendimento ao trabalho, que tal aconteça, dizíamos, só mostra como o discurso moralista acerca do trabalho é a sombra que acompanha a produção de miséria6.

Juventude em Marcha, filme de Pedro CostaJuventude em Marcha, filme de Pedro Costa

 

 

livro a ser lançado na noite 15 de junho, sexta-feira, das 22h às 4h no Zona Franca no BARTO juntamente com a festa do 2º aniversário do BUALA

por Bruno Peixe Dias e Nuno Dias
A ler | 1 Junho 2012 | imigração, Portugal, racismo