O que nomeia a palavra “imigrante”?

DA ALTERIDADE À RECUSA
DA IDENTIDADE: 
O TEMPO DA SUBJETIVAÇÃO POLÍTICA

BRUNO PEIXE DIAS

O que nomeia a palavra “imigrante”?

Numa entrevista com Peter Hallward realizada em 1997, o filósofo francês Alain Badiou falava do esforço sistemático, por parte de quem ocupa o poder do Estado, para eliminar a palavra “trabalhador” do espaço político. Nesse esforço, a categoria “imigrante” ou “imigrante ilegal” tomou, no espaço público, o lugar que antes estava reservado ao “trabalhador”, ou ao “proletário”1. Se pensarmos no modo como a palavra imigrante não é comummente usada para designar todo o indivíduo que vive fora do seu país, mas apenas aqueles de entre eles que pertencem às classes menos privilegiadas, nomeadamente os trabalhadores dos países não-ocidentais que ocupam as posições menos qualificadas no mercado de trabalho, percebemos que a afirmação de Badiou nada tem de extravagante. Imigrante é, pois, um nome político e não uma categoria objetiva de descrição do real.

Entenda-se, então, que não se trata aqui de diagnosticar a substituição de um grupo populacional por outro na estrutura social, de uma substituição de trabalhadores nacionais por trabalhadores estrangeiros no cumprimento de uma determinada função económica. Do que se trata é do lugar político ocupado por cada uma destas categorias e, consequentemente, do potencial de ação política que cada um destes grupos encerra, que constitui uma possibilidade de desestabilização da ordem social ou, pelo menos, de desarrumação das grelhas hegemónicas de leitura do real (…)

 

 

“CONSTRUIR AS CIDADES PARA OS OUTROS”: IMIGRAÇÃO E TRABALHO
 NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

NUNO DIAS

A grande maioria dos estudos sobre imigração em Portugal nas últimas três décadas agrupa-se num ponto de partida comum: as transformações políticas, sociais e económicas desencadeadas a partir de 1974 ocasionaram uma profunda reconversão demográfica decorrente de uma alteração continuada dos regimes migratórios. Com a extinção do modelo de governação autoritário, a queda do aparelho colonial e o colapso de toda a estrutura institucional que o sustentava, Portugal, um país cujo saldo migratório era inequivocamente negativo (o número de saídas retiravam sentido ao número de entradas), assiste a um fluxo de entrada sem paralelo na sua história recente. Mas se, por um lado, e não deixando estes de constituir pontos fundamentais para pensarmos o quadro global

de conceptualização académica e política sobre a realidade migratória em Portugal, as particularidades da deslocação protagonizadas pelo contingente que se convencionou designar por “retornados”2 e a própria ausência de uma corroboração fidedigna sobre a transição de um ‘país de emigração’ para um “país de imigração”3 não cabem no âmbito das questões sobre as quais importa aqui refletir; por outro lado, é imperativo que olhemos para a imigração não como um local de práticas e de comportamentos uniforme consequente de uma linearidade histórica tão previsível quanto inevitável e antes como um espaço de interseção de processos políticos, económicos e sociais marcados pela heterogeneidade de trajetórias, condicionalismos, estratégias e recursos dos intervenientes nesse mesmo espaço. Nesse sentido, olhar para a imigração, em particular para a imigração económica, implica compreender uma diversidade de contextos (mercado de trabalho, políticas públicas, discriminação, legislação, etc.), e de debates sobre esses mesmo contextos, bem como os seus cruzamentos com as populações imigrantes que os preenchem, nomeadamente através do modo como esses cruzamentos vão sendo acompanhados quer por um alargamento dos fluxos migratórios quer por tendências globais na estruturação dos mercados de trabalho do hemisfério norte (…)

 

 

“PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO” RELOADED – “TERCEIRA VIA” 
OU DESPOLITIZAÇÃO DA DIFERENÇA?

NUNO OLIVEIRA

Desde a dicotomia clássica entre a nação étnica e a cívica proposta por BrubakerBRUBAKER, Rogers (1992); Citizenship and Nationhood in France and Germany, Cambridge: Harvard university Press.– cuja fórmula original remonta a Fredrich Meineker e à distinção entre Staatsnation e Kulturnation –, até à mais refinada distinção entre o modelo Multicultural de Relações Raciais britânico e o Republicanismo Cívico Francês sugerido por Adrian Favell4, as dicotomias, quer enquanto quadro político quer ideológico, têm sido utilizadas como grelha para interpretar os modelos de incorporação de imigrantes na Europa.

Com efeito, a distinção entre estes modelos polares, ou como Favell mostrou, entre “filosofias de integração”, tem funcionado como um excelente padrão interpretativo das lógicas de incorporação em ambos os países, a Inglaterra e a França respetivamente. Por um lado, é incontestável que as políticas de integração dirigidas para as populações pós-coloniais na Inglaterra foram significativamente motivadas por preocupações com a igualdade de oportunidades e disparidades raciais, ao passo que as políticas francesas foram sobretudo vocacionadas para a concessão de cidadania. Sucede que a lógica de igualdade de oportunidades que enquadrou as políticas públicas aplicadas aos imigrantes pós-coloniais levou a uma consciencialização crescente, por parte dos atores, dos direitos das minorias e do seu reconhecimento na esfera pública[6], enquanto no caso francês, o designado modelo assimilacionista, tendeu a impedir a expressão das minorias étnicas no espaço público (…)

 

 

CRIMINALIZAÇÃO DOS FENÓMENOS MIGRATÓRIOS

MÓNICA CATARINO RIBEIRO E SARA DIAS DE OLIVEIRA

Imigração: Problema ou Necessidade?

Nos últimos anos o fenómeno das migrações tornou-se tema comum, especialmente nos discursos políticos que da direita à esquerda esgrimem argumentos quase sempre baseados em dicotomias redutoras legal/ilegal, nacional/estrangeiro, cidadão comunitário/cidadão de país terceiro… Estes conceitos perpetuam-se e ganham corpo nos sistemas legais e consubstanciam uma discriminação político-legislativa com origem em ideias que prevaleceram na história e nas mentes sobre civilizações superiores e inferiores.

A história recente que a Europa produziu e projectou sobre si mesma é a do modelo civilizacional que coloca os imperativos éticos à frente dos económicos, que defende a vida, a democracia e a liberdade individual, que se propõe como alternativa ao cinismo consumista do modelo norte-americano5.

No entanto, na Europa de hoje, a imigração e os imigrantes são vistos com uma dupla representação que carece de coerência lógica. A Europa olha para os imigrantes como um activo económico, mão-de-obra necessária e fundamental não só para o desenvolvimento económico dos Estados, mas também como garante da sustentabilidade dos sistemas europeus, em particular no que diz respeito ao equilíbrio entre população activa e não activa (…)

 

 

“PORTUGAL AOS PORTUGUESES”: A EXTREMA-DIREITA DEPOIS DO 25 DE ABRIL

RAHUL KUMAR

Introdução

Apesar da sua expressão eleitoral mínima, e do caráter marginal das suas atividades, os movimentos de extrema-direita têm sido alvo de alguma atenção por parte dos meios de comunicação social e da opinião pública, no que diz respeito aos aspetos racistas e xenófobos do seu discurso, nomeadamente a presença dos imigrantes e seus descendentes como alvos do discurso de ódio de tais movimentos. No texto que se segue procuraremos esboçar uma genealogia destes movimentos no Portugal pós-25 de Abril.

O trajeto da extrema-direita portuguesa depois da Revolução de Abril pode ser dividido em três fases. A primeira fase, que podemos situar entre 1974 e 1985, define-se pela participação ativa de muitos grupos e organizações da direita radical, de matriz salazarista, nas atividades contrarrevolucionárias e a sua posterior marginalização institucional, associada a uma diluição de muitos dos agentes ativos destes grupos noutras estruturas ou partidos situados à direita no espectro político português. A segunda fase, balizada pela criação em 1985 e extinção em 1993 do Movimento de Ação Nacional (MAN), caracteriza-se pela emergência dos grupos de skinheads e por uma rutura geracional e de origem social nos setores mais radicais da direita portuguesa. Finalmente, a terceira fase é marcada pela recomposição destes grupos sob a influência da Aliança Nacional e a sua posterior organização partidária e integração no sistema político, operada através da criação do Partido Nacional Renovador (PNR) (…)

 

 

DESIGUALDADES SOCIAIS 
E ETNICIDADE:
O CASO DOS PORTUGUESES CIGANOS

ALEXANDRA CASTRO

A produção da diferença: um processo histórico

A história da presença dos ciganos em Portugal, como noutros países da Europa, dá conta de como a sua inscrição local se foi constituindo como um problema público. Mas torná-lo digno de preocupação implicou entrar uma lógica de designação e de descrição do problema para o resolver, operando-se modelizações que nem sempre traduziam o sentido da realidade.

Mais do que elencar as várias medidas que ao longo do tempo foram sendo aplicadas, o que tende a ser mais relevante neste processo histórico são as lógicas que presidiram à distinção de um grupo de pessoas, de lhes atribuir um nome e determinadas práticas e de legitimar um tratamento diferenciado. Os ingredientes essenciais deste processo parecem, inicialmente, basear-se na origem desconhecida da população cigana, no seu modo de vida aparentemente original associado a uma organização social diferente que suscitavam nas populações um sentimento de desconfiança e medo (…)

 

 

SERÁ QUE DEUS NÃO PRECISA
DE PASSAPORTE? ISLÃO “IMIGRANTE”, NORMATIVIDADES SECULARES 
E ISLAMOFOBIA

JOSÉ MAPRIL

Em 2007, Peggy Levitt publicou God Needs no Passport, um livro onde se debruçava sobre o impacto da nova imigração na paisagem religiosa nos EUA.6 A ideia central pode ser resumida no seguinte parágrafo:

A religião, como o capitalismo ou a política, já não está firmemente ancorada num pais ou num sistema legal. Isto ocorre em parte porque a religião facilmente atravessa fronteiras. Deus não precisa de passaporte porque as tradições baseadas na fé dão aos seus seguidores símbolos, rituais e estórias que podem ser usadas para criar paisagens sagradas alternativas, marcadas por templos e locais de culto.7

O argumento é que o religioso questiona permanentemente as fronteiras dos Estados-nação e os imaginários particularistas. A tese enquadra-se num contexto teórico-metodológico marcado pela emergência do transnacionalismo enquanto conceito central na interpretação dos fenómenos migratórios contemporâneos, conceito esse que enfatiza as múltiplas relações sociais que os migrantes mantêm entre as sociedades de origem e de acolhimento.8Com este livro, Levitt pretende mostrar como os campos sociais transnacionais se produzem e articulam não apenas em torno de fenómenos económicos e políticos mas também por via da religiosidade e do ritual (…)

 

 

 

  • 1. BADIOU, Alain (2001); Ethics: An Essay on the Understanding of Evil, Londres: Verso, pp. 102-103.
  • 2. PIRES, Rui Pena. et al. (1987); Os Retornados, Um Estudo Sociográfico, Lisboa: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.
  • 3. PEIXOTO, João (2004); “País de emigração ou país de imigração? Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal”, Socius Working Papers, Lisboa.
  • 4. FAVELL, Adrian (2001); Philosophies of Integration: Immigration and the Idea of Citizenship in France and Britain, London: Palgrave (2nd ed.)
  • 5. ALVARENGA, Carlos; “Reflexão sobre a História e Migração em Portugal”, in A Imigração em Portugal, SOS Racismo, Novembro 2002.
  • 6. LEVITT, P. (2007); God Needs no Passport: Immigrants and the Changing American Religious Landscape, Virginia, The New Press.
  • 7. PEIXOTO, João (2004); “País de emigração ou país de imigração? Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal”, Socius Working Papers, Lisboa.
  • 8. BACH, L., Glick Schiller, N., e Blanc, S. (1992); “Transnationalism: a new analytic framework for understanding migration”, Annals of the New York Academy of Sciences, 645, pp. 1-24.

por Bruno Peixe Dias e Nuno Dias
A ler | 2 Junho 2012 | imigrante