Reflexões Pós-Parto. Uma crítica a Parto Rosa de Renata Torres

fotografias de Hindhyra Mateta.

 Este texto debruça-se sobre a peça Parto-Rosa, da qual Renata Torres é autora e intérprete. A encenação é de Torres e Matamba Joaquim. Parto Rosa estreou em Luanda, no Centro Cultural Brasil-Angola, no dia 31 de Março, numa apresentação única. 

Da completa escuridão saiu um vermelho miúdo, holofote escondido, mas pouco neutro na trama que se segue. Ela entrou assim: firme na sua postura, olhando adiante, uma mala na mão, peças de roupa íntimas no corpo. De onde terá vindo, não se sabe, não nos foi dito. De repente, soltou-se a trilha sonora que acompanhou os seus primeiros passos. Na letra e na voz, assinatura da rapper angolana, Girinha:

Só porque eu sou…

És uma rainha

Se aceitares os termos e condições.

… Eu não vou querer

Sou Cecília,

Sou Helena,

Sou Sita.

A dor de ser eu é tão doce, acredita

Sou Rosa,

Sou Laurinda

Há dias, sou Deolinda

Honestamente, eu nem sou ainda

Mas, me define

Quer validar minha existência

Me reprime

Queres aprovar a minha essência

Quem és tu que decide o que é ser mulher?

Quem és tu que exige saber o que é?

Só pra caber em teus padrões de respeitabilidade,

Pra me prender no retrato que exibes com vaidade?

Disse pr’eu me comportar

Deu regras pr’eu decorar

E se eu obedecer vai dizer que eu sou

“Grande Mulher”

… Não vou querer.

Quanta superioridade, achares que vim da tua costela

Filho da costela, nunca gostei da tua novela!

Agora eu sei: o papel principal é meu.

Dá-me licença, esse filme não é teu.

Tantas vezes me escondi,

Achei que a culpa era minha

Cansei de esperar por ti,

Eu vou-me salvar sozinha 

Sem calmaria,

Se eu quiser, vou ser furacão

Aqueles dias, só quero ser Aline Frazão

Tu me expões na montra do teu visor

Depois descontas com prosas de amor

Não preciso que me digas quem sou, qual é meu valor, decidas p’ro que ‘tou.

Sim, te quero aqui, mas existo sem ti

Não me limites, eu não vim pra te servir

Não sou teu objeto,

Título de Internet,

Tua coisa,

Entretenimento,

Manchete.

Quem deu moral pra decretares o que valo,

Escolheres o preçário como se eu fosse carne no talho?

Olha o que essa Maria Sem Limites faz!

Não posso ser tua comida, eu sou inteira demais.

Disse pr’eu me comportar

Deu regras pr’eu decorar

E se eu obedecer vai dizer que eu sou

“Grande Mulher”

… Não vou querer.

Aviso, mano:

Não vou querer.

Num corpo só, elas entraram. Sentaram-se e, como se já nos conhecessem, olharam-nos no fundo dos olhos. Esgueirou-se o silêncio tão aguardado nos poucos minutos que sucedem ao início de uma peça e, pouco depois, chegavam-nos os relatos, as interrogações, as reflexões e os desabafos de mulheres que se cruzavam em palco.

Parto Rosa é apresentada como uma análise crítica que toma corpo num monólogo intimista. A peça questiona a condição de mulheres face às imposições rígidas dos papéis de género, sedimentados pela força da socialização e da cultura. Esses papéis – o do homem, o da mulher –, na nossa realidade angolana, como noutras partes do mundo, seguem uma trama verdadeiramente desigual. A performance concentra-se sobre as exigências e os padrões que em parte formam o papel construído da mulher, e reflete sobre a forma como aquelas imposições a destroem. A esses elementos se acrescentam as manifestações violentas – das mais óbvias às supostamente mais subtis – de uma sociedade profundamente machista. A peça aponta também para a maneira como as imposições incidem sobre a formação de identidade de mulheres.

Essas imposições e moldes, para além de balizarem a existência de qualquer mulher e de anularem o potencial da sua subjetividade, delineiam as relações de poder entre mulheres e homens. Essas duas entidades, construídas sob a lógica da pobre leitura binária de género do sistema patriarcal – onde a autoridade masculina reina sobre a presença feminina –, sustentam a teimosa idéia de que a mulher é inferior ao homem. Esse sistema patriarcal consegue então, sem muitas dificuldades, legitimar a opressão das mulheres em todas as esferas da sociedade. É esperado que a mulher seja submissa, obediente e limitada em relação ao homem.

Parto Rosa assume um ritmo poético numa rota direta. Intercetamos facilmente os sinais urgentes de males profundamente enraizados e precisando de sérios tratamentos. Assim, são várias as etapas a seguir, tornando praticamente impossível a tentativa de as priorizar. Falemos de tudo um pouco: os sintomas, as causas, as consequências, as feridas, as sequelas, os traumas, e tentemos urdir diagnósticos possíveis. Aí estarão então, encenadas, as forças do patriarcado e a tenaz socialização que distingue os deveres, poderes, comportamentos e estatutos das pessoas consoante o sexo, o machismo nosso de cada dia, o sexismo que nos separa, a misoginia que nos ataca. Muito menos visíveis na peça, mas certamente difusas algures no espaço cénico, estarão também todo um processo histórico, o trio social-económico-cultural, as questões de classe, de raça, as outras questões de género e claro, toda uma série de micro detalhes que compõem histórias pessoais.  

Vemos encenados recortes de biografias de várias mulheres numa sociedade onde a autoridade masculina e opressora dominante, atua nas esferas públicas e privadas. Presenciamos sobre tudo essa dominação nas pequenas reproduções de interações mais íntimas. Ouvimos os comentários violentos de um homem enquanto ecoam no ouvido de uma mulher. Acompanhamos os desabafos de uma mulher cansada do desrespeito de um homem à sua dignidade, liberdade individual e aos seus limites. Assistimos a uma cena de violência física onde uma mulher é estrangulada pelas mãos de um agressor, seu parceiro, invisível no palco. Vemos alguns episódios de um homem que intimida e abusa psicologicamente da sua parceira.

Fora das interações, somos convidadas nos momentos a solo de algumas mulheres. Alguns são de pura reflexão, onde uma mulher questiona o seu posicionamento dentro dos padrões preestabelecidos e face à construção da superioridade masculina que a oprime. Outros momentos são de desabafo sincero, de confusão, de tristeza, de desespero, até. Durante os seus questionamentos, uma força crítica sobressai, como se esta a pudesse transportar para fora dos moldes, dos papéis e das exigências. Vemos então uma personalidade mais plena, mais livre, transbordando para além das delimitações estabelecidas, recompondo-se aos poucos, antes de cairmos nas reminiscências traumatizantes de outra mulher. Numa roda-viva emocional, passamos assim de uma biografia à outra. Nessas sequências seguidas sem descanso, afundamo-nos por completo na realidade de uma mulher, sem conseguirmos subir rapidamente à superfície, para passarmos à história de outra. A autora consegue assim manter-nos num processo de identificação constante. 

Renata Torres distingue-se nas suas fiéis traduções de sentimentos e sensações. Isso é difícil, sobretudo quando se trata de recriar o que se passa dentro de pessoas diferentes, com experiências e possibilidades de reações diversas. A atriz retrata essas variantes com inquestionável mestria. Parece escrever com o corpo todas aquelas verdades que nos são tão próximas, tão familiares, ao ponto de as podermos quase sentir na pele, bem mais do que apenas as imaginar. Assistimos a uma lição visceral sobre a impossibilidade de sermos completamente insensíveis ao que se passa com cada uma daquelas mulheres. Presenciamos a penúltima tentativa de um lembrete cansado que surge num palco para fugir da indiferença.

Para reconstruir o estado psicossomático de cada mulher, teceram-se detalhes cuidadosamente estudados. Torres conseguiu fazer-nos dar a devida importância a cada fala, cada olhar, expressão facial, passo, gesto e movimento mais largo. O poder de identificação do monólogo acordava aí, nesses detalhes necessários onde nos revíamos – nós, pessoas sentadas na audiência – e onde espreitávamos as vidas de pessoas próximas que não estavam na sala connosco.

Doeu ver o tio que trai a esposa e que, confortavelmente, mantém-na refém de um inferno emocional e psicológico. Doeu ver a amiga ser chamada de “puta” por mais um detestador assumido de mulheres. Sim, “puta”, palavra repetida assim várias vezes por Torres, em tons e volumes diferentes. Palavra arrancada de bocas soltas e desavergonhadas. Palavra que serve para toda mulher que não se comporta, não decora as regras e não obedece ao que dita a autoridade masculina. Palavra para quem é desqualificada do concurso de “Grande Mulher”. Palavra denunciada assim, em palco. Sem o pudor implorado pela hipócrita decência que se queira sentir chocada aqui, quando ela a repete, e não lá fora, quando ele a diz. Doeu ver de perto a nossa irmã sendo batida pelo marido.

Existe realmente uma força no acto de denunciar em palco tudo o que nos desgastamos a apontar lá fora, quando falamos com alguém que conhecemos, com um familiar ou uma pessoa amiga. Quando assinamos um desabafo solto. Quando questionamos abertamente. Quando gritamos. Lá fora, os casos são arquivados na memória da família, da pessoa amiga ou conhecida, ou numa esquadra qualquer. A forma leve como se olha para muitos desses casos contribui, mais do que se possa acreditar, para a sua banalização. Sobre isso, relativamente à violência física contra a mulher, a feminista angolana Leopoldina Fekayamale, num dos seus textos mais recentes, escreve o seguinte:

É bastante comum, infelizmente, na nossa sociedade a violência física (agressão) contra a mulher. Muitos de nós já presenciamos ou já ouvimos falar de algum caso desses – próximo ou distante. Inúmeras mulheres, todos os dias, são agredidas por pessoas próximas a elas e em muitas das vezes os agressores acabam impunes e vão repetindo e repetindo o processo de agressão por causa da impunidade. Infelizmente, essa impunidade é subsidiada, por um lado, pelo sistema de justiça que começa em primeiro lugar por perguntar à mulher o que ela “fez” ou se “provocou” e automaticamente a transmitir de forma directa ou indirecta a ideia de que a mulher é sempre culpada e com isso desvia o foco do agressor e quando o pune, acaba sendo de forma leve muitas vezes. E por outro lado, pela sociedade que muitas vezes fecha os olhos (…) e justifica o agressor com argumentos absurdos como os do “respeito.”

Numa sociedade onde nem mesmo à violência física de um homem contra a sua parceira se dá a devida atenção, o que dizer dos mecanismos de coação psicológica, dos abusos emocionais, das ameaças, intimidações, chantagens e faltas de respeito? Essas talvez não resultem num olho negro ou num rosto inchado, mas deixam marcas profundas na camada invisível a olho nu, a que mantém o equilíbrio espiritual, psicológico, emocional e a dignidade da pessoa humana. Essas marcas resultam muitas vezes em depressões, traumatismos ou outras perturbações psíquicas graves. Essas foram retratadas nos tormentos verbais e na linguagem corporal de cada personagem vítima de tratamentos dessa ordem.

Em Parto Rosa, todos os gestos são comunicativos. São linguagens pensadas para traduzirem sensações, sentimentos, impressões e silêncios, até. Depois da peça, conversei com uma amiga psiquiatra que também estava na sala. Ela partilhou comigo a sua leitura interessante de dois movimentos reproduzidos pela Renata em palco. O primeiro é o movimento que traduz um estado de histeria. O tronco e a cabeça balançam para frente de forma repetida. Entende-se que algo precisa de ser expressado em palavras e como não se consegue, é expulso para fora com a força dessa oscilação do corpo. No segundo movimento, a atriz, deitada de costas na mesa com as pernas dobradas para cima, provoca um balançar no qual eleva o peito e propulsa o seu corpo para frente. Esse movimento poderá ser o da mulher com anorgasmia, disfunção sexual geralmente de ordem psicológica – se na sua origem não estiver nenhuma razão estritamente fisiológica – onde não se consegue atingir um orgasmo, mesmo após estimulação. No pano de fundo, avistamos então as linhas da repressão sexual e do papel da mulher-objecto, destinada e ensinada a satisfazer até ao clímax, sem a necessidade de ser satisfeita até ao mesmo ponto.

Chegando quase ao final da peça, algumas questões são publicamente despidas. Que estrutura é essa afinal que se obstina em estabelecer papeis atribuídos consoante o género? Que fabrica e eleva uma certa autoridade masculina, ao ponto de a tornar credível e aplicável nos domínios mais miúdos aos mais complexos? Que não se envergonha em falar de respeito e tratamento justo, desde que não seja desafiada essa autoridade masculina? Que outorga a um homem o poder de ditar regras declaradas ou implícitas, sobre como uma pessoa do sexo feminino deve se comportar para se tornar “Grande Mulher”? Numa pequena passagem ridicularizante – entre risadas e a tentativa falhada de caber num molde onde os sorrisos, a postura corporal, o olhar sedutormasnãotanto-gentil-meigo, a fala e os pensamentos, são predefinidos –, aprendemos que os papéis de género nos são atribuídos desde a infância, através dos mais variados sinais. Desde o que devemos vestir à maneira como nos devemos comportar consoante o sexo, passando pela forma como nos devemos relacionar com o dito sexo oposto, tudo é ditado. Nesse apontamento final, a autora consegue abrir outra frase interrogativa de forma brilhante: que conjunto de elementos são esses que denunciámos e questionámos em palco em média de uma hora, sendo eles importados de uma realidade mais longa lá fora?

Cada vez mais em Angola, vemos correntes sólidas de criadoras usando as suas ferramentas de trabalho, criando linguagens esculpidas para leituras do nosso contexto. Assim, vão-se afirmando críticas sociais e análises culturais sérias, sempre transcritas com um punho de criatividade ajustado à temática. Elas escrevem artigos ou posts incisivos nas redes sociais. São cantoras, rappers, produtoras, atrizes, encenadoras, performers, designers, artistas, fotógrafas. São elas, criadoras angolanas construindo espaços nossos, tirando dos rodapés e pondo na ordem do dia questões urgentes sobre as coisas que nos incomodam, nos invisibilizam, nos calam, nos ferem, nos matam, até. São elas quem expõem as caras feias dessas coisas. São elas quem tira o véu de cima da criatura gigante de presença óbvia mas ignorada e normalizada num espaço onde nem cabe.  

Sem conseguir contê-la, entrego aqui a minha mais recente intuição: um novo capítulo se escreve na história das artes performativas em Angola. Sem sombra de dúvidas, Renata Torres mostrou uma verdadeira reflexão na representação cénica e abordou conteúdos absolutamente necessários. Podemos escrever o seu nome. Se não o apontarmos num agora-hoje-presente, espero então, sem qualquer reticência, que o possamos ler num depois-amanhã-futuro, estampado na porta de mais salas de teatro, por entre um rico elenco desfilando numa tela, ou nos texto críticos mais sérios.

Referências

Fekayamale, Leopoldina. “Sem dívidas!!” em  Leo Escrevendo… Disponível aqui

Girinha. “Não Vou Querer” ao vivo. [Vídeo]. Filmado por Quarteirões do Sul & Kano Kortado. Concerto “Equilíbrio”, MCK & Aline Frazão, Chá de Caxinde.

Sobre a autora de Parto Rosa:

Renata Torres é artista visual, performer, actriz, realizadora e produtora angolana.

por Maria-Gracia Latedjou
Palcos | 20 Abril 2017 | crítica, Girinha, Leopoldina Fekayamale, Parto Rosa, performance, Renata Torres, teatro