Quase XX anos depois

O que mudou, afinal, passada esta vintena de anos? O corpo passou para o centro da política. É, a nível global, o motivo de incontáveis artigos de imprensa e intervenções nas redes sociais. Na academia, ganham peso – e bem - estudos centrados na construção da identidade, acompanhados de um ganho do estatuto da imagem como fonte e prova de fracturas na constituição dessas identidades, presente nos estudos culturais e pós-coloniais, entre outros. O corpo constitui o núcleo de alguns dos mais recentes debates gerados na esfera pública portuguesa. A partir dele se constituem manifestos de poder e resistência contra a formatação de identidades. Assume-se que o território de poder está no corpo e é ele o elemento que se considera o principal argumento de afronta ao poder do Estado, à lei e à moral. O encontro de respostas para o problema da desigualdade tem vindo a ser recentrado na biopolítica, tal como para o problema da violência. Atravessamos um tempo em que um conjunto de forças sociais, reivindicando novos sistemas políticos, ou até mesmo a ausência de um sistema, pensa a transformação e as novas utopias a partir de uma equação em que o corpo enquanto propriedade do indivíduo não é alienado pelo Estado.

Para além do debate que esta nova linha de reivindicações pode e deve suscitar – em concreto, o efeito provocado por uma parte da mobilização ideológica e social dos indivíduos ter vindo a perder terreno na luta de classes e direitos do trabalho, ganhando nos direitos do corpo – este livro permite pensar que o processo de governabilidade das identidades individuais assimilada à governabilidade do Estado está longe de ser linear. Também no passado o corpo esteve no centro do discurso de uma classe dominante, assumindo a construção do papel de género como fundamental para uma ideia de nação e, na altura, elidindo a existência de um país cuja composição social era terrivelmente desigual e afastado entre si. O corpo está, neste sentido, directamente ligado à política e, hoje como no passado, com razões e implicações sobre as quais é urgente reflectir, associa o nascimento de uma nova ordem física a uma nova ordem política e social.

O machismo e a violência de género nos comportamentos de homens e mulheres portugueses é resultante de forças perenes de inculcação dos modos de ser homem e mulher guiados pelas estruturas discursivas do poder. Depois da leitura deste livro, espero que não restem dúvidas acerca das raízes de uma ideologia perfeitamente devastadora em relação ao papel de cão de guarda atribuído à mulher, nada mais, nada menos que uma mulher-ser-silêncio. Essa ideologia não esteve – em absoluto – centrada no Estado. Foi promovida por muitos outros sectores da sociedade e contou com uma forte regulação intra-género, mas onde é possível encontrar resistência também a partir do Estado. Se dos sistemas de vigilância do corpo fazem parte as políticas de assistência e saúde, é impossível negar o papel de determinadas políticas na prestação de cuidados de saúde, higiene e conhecimento de si, debelando assimetrias na probabilidade de sobrevivência e na discriminação sobre comportamentos moralmente sancionados, também neste período.

O Estado Novo travou, e atrasou, a formação de uma relação do eu para com o seu corpo. Às boas mulheres boas portuguesas pugnou que guardassem o sexo, disciplinassem o sexo e silenciassem o sexo, mas consentindo o machismo adúltero e a mulher- mercadoria. Ainda hoje teremos uma noção pouco esclarecida do impacto causado por estas formas de repressão da sexualidade na formação das mentalidades. O mesmo se pode dizer sobre a ideologia de cercamento da mulher ao espaço privado, negando-lhe o acesso ao trabalho. O corpo da mulher trabalhadora é visto como um corpo contra-natura e as mulheres operárias descritas como as que vestem com um “alentinho pobre” e desalinhadas. Talvez tenha sido este um dos aspectos da violência histórica e social sobre as mulheres portuguesas com maior influência sobre a minha formação enquanto sujeito político, tal como a confinamento da mulher ao espaço da maternidade e do cuidado de outros. Não deixa de ser oportuno citar aqui a obra de Maria Archer pela resistência persistente ao figurino da mulher-esposa-mãe-prenda do lar, durante os anos da ditadura.

Conhecer os discursos sobre o corpo feminino produzidos no contexto do Estado Novo é também tomar consciência do quanto este agiu eficazmente na produção da diferença e da distinção social. A educação das boas maneiras serviu novas necessidades de diferenciação das elites (letradas, aristocráticas, burguesas) em relação a outras classes, operando no sentido de uma maior contenção e repressão e da expressão pública de certas funções físicas. A construção desta ética corporal operou uma nova economia afectiva dominante, fracturando internamente o género, e tornando mais claros os sistemas de classificação e identificação de classe.

Num tempo em que o corpo parece ter voltado ao centro da política, este é um livro que recupera o conjunto de sentidos produzidos em torno do corpo da mulher no regime do «Estado Novo». Agora em edição revista, escrutinamos o discurso oficial e as tensões trazidas ao de cima pela luta de uma imagem da condição feminina conforme e resignada, mas também espelho de uma nova ordem. Sobre ele todas as autoridades vieram à cena prescrever, corrigir e aperfeiçoar, num diálogo constante entre a casa e a vida pública que acabou por tutelar o papel da mulher portuguesa, ainda hoje bem vivo na memória e no quotidiano da sociedade portuguesa.

Autora: Inês Brasão Edição: Deriva e Outro Modo, Le Monde diplomatique – edição portuguesa série LEITURAS |2017 | Preço: 11,50€ (10% de desconto para assinantes)

por Inês Brasão
Mukanda | 27 Março 2017 | corpo, Estado Novo, feminino, machismo, representações