O novo Negro

1Durante o último decénio, surgiu algo na vida do Negro americano que excede a vigilância e o zelo das estatísticas, e as três nornas2 que tradicionalmente presidiam ao problema negro deparam-se agora com um enjeitado no seu colo. O Novo Negro não passa despercebido ao sociólogo, ao filantropo, ao líder racial, incapazes de o explicar através das suas fórmulas limitadas. Pois a geração mais jovem vibra com uma nova psicologia, um novo espírito anima as massas e está a transformar, sem que os observadores profissionais disso se dêem conta, aquilo que tem sido um problema constante nas diferentes fases da vida negra contemporânea.

Poderia uma tal metamorfose ter acontecido tão abruptamente como pareceu? A resposta é não; não porque o Novo Negro não esteja aqui, mas porque o Velho Negro há muito que se havia transformado mais num mito do que num homem. O Velho Negro, recorde-se, foi resultado do debate moral e da controvérsia histórica. A sua representação habitual tem sido perpetuada, tal ficção histórica, parte sentimentalismo inocente, parte reaccionarismo deliberado. O próprio Negro contribuiu com a sua quota-parte para isso, através de uma espécie de mimetismo social protector que lhe foi imposto pelas circunstâncias adversas da dependência. Assim, para a mente americana, o Negro foi durante gerações mais uma fórmula do que um ser humano – algo a ser discutido, condenado ou defendido, a ser “oprimido”, “mantido no seu lugar” ou “apoiado”, motivo de preocupação solidária ou segregadora, de assédio ou paternalismo, espectro ou fardo social. O Negro pensante foi mesmo levado a partilhar esta atitude generalizada, a concentrar a sua atenção em questões controversas, vendo-se a si mesmo segundo a perspectiva distorcida de ser um problema social. Era como se a sua sombra se tivesse tornado mais real do que a sua personalidade. Dado o facto de ter tido de reagir tanto aos estereótipos injustos dos seus opressores e difamadores como aos dos seus libertadores, amigos e benfeitores, teve de aderir às posições tradicionais a partir das quais o seu caso tem sido visto. Uma tal situação só resultou, ou podia resultar, numa compreensão social ou compreensão de si mesmo diminutas.

Mas, enquanto as mentes da maior parte de nós, negros e brancos, assim se ocupavam com as trincheiras da Guerra Civil e da Reconstrução, a marcha efectiva do desenvolvimento flanqueava-lhe as posições, carecendo de uma repentina reorientação de perspectiva. Não temos olhado na direcção certa; ao colocar o Norte e o Sul num eixo seccionado, não reparámos no Leste, até que o sol nos ofuscou.

Lembremo-nos como os espirituais negros se revelaram subitamente, depois de se terem mantido secretos, semi-envergonhados – suprimidos que haviam sido durante gerações sob os estereótipos da harmonia dos hinos wesleyanos3 –, até que a coragem de serem naturais os trouxe à luz. E eis que passou a haver música popular. Do mesmo modo, a mente do Negro parece ter escapado repentinamente à tirania da intimidação social e estar em vias de se libertar da psicologia da imitação e da inferioridade implícita. Ao livrarmo-nos da velha crisálida do problema do negro, estamos a alcançar como que uma emancipação espiritual. Dada a incapacidade de nos compreendermos a nós mesmos, éramos até há pouco um problema quase tão grande para nós mesmos como o somos para os outros. Mas a década que nos encontrou com um problema, abandonou-nos com uma única tarefa. Talvez a multidão sinta, por ora, apenas um estranho alívio e uma nova e vaga urgência, mas a minoria pensante sabe que, com a reacção, foi quebrado o ponto vital do preconceito.

Através da renovação deste respeito de si mesmo e da autonomia, a vida da comunidade negra deverá entrar numa nova fase dinâmica, compensando com a vivacidade qualquer pressão que possa vir das condições externas. As massas migrantes, transferindo-se do campo para a cidade, concentram num salto a experiência de gerações. Mas, mais importante que isto, o mesmo acontece no plano espiritual, nas atitudes de vida e de auto-expressão do jovem Negro, na sua poesia, na sua arte, na sua educação e na sua nova aparência, com a vantagem adicional, claro, da elegância e da certeza acrescida de saber o que está em jogo. É daí que provêm a promessa e a garantia de uma nova liderança. Com o exprimiu claramente um deles:

 

O amanhã

Brilhante diante de nós

Uma chama parece.

O ontem, uma coisa que a noite levou

Um nome de sol que fenece.

E a aurora hoje

Vasto arco sobre a estrada que se percorresse.

Marchamos!

 

 

excerto do livro Malhas que os impérios tecem, Textos anti-coloniais, contextos pós-coloniais(org. Manuela Ribeiro Sanches)

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Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

 

  • 1. Alain Locke, “The New Negro,” The New Negro. Ed. Alain Locke, New York: Atheneum 1969 [1925], pp. 3-16. Tradução de Manuela Ribeiro Sanches. Revisão de Maria José Rodrigues.
  • 2. Divindades escandinavas (N.T.).
  • 3. N.T.: Referência aos hinos, compilados em A Collection of Hymns for the Use of the People Called Methodists (1780), criados por John Wesley (1703-1791) e Charles Wesley (1707-1788), fundadores do movimento metodista inglês, tendência reformadora do Anglicanismo que mais tarde se viria a separar da Igreja-mãe e a exercer grande influência nos EUA (N.T.).
Translation:  Manuela Ribeiro Sanches

por Alain Locke
Mukanda | 30 Maio 2011 | Harlem Renaissance, novo negro