A Canção de Zefanias Sforza - pré-publicação PATRAQUIM

A possibilidade de Zefanias Sforza
Quem não conhece Zefanias Sforza? Ninguém, é verdade.
Mas embora nenhuma rua desta cidade lhe assinale nome, e nem busto ou estátua, a possibilidade de isso vir a acontecer é mais verosímil do que alguns pensam. Zefanias Plubius Sforza, afirmo-o com a dúbia convicção de um mero tabelião de afectos e descasos, foi um cidadão, ou tentou ser, e isso já não é pouco.
Se é certo que o nome inscreve um destino, ou um estigma – Ngungunhane só podia ter a condição e os azares que se lhe conhecem, esse leão dúbio, corajoso  e nu, caverna e trovão –, Zefanias pouco utilizou o seu poderoso apelido, os tempos não ajudavam.
Chovia quando nasceu. Voltarei sempre a este assunto.
Os Sforza!… Olhem o mapa, qualquer mapa, e vejam a distância que vai desta Delagoa Bay, Zefanias denominava assim a cidade sempre que os seus pergaminhos genealógicos tiniam como cristal, imaginem, o castelo do ducado de Milão, lá nos longes da velha Europa e maravilhem-se com os séculos. Ao cimo da famosa bota, depois dos arvoredos e dos ciprestes – Zefanias nunca foi muito rigoroso na descrição das paisagens, ele que tinha na savana a planura rasa e fulva onde toda a pretensão de palavrosa minúcia se deita para morrer –, ao cimo dela, abrindo-se a dita península como a barriga do Chianti, para os Alpes, ficava a terra dos seus antepassados, de alguns dos seus antepassados. Os olhos, que eram enormes, brilhavam com gozo e a tez de Zefanias enrubescia.

Alguns antepassados… Recolocava a voz, enrouquecida na ênfase da ressalva aos ancestrais, e emborcava rápido um gole de vinho rasca, murmurando, pesaroso, enquanto espargia algumas gotículas vermelhas pelo
chão: “Precisávamos de uma Idade Média.”
“Resta-nos a fortaleza”, suspirava.
Calculo que a audiência projectasse para si a imagem do fortim modesto, ali nos antigos pauis da baixa, de Nossa Senhora da Conceição chamado, ex-paliçada de madeira e mosquitos, presídio de todos os desgarrados e aventureiros, mais alpendre do que mastro e bandeira de soberanias perdidas. Eram sempre ao fim da tarde estas desconversas e o bar, um barracão improvisado de dumba-nengue, aquiescia em ouvi-lo, ao nosso Zefanias, ele envergando o seu tweed coçado nas invernias de Agosto, espaço suando e fedendo se o tempo era o das chuvas e dos calores subtropicais. Digo subtropicais porque Zefanias empertigava-se de rigores sempre que se falava de geografias, paralelos, graus, continentes, córnios, unicórnios ou Capricórnios.

“A espada da história decepou as estátuas!…”
“Puta que pariu as estátutas, Zefanias!”, ouvia-se quase em coro. E ele ria. Suspirava sem saudosismo, mas por ímpeto de uma monumentalidade cujo peso, perfil, sopro, lamentava-se, só percebia nas tardes tempestuosas, quando as bátegas e o som da trovoada arreganhavam a copa majestosa das mangueiras. E discorria sobre os condottieri… que não, qual mercenários sem escrúpulos ao serviço de senhores!
“Que sabem vocês dessas batalhas?”, perguntava, furibundo, à plateia de bebedolas. A alusão à fortaleza ocorria-lhe sempre que descia à city e pastava as suas falagens num tasco esconso e sebento lá para os lados das Oficinas Gerais. Ao menos ali, onde tudo ruíra, o rendilhado partido das janelas, sujas das caganitas dos pássaros, lembrava o Tempo, o dos operários, ajoujados à massa oleosa das grandes máquinas a vapor, esses animais do progresso que eram – tinham sido? – os Caminhos-de-Ferro.
“Mas, afinal, o que é que tu és, a estilar ao italiano?”
“Sforza, seu macua do caniço!”
“Café com leite!”
“E com muito gosto!”
Zefanias soerguia-se do banco e fazia uma vénia.
“Messere Silva, retire-me esta Laurentina choca e sirva-me um galão, um galão equilibrado, metade leite, metade café.”
“Messere, uma porra, ó Zefanias! Queres da tua cor, é isso?”
“Na justa medida”, respondia o nosso homem.

Devo confessar, amigo leitor, que a possibilidade de uma personagem como esta, um Zefanias Plubius Sforza, natural de Maputo, se descontarmos outras designações, este Zefanias que sofria de fortes afrontamentos de passados remotos, com um apelido deveras improvável, se afigura difícil para a escorreita composição desta noveleta.

O que será uma personagem? Se é uma máscara ou imitação compósita de pessoas que encontramos na chamada vida real…
“Não há vida real”, escarmentava o Zefanias, “o que é vida real no ahoje é ahoje já será passado amanhã e qualquer molwene falará desses idos conforme sua conveniente camaleonice.”
… isso da vida real não será sempre uma escolha, um ponto de vista, um concentrado de características repescadas aqui e ali?
“A tua escolha sou eu!”, esforçava-se por trovejar, mas a voz saía-lhe desigual, numa mistura de agudos e alguns roncos nada abonatórios para um Sforza.
Nem sei como tal apelido desembarcou no Cais Gorjão.
Mas essa questão dos nomes fica para mais tarde, que o nosso Zefanias não gosta de misturar as coisas.
“Para misturas basto eu”, vangloriava-se.

Morava no que fora um chalet, na Avenida 24 de Julho, quando os tramways subiam a D. Carlos, depois Manuel de Arriaga, agora Karl Marx, dobrando a Central Eléctrica e subindo, chiando, extenuando-se.
“A 24 de Julho é uma avenida coerente”.

 

Verdade que a frondosa via, que atravessava a cidade a meio, na sua parte alta, desenrolando-se desde o bairro da Polana ao Alto Mahé, mantivera a mesma designação.
Nome desde o antigamente por causa da sentença do Marechal Mac-Mahon sobre os territórios da Catembe, defronte da baía, que Sua Majestade britânica reivindicava à dita soberania portuguesa e que assim se manteve por ter sido essa a data das famosas nacionalizações, loguinho mesmo a seguir à independência. Zefanias, que não era dado a sinuosidades semânticas, classificava como mesmura essa teimosia toponímica, alheio a manifestas incoincidências políticas. Nunca lhe consegui uma explicação para o termo.
O dito chalet, verdade seja, tinha mais de evocação do que de estatuto, relíquia de uma certa belle époque cujos perfumes cruzaram os oceanos, dobraram o Cabo e aportaram na cidade. Aqui uma frontaria em arcos, lavrada, uns muros à inglesa, colunatas modestas, um e outro hotel junto ao porto, o can-can de algumas vaporosas francesas. Mas a cidade era na baixa. Nos altos, que Mouzinho de Albuquerque ainda subira a cavalo poucos anos antes com medo das emboscadas, a zona fresca propiciava as casas avarandadas onde uma burguesia sempre apavorada com a biliosa mas a prosperar podia dizer que pegava na lancheira e ia para o campo. Poucos sobravam, quase nenhuns, diga-se a verdade, ora substituídos ou acrescentados, ora vergastados pelo tempo.
Zefanias morava numas sobras a lembrar, diz o chavão, pequenas glórias passadas, remansos de almoçaradas estóicas, namoricos nos quintais pejados de árvores de fruto, frissons exacerbados pelos humores quentes do clima. “Se julgas que vais contar a minha estória com as mesmas palavras com que me fazes as perguntas, olha que te canho, canho mesmo!” E apontava, “aí, nessa tíbia torta! Palavras de cinquenta paus tive eu maningues mas as notas não têm aquele som das duzentinhas. Papel só serve para rasgar”.
Espantava-me a sua variação de humores, resvalando para um calão que, noutras circunstâncias, sei que nunca pronunciaria.
Zefanias, Zefanias Plubius Sforza, que idade?
Quando a chuva diluviana desabava sobre a cidade, alagoando os caniços, o nosso homem rejuvenescia. Desapareciam-lhe as rugas da testa, aparentava a idade que dizia ter.

 

“Trinta e cinco anos, quatro mulheres e oito filhos.”
Na canícula, parecia que se lhe dobravam os anos. Nunca saberei data certa de nascimento, nem qual dos Zefanias seria o verdadeiro. Tantas vezes, como que possuído, esbracejando poeiras e odores como quem procura espíritos, do resmoneio em lengalenga, a voz, como uma aparição, tomava-se de tons graves, o rosto encarquilhava-se, furioso, e o pai, o saudoso Zefanias Sforza, ressurgia -lhe na plenitude do seu passado, da sua morte transfigurada.
É minha convicção de que escrevo sobre o filho, já que ao velho Zefanias, sem Plubius de permeio, todos o conheceram como um empedernido ateu e positivista.
Tudo isto pode parecer um confusionismo de narrador incompetente, mas a verdade é que em terra de espíritos, sendo os de cor verde os mais deletérios, melhor é ir avançando com cautela nestes episódios que fui ouvindo.

“Admiras-te das mulheres? Pois te digo que nunca fui polígamo, cada uma se sucedeu à anterior, mesmo se às vezes se cruzavam em coincidências. Uma mulher está sempre a marcar presença. Os sacanas dos brancos gostam de bazófias moralistas. Eu via. O Joe Pizzas a trinchar bife à Sheik com a loiraça de sexta feira, enlaçado à Dona Mercês no cinema de Sábado, na praia com a Mitó, uma mulatona de gritar aleluias ao bom gosto de Deus…”
Zefanias, não estás a confundir os tempos?
“Quais tempos?!”
Os do colonialismo e os da independência?
“Raios parta os tempos! Sou um epiconista! Nem os gajos nunca souberam o que isso é”.
Pelo que, dadas as circunstâncias, a possibilidade de Zefanias Sforza é a de alguém com genealogia. Toda a pretensão é da sua responsabilidade, mas como não tê-la quando aqui tudo é demasiado recente, sem patine? E não me refiro só ao verdete no bronze. Ou ao bronze, tão parco. Basta olhar para as casas. Das linhagens dos chefes mais antigos diluíram-se os vínculos e é preciso sair da cidade para se encontrar, e louvar, imprecar às vezes, alguém de quem possamos ter a certeza ser um descendente de antigo guerreiro, resistente. Merecerão todos eles a louvação? A posse e demarcação do que foram os matos, os sertões calcados de ambições, flibusteiros, batalhas e traições, essa pele tensa onde as vozes fazem vibrar as suas narrativas, pele escarificada pela fúria das lanças e o estampido das espingardas, tudo isso é o vinco da derrota, de uma certa derrota.

A cidade, essa missanga grande, esse vidrilho, esse espelhinho delicado, forrado de seda, com que se tentava entreter e seduzir as mulheres grandes para que estas amaciassem as decisões dos dignitários da terra, tudo isso se diluiu neste traçado, lugar de desembarque e depois de muitos desenhos por onde correm as gentes e as coisas.
Penetremos, pois, nesse colar multicolorido, afagando-lhe algumas das contas, as de um certo e improvável Zefanias Plubios Sforza, um moçambicano com qualidades.
“Zefanias, que dia é hoje?”
“Trazes a caderneta?”
E a malta ria-se.
“Olha que para viajares da Mafalala à Polana precisas de salvo-conduto…”
“Vocês sabem que nos tramways, ou no machimbombo,
já não sei bem, esse mulato descarado nunca se sentou no banco de detrás?”
E nunca andou de bicicleta. “A bicicleta é para os magaíssas”, dizia.
“Zefanias, não apareças, que hoje já choveu”.
“Indígenas de merda!”

 

Ilustrações de Margarida Botelho

Canção de Zefanias Sforza, de Luís Carlos Patraquim, pela Porto Editora / na capa do livro uma pintura de Roberto Chichorro

por Luís Carlos Patraquim
Mukanda | 22 Junho 2010 | Literatura, Maputo, moçambique