O homem com solas de poeira

O poeta escolhe, elege, na amálgama do mundo,
aquilo que precisa de preservar, cantar, salvar, e que está de acordo com o seu canto.
E o ritmo é tanto força ritual quanto alavanca de consciência.

 A’intenção poética  Edouard Glissant

A alusão parcial a Rimbaud não é desgarrada porque, apesar do percurso artístico de Paulo Nazareth ser oposto ao percurso rimbaudiano, há um fio vermelho que os une: a arte do passeio e o gosto pela deambulação que os conduzirão aos dois até África. O primeiro constrói as suas armas poéticas, fazendo gazeta e depois vagabundeando; o segundo aliou a sua arte à da marcha tal como um colecionador que junta ex-votos encontrados no caminho e vai beber nas suas raízes mestiças toda a força e a beleza ancestrais que ele transmite na sua obra, pelos gestos e ações libertas a partir daí de todos os floreados.

O lugar mítico que forja a sua epopeia é a sua cidade natal - Palmital - situada numa região periférica de Minas Gerais no Brasil, na qual os homens, para fugirem a uma vida de austeridade, se tornam mão-de-obra barata para os países do norte para onde eles se exportam em massa, tornando-se imigrantes clandestinos baratos. Depois de ter sido convidado para uma residência em Nova Iorque, Paulo Nazareth decide, 
antes de se dirigir para lá, atravessar toda a América latina, levando consigo a poeira dos países do sul para acabar por lavar os pés no rio Hudson.


“Mi concepto de patria todos los dias se expande… nascido en Brasil soy latino américano, siendo latino américano soy tambien mexicano… soy parte de cada tierra por donde pisaron mis pies… no hay como séparar estas tierras con una linea imaginaria llamada frontera… “

Após 13 meses e 7 dias de itinerância, cujo percurso foi marcado por muitos encontros, chega demasiado tarde à residência, mas expõe algum tempo depois, na Art Basel de Miami Beach, uma carrinha de bananas à qual chamará Banana Market/Art Market. A força da obra de Paulo Nazareth reside no facto da sua arte parecer afastada das convulsões históricas e económicas do mercado da arte. Ele transcende os códigos da arte para impor um novo sistema de valores de julgamento que contrasta com aquilo que se espera da chamada arte da América Latina.

As questões raciais, geográficas e históricas são o cimento da obra de Paulo Nazareth que, no seu percurso artístico e quase antropológico, não cessa de questionar a identidade e a memória do homem mestiço face à história.


Com  cartazes de mensagens provocadoras que exibe nas suas fotografias: Vendo mi imagen de hombre exótico (Vendo a minha imagem de homem exótico) How is a color of my skin ? (Qual é a cor da minha pele?)  I clean your bathroom for a fair price (limpo o seu quarto de banho por um preço baixo) 1 rupper for who can guess the country i am from (1 rupper para quem adivinhar qual é o meu país de origem). Estas mensagens são o testemunho das suas performances em que nestas viagens ele contraria a população submetendo-lhe um questionamento que provoca um olhar equívoco. Este entrecruzamento genérico é um desafio essencial para quem tem raízes indígenas, africanas e europeias. A sua mestiçagem permite-lhe deslocalizar-se do seu lugar de origem. Para lá da problemática, coloca o homem mestiço como referente simbólico que nos remete para os nossos próprios fantasmas, para as nossas crenças ou dúvidas, questionando  a percepção que temos do outro. Esta prova do olhar cruzado desloca os desafios, dando-lhe um sentido completamente diferente, mais violento, que confronta o nosso pensamento ao mesmo tempo que nos obriga a desconstruir os dispositivos de domínio.

 
Ao jogo “eu é um outro” que Paulo Nazareth parece jogar, e ao qual acrescenta de forma maliciosa “onde eu não é completamente aquele que se pensa ver”, pode inverter-se uma forma de assimilação em que “o outro é eu”. Este outro que Paulo Nazareth tenta mais incluir do que reprimir. Enquanto artista antropólogo, força o encontro de diversas culturas e modos de pensamento, apoiando-se num eu não definido que será ainda preciso delimita e traçar. A ambiguidade identitária deste corpo em movimento que atravessa as fronteiras e faz explodir os limites geográficos chega a criar o seu próprio espaço-tempo. Desta mutação corporal à apresentação da performance, ligando-se ao país em que se realiza, ele põe em prática a fórmula de Claude Levi-Strauss “para conhecer e compreender a sua própria cultura, é preciso aprender a olhar do ponto de vista do outro”. Aquando de uma performance na Índia em que deambulou pelas ruas levando “água gratuita” num pote típico da sua região às populações autóctones, quis realçar a importância do olhar que os estrangeiros  - entre os quais ele próprio - têm face a um país dito exótico que só conhecem através dos guias turísticos, aconselhando ou contra-indicando as atitudes a adoptar. No caso da Índia, é proibido beber água da torneira, o que também acontece no Brasil, por isso, oferecer água mineral num pote da sua região é fruto de uma tentativa de aproximação entre as duas culturas.


E aí reside efetivamente o desafio da obra de Paulo Nazareth; só existe através do prisma de outros modos de vida de outras sociedades das quais ele vai ao encontro, ultrapassando os limites de certos conceitos ligados à identidade. A sua identidade é a introspeção de um eu arcaico, não delimitado e que é um retorno a um estado primitivo do sentimento do eu. Muitas fotografias mostram-no ao lado de populações diversas e variadas que encontra ao longo das suas peregrinações. A sua cor de pele é a paleta de uso, cujos tons modela em função dos seus encontros e dos lugares onde está. Ao lado de um negro, de um indígena, de um brancoo será mais negro, mais indígena, mais branco?

Com essa história de ser mestiço e viajar por América, mudo de cor todos os dias… Tem dia que sou niger/preto/negro, mas não posso abrir a boca porque assim posso mudar de cor, tem dia que sou árabe, paquistanês, índio e outros tantos adjetivos que podem mudar de acordo com os olhos dos outros e as palavras da minha boca. Seja como for, às vezes nos Estados Unidos da América, quando eu entro em lojas de « brancos » todos ficam com medo, incluido eu.


Esta identidade encenada enche-se plenamente graças à fricção do corpo e da sua percepção dos outros. Basta fazer emergir um terceiro-espaço em que a identidade subjetiva e subversiva se possa exprimir. Este terceiro-espaço torna-se uma dimensão imaginária da sua arte em que a multiplicidade dos olhares é possível.


A sua arte é o produto puro daquilo que Edouard Glissant já reivindicava nos seus textos: criar uma identidade-rizoma para “escapar ao olho do mestre”. Para o poeta

“Enquanto não se aceitar a ideia, não apenas no seu conceito, mas pelo imaginário das humanidades, de que a totalidade-mundo é um rizoma no qual todos têm necessidade de todos, é evidente que haverá culturas ameaçadas. O que quero dizer é que não é pela força nem pelo conceito que se protegem estas culturas, mas pelo imaginário da totalidade-mundo, ou seja, pela necessidade vivida deste facto: que todas as culturas têm necessidade de todas as culturas”.

Paulo Nazareth desenvolve a sua própria cosmogonia, propondo uma arte que englobe os conceitos de hibridação e que chegue até à prática de uma arte antropófaga, reminiscência do pensamento dos anos 20 posta em prática pelos artistas dos anos 70, mais concretamente pelo movimento Tropicalista. Na praxis artística de Paulo Nazareth, transparece aquilo que Oswald Andrade reivindicava no seu manifesto antropófago “As migrações. Fugir dos Estados aborrecidos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o aborrecimento especulativo… No matriarcado de Pindorama. Contra a memória fonte do hábito. A experiência pessoal renovada”.

O seu corpo é a sua obra, suporte pronto a comer e a digerir as suas próprias doutrinas. Como nas fotografias em que o vemos a comer os cabelos ou em que tem uma cabeça de vitelo ensanguentada sobre os seus joelhos. Noutras, vemo-lo com um cacto fixado à cabeça ou deitado e a sua cabeça a desaparecer na água ou sob um monte de pedra… Ora animal, ora vegetal ou mineral. Paulo Nazareth transcende a reflexão sobre a relação entre a natureza e a cultura. A sua abordagem etno-sociológica não tenta circunscrever as fronteiras, passa por cima delas, fazendo apelo às sobrevivências da memória histórica.

Quero fazer o caminho da África (…) desde África do Sul… à Londres (…) não piso na Europa sem passar por África. Gostaria de pensar nessa relação com a Holanda. Recife… Holanda, isso me faz ligacões com África do Sul… Colônia holandesa… Africanes. Cabo Verde por exemplo, foi colônia portuguesa até 1975, dois anos antes de eu nascer… assim costumo marcar as minhas referências de história, tem o português para a burocracia e o criolo para o cotidiano, aí dizem que antes era uma espécie de depósito, porto, onde chegavam os escravos que seriam mandados para os Estados Unidos, Brasil e as ilhas e costas caribenhas, como Cuba, Vera Cruz, México, Costa da Guatemala, e onde mais necessitavam escravos.


A arte está aí, na rua, no quotidiano, tudo é “arte” ou for sale como afirma Paulo Nazareth nos seus cartazes. A sua arte - simples e poderosa - é participativa e todos, por sua vez, se podem tornar criadores. Tal como Marcel Duchamp, ele afirma uma ética da resistência face à comercialização excessiva do mundo. Conduz-nos a gestos e ações simples como resgatados de um tempo passado. Como o define tão bem o professor Janaina Melo; 

O que vemos é uma oferta outra, uma volta de impossibilidade. Escapa a apreensão total, pois tudo é fragmento e pode apenas ser recordado porque foi vivido. Se existe algo é a poeira que se mistura nos pés como uma métafora de todas as migrações. Por isso não procurem em Paulo fotografias, performances ou ações. Se deixem vir e ficar, a fim de poder percorrer toda a variedade de lugares, não para apreender o que está determinado como arte, mas sim, toda uma variedade de tempos, procedimentos, sabores, cores, luzes e estações.


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por Joanna Espinosa
Corpo | 31 Março 2013 | arte latino-americana, identidade, racismo