Obra do sonho e de uma tragédia - Moçâmedes

 

Moçâmedes 1849

Bernardino e Soriano, dois homens antes do seu tempo, erguem a missão quase impossível de colonizar Moçâmedes, terra inóspita numa Angola que inspirava fascínios e medos.

Com eles cruzam-se Benedita, Peter von Sternberg e Kpengla, as figuras imaginárias do romance histórico de João Pedro Marques, Uma Fazenda em África.


Pernambuco 1848.

A tragédia dos portugueses numa noite de ataques indiscriminados na onda de violência de que estavam a ser alvo juntou-se ao sonho de um homem, Bernardino de Figueiredo, de criar uma “coisa espantosa” em África.

Juntos, tragédia e sonho lançaram a primeira lança em Moçâmedes, Angola, transformando a chegada dos primeiros portugueses a esta terra quase deserta num desses acontecimentos que entram nas páginas muito pouco conhecidas da História e que, por isso mesmo, interessam ao historiador e escritor João Pedro Marques (n. 1949, Lisboa). Uma Fazenda em África, o segundo romance histórico deste autor: 

“Tenho atracção pelas partes da História que são tão histórias como as outras, mas que ninguém conhece”, diz-nos João Pedro Marques a poucos dias de apresentar o livro no festival Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim, na semana passada. “Tenho interesse em fazer isso para conhecimento público, porque é tão histórico como o resto. Na vida das pessoas comuns também há muitas coisas interessantes, tão interessantes ou mais do que na vida dos reis.” Como em Os Dias da Febre (2010), o seu primeiro romance, em Uma Fazenda em África, João Pedro Marques entrelaça a vida de personagens reais e ficcionais na epopeia iniciada com o embarque em Maio de 1849 do primeiro navio de Pernambuco, carregado de gente sem dinheiro e cheia de esperança, para o “tapete de pedra e areia” junto a uma “baía em forma de ferradura”, transformado em terra de acolhimento no Sul de Angola.

Moçâmedes é a verdadeira “lança em África”, nas palavras do escritor. “Tem interesse num contexto de desinteresse geral”, acrescenta. O desinteresse vem da própria metrópole, num tempo em que o primeiro-ministro era o ministro do reino de D. Maria II e nas Cortes predominavam os deputados cépticos, que queriam manter as colónias, mas não para as povoar ou nelas investir.

Peter von Sternberg, Benedita, as duas amazonas e guerreiras Kpengla e Adadine, unidas pela paixão, separadas pela morte, no reino do Daomé (antigo Benim), são personagens de ficção que nascem da investigação histórica e surgem na grande tela servida por este acontecimento histórico, como em Os Dias da Febre.

Nesse primeiro romance foi buscar à epidemia de febre amarela (que atingiu Lisboa em 1857 e matou cinco mil pessoas) a grande tela para sobre ela contar uma grande paixão. Em Uma Fazenda em África a paixão é mais difusa e desencontrada. Não é única. Vários amores se cruzam e têm em pano de fundo uma mais vasta ainda que só de alguns paixão por África.

A ideia de criar uma colónia brota da cabeça do sonhador Bernardino, português em Pernambuco (que depois de uma aturada investigação escolhe Moçâmedes pelo clima mais fresco e a compara a uma “Sintra de África”), e encontra eco nos desígnios de outro entusiasta, este na metrópole, Simão da Luz Soriano, funcionário do Ministério da Marinha e do Ultramar, que acreditava, como poucos, que a salvação de um Portugal arruinado estava nas distantes colónias de África e Ásia, sendo possível ao país regressar ao esplendor dos tempos heróicos.

Modernizar Portugal

Bernardino (miguelista) e Soriano (liberal) existiram, como é real a maioria dos personagens deste retrato de uma parte da História no século XIX palco de um pacífico confronto de ideias entre entusiastas e os predominantes “cépticos” ou “reservados”.

Para estes, o país tinha outras prioridades, sendo a primeira delas modernizar Portugal, construir caminhos-de-ferro e estradas, melhorar a vida das populações, canalizar meios para as terras nacionais, como o Alentejo mas mantendo as colónias, porque a isso estaríamos, segundo eles, obrigados historicamente.

“Para estas pessoas, tínhamos que preservar as colónias ainda que nos custassem dinheiro, porque estava lá investido o sangue dos nossos antepassados, estava lá investida a nossa honra e a nossa história. Mas não tínhamos dinheiro nem meios para as manter nem para as povoar”, explica João Pedro Marques.

As notícias que chegam de Pernambuco mudam a visão dos acontecimentos e Lisboa decide apoiar a ida de cerca de 300 pessoas em dois momentos diferentes para erguer a colónia.

Vítima e heroína

E essas notícias descrevem os ataques que, numa noite do final de Junho, levam à morte de pelo menos 20 pessoas. Entre elas estão os pais de Benedita, vítima e heroína nesta história. Mergulhada no desgosto, casa-se com um agricultor que mal conhece e deixa-se levar nesta aventura.

Personagem central, encarna a ansiedade de todos os que entraram no navio Tentativa Feliz com uma imagem idílica do seu destino e saem incrédulos perante a visão oposta da realidade. “É isto Moçâmedes, sr. Figueiredo?”, perguntam. “É isto a Terra Prometida?” Tinham deixado para trás o pouco que lhes pertencia, suspendido a vida, e estado dois meses e meio em alto mar, cruzando o Atlântico, no percurso inverso ao que durante séculos tinham feitos os escravos.

Pernambuco 1849. No dia do embarque, 23 de Maio, Bernardino de Figueiredo dissera-lhes: “Gravem esta data a fogo nas vossas memórias e nos vossos corações. (…) Vamos para uma terra imensa, cheia de frondosos bosques, banhada por grandes rios e coberta por um sol criador.” Nessa época, Angola era apenas povoada na costa (Luanda e Benguela) e nos caminhos pelo interior onde os portugueses erguiam pequenas fortalezas e os negreiros negociavam a compra de escravos, antes de os levarem para a costa e os embarcarem em navios para o Brasil e as Américas.

Os portugueses que chegaram no Tentativa Feliz constroem tudo do zero, sempre com uma esperança de receberem apoio de Lisboa e o sonho de melhores dias com uma esperada chuva que chegue para desafiar a seca.

Persistem no sonho que falha. Mas fazem Moçâmedes “devagarinho”, diz João Pedro Marques.

Só no final do século XIX, o interesse pelo continente, entretanto visível em franceses, belgas, ingleses e dinamarqueses, desperta em Portugal a urgência de povoar e investir nas colónias.

E a colonização que se inicia nesse tempo é muito diferente.

“São pessoas que vêm com o vapor. Associe-se isso às evoluções técnicas da época, o barco a vapor, o caminho-de-ferro, a medicina que progride, há uma aceleração histórica. Há uma forma de viver que é mais rápida e mais ávida”, nota o investigador.

Moçâmedes acontece muito antes das campanhas militares de Paiva Couceiro e Mouzinho de Albuquerque em Angola e Moçambique e das expedições científicas e geográficas de Serpa Pinto, Roberto Ivens, Brito Capelo; e antes da corrida das potências europeias às colónias, da Conferência de Berlim iniciada em 1884 e do “mapa cor-de-rosa” proposto em vão por Portugal para ficar com a faixa que atravessa, de um lado ao outro, o continente africano, juntando Angola e Moçambique; numa época em que não havia certezas na medicina e na ciência, e a grande maioria sucumbia às doenças no primeiro ano de permanência; num tempo em que não havia formas de transporte, perante a falta de rios navegáveis e caminhos-de-ferro, e em que Angola evocava o medo e, ao mesmo tempo, o sonho. Para uns, era “morada das febres”, onde “o Diabo brinca” com as pessoas; para outros um “Jardim do Éden”.

Nessa época, iam para África, terra de degredo, os condenados ou os sonhadores, como o alemão Peter von Sternberg, que inicia uma viagem em busca de um sentido, movido pelo “fascínio por África” “viajar em África era como viajar num passado heróico, com as exigências e as dificuldades que a modernidade europeia já tinha esquecido” num plano ficcional que cruza, numa viagem a partir da Alemanha, e cruza o plano histórico.

No reino do Daomé, é a guerreira Kpengla que o salva do horror que era viver em Abomé, capital do reino, para onde Peter von Sternberg é conduzido para fazer propostas de negócios aos chefes locais, em nome de Lisboa, e onde encontra um mundo povoado por bandos de morcegos e onde eram diárias as decapitações em honra dos antepassados.

Mais tarde, é ele quem resgata Kpengla de um caminho voluntário em direcção à morte, pagando para a salvar, numa evocação dos negreiros que compravam os escravos para os libertar ou juntar famílias potencialmente divididas pelas transacções.

“Nem todos os negreiros eram tipo horríveis”, continua João Pedro Marques. Uns eram caridosos, como Félix de Sousa, que existiu na realidade e existe no livro que retrata o negócio da escravatura como uma teia da qual não se consegue sair.

Diz o autor: “O meio de viver era aquele. Foi muito difícil abolir o tráfico de escravos, em certas zonas, porque as pessoas não tinham alternativas económicas.” Europeus e africanos, estes últimos que se apoiavam na venda de escravos para, em troca, receberem tecidos e aguardente, armas e pólvora, sobre as quais assentava o seu poder.

A abolição do tráfico de escravos foi tema da tese de doutoramento de João Pedro Marques na Universidade Nova de Lisboa, onde foi professor de História.

Investigação e escrita

A investigação para este livro coincidiu em parte com a pesquisa que o académico e investigador desenvolveu no Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa, onde esteve 20 anos a partir de 1987.

O investigador converteu-se entretanto em escritor. O livro, embora só hoje lançado, está nas livrarias desde finais de Janeiro.

Já vai na terceira edição (com um total de 10 mil exemplares) e está no Top 3 das vendas em três livrarias de Lisboa Bulhosa, Bertrand e Corte Inglês, e no Top 10 também no Continente, segundo dados da Porto Editora.

 

publicado originalmente no caderno P2, jornal Público

por Ana Dias Cordeiro
Cidade | 7 Março 2012 | colonização, Moçâmedes, namibe, viagem