Quando a palavra fere mais que a lança, entrevista a Azagaia

Já foi acusado de incitar à violência. Processado pela Procuradoria Geral da República. Preso horas antes de um concerto para o lançamento de um novo vídeo clipe, há cerca de 20 dias. Chamado de Edson Mandela, difamado na capa dos jornais, aclamado pelo povo. Com músicas provocadoras e políticas, Azagaia, o principal nome do hip hop moçambicano, tornou-se herói para o povo e ameaça para o governo.

Em 2009, envolveu-se numa polémica durante um concerto em Luanda, depois que uma plateia ensandecida, incentivada por uma música que ele estava a cantar, começou a gritar palavras forte contra o Presidente da República – na altura, até andaram a dizer que ele teria sofrido uma tentativa de atentado, algo que o próprio músico desmentiu.

Não é a toa que o músico Edson da Luz, de 28 anos, conhecido como Azagaia, é o principal – e mais polémico – nome do hip hop moçambicano na actualidade. Com letras fortes, ácidas e belicosas, é uma das poucas vozes a criticar publicamente o sistema político e a sociedade do seu país através das suas músicas. Por esse motivo, tornou-se uma espécie de herói do povo e uma ameaça do governo. “A boa aceitação da minha música é a prova viva de que as pessoas querem falar, querem se expressar, só têm é medo”, diz o músico.

Desde que iniciou a carreira solo, em 2007, Azagaia lançou um álbum, intitulado Babalazi (que significa ressaca na sua língua materna), e diversas músicas e clipes single. Até ao final do ano deve lançar Kubaliba, seu segundo álbum.

No dia 30 de Julho, Azagaia faria, no bar Gil Vicente, em Maputo, o lançamento do vídeo clipe “Minha Geração”, mais uma música com forte crítica social, em que diz versos como: “Eu sou da geração que não deixa o nó da gravata prender o grito de liberdade que explode na garganta.” Algumas horas antes do concerto, ele foi preso na cidade de Maputo acusado de porte de maconha, num episódio apontado por muitos como armação política, já que a droga não estava com o músico, mas sim com um colega dele, e em quantidade inferior àquela necessária para acabar em prisão. Depois de 48 horas detido, foi libertado e aguardará julgamento em liberdade.

O concerto de lançamento da música foi realizado cinco dias depois, na mesma casa de espectáculos. Além de cantar seu repertório básico, o músico – provocador como sempre – cantou uma canção composta na cadeia, em que ele falava que foi preso e vai ser julgado, mas, pelo menos, não havia subornado a polícia. O episódio da sua prisão deu a Azagaia ainda mais notoriedade no país – sua prisão era o assunto mais comentado naquela semana – e também fora de Moçambique. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por Azagaia.

O título do seu último clipe, lançado no fim de Julho, é “A Minha Geração”. Quem é, o que pensa e como age a sua geração?

É uma geração que tem os pés no chão, porque é formada por gente que todos os dias tem que se deparar com as dificuldades da vida. Não temos padrinhos, não somos família de gente que está no poder, temos que lutar todos os dias pelo pão. É uma geração que está mais ligada à sobrevivência, mas que percebe que não dá para viver dessa forma, só a lutar para ter o que comer. São jovens que querem alguma segurança, que querem alguma direcção também. Que percebem que estamos a caminhar para o precipício, porque temos cada vez menos valores. É uma geração que até vive com saudade de um tempo que não viveu, numa altura em que se respeitava mais as pessoas, que havia um pouco mais de ordem, de tranquilidade, embora existissem outros conflitos. É uma geração que procura resgatar esses valores. São valores da altura do socialismo, da época do Samora Machel.   

Vivemos hoje num tempo em que não existe igualdade. Talvez não exista igualdade de oportunidade em lado nenhum, mas aqui a diferença é muita e o jogo está muito claro… ou te alias àquele ou àquele outro que estão no poder nunca sai do lugar. E é contra isso que minha geração está a lutar. Temos que ter o direito de poder afirmar os nossos ideais sem ter que estar aí a lamber as botas dos poderosos.

 

Quando começaste a produzir música?

Sou fascinado por letras e sempre gostei de escrever. Comecei a gostar de literatura aos 12, 13 anos e já nessa altura gostava muito do estilo do José Craveirinha, um poeta considerado herói nacional que fazia poesia de intervenção na época colonial. Apaixonei-me muito por aquela forma de luta e comecei a escrever.

Nasci numa zona de Moçambique chamada Namaacha , na fronteira com a Suazilândia, e vim para Maputo lá pelos 13 anos. Foi quando eu começo a ter contacto com o rap. Fiquei fascinado com a música urbana. Então, juntando com  aquela semente da intervenção social que já estava a nascer em mim foi um casamento perfeito.

E por que o nome Azagaia?

Quando eu tinha 17, 18 anos, formei um grupo musical chamado Dinastia Bantu.  Éramos uma dupla: meu parceiro era o Escudo e eu, o Azagaia. Tinha tudo a ver, a azagaia, que é a lança e o escudo, o ataque e defesa. São objectos que identificam muito os bantu, são armas de guerra. E como nossa música era música de intervenção, mesmo que não contundente naquela época, escolhemos esse nome. Queríamos fazer música africana para os africanos e esse nome era muito ligado à nossa cultura. O grupo Dinastia Bantu não permaneceu por muito tempo, mas, quando decido começar minha carreira solo, opto por manter o nome Azagaia. Só que naquela época não imaginava que ia me tornar um músico de intervenção social tão contundente quanto uma azagaia. De certa forma, boa parte das escolhas que eu fiz acabaram me moldando também. Em 2007, lanço o meu primeiro álbum, Babalaze, que significa ressaca, e acabo ficando conhecido como músico de intervenção social com uma mensagem mais contundente. A partir daí, a cada momento que passa vou me tornando mais o azagaia que eu sou, vou ganhando a forma e a força dessa arma.

 

Como é fazer crítica social em Moçambique?

Não é fácil. Nós, moçambicanos, passamos por vários traumas. A colonização, depois a guerra pela liberdade, a guerra civil e hoje em dia essa guerra que a gente vive todos os dias que é o custo de vida. Então hoje as pessoas têm muito receio de conflitos e, por causa disso, preferem ficar caladas. Preferem deixar passar o que está errado e preocupar-se apenas em conseguir o seu. E é nesse contexto que se faz música de intervenção social em Moçambique. É difícil ter apoios, quase sempre tem que ser tudo à base de amizade. O sistema em si promove mais aquela musica fácil, que é mais para dançar, mais para descontrair, que as pessoas não têm que parar para reflectir.

Dentro desse contexto, onde entra a cultura?

A produção artística é afectada, já que os artistas de verdade não têm apoio, pois não entram naquele jogo da imagem, de parecer bonito. Temos sempre a mania de querer esconder o que nos dá vergonha em vez de tentar resolver. Aqui em Maputo houve um fenómeno que chamamos de o “muro da vergonha”. Temos um grande aterro, uma lixeira, que encontra-se em uma vendida diplomática, em que passam muitas escoltas. A lixeira está do lado de um bairro e muita gente vai lá pegar lixo. E houve uma cimeira aqui dos chefes de estado do CPLP que, por causa dela, mandaram construir um muro para isolar essa área, de modo que as pessoas que passassem por essa via não pudessem ver ali a pobreza. Isso é um exemplo de como nós preferimos viver.

 

Que temas mais te fazem reflectir hoje?

Educação. Liberdade de expressão. Identidade. E modelos de desenvolvimento também. O que nós queremos ser? O que vamos chamar de desenvolvimento do nosso país? Acho que é interessante essa pergunta. É termos mais prédios de vidro e anúncios luminosos ou menos crianças na rua, menos meninos de rua, educação de menos qualidade? Nem que seja andarmos a pé, mas pelo menos ter o mínimo. Eu pauto-me mais por esse segundo, mas há gente que acha que não, que é mais pelo primeiro. Acreditam que é melhor criar uma elite que depois vai levar o resto. Na verdade esse foi o grande pensamento revolucionário. Quando o colonialismo acabou, tentou-se criar uma elite moçambicana, que teria a função de puxar o resto do país. Deu-se dinheiro e poder a algumas pessoas e elas caberia criar empresas, empregar moçambicanos e fazer a coisa andar. Mas, infelizmente, essas pessoas  foram facilmente corrompidas e o projecto falhou. Claramente. O projecto falhou, mas não se mudou a maneira de agir. É uma falha. Essa coisa de criar uma elite que vai governar o resto do país é uma ideia que não funciona aqui.

No Brasil, na ditadura, os militares diziam que era preciso fazer crescer o bolo para depois dividir…

É exactamente isso que se foi feito aqui. Criamos capitalistas negros. Tiramos quem estava no poder e o que aconteceu foi que substituímos as pessoas, mas mantivemos o sistema. O sistema colonial que, na verdade, é de exploração, mudou muito, mas continuamos a viver num sistema de exploração. Hoje ou exploras ou é explorado – e toda a gente luta para estar no lado do explorador. Ninguém acredita que podemos viver num mundo em que a lógica não seja essa.

 

Tu acreditas?

Acredito que podemos pelo menos ter consciência de que isso não está certo. Ninguém é perfeito. Mas se criarmos a cultura da exploração não vamos sair dela e há de haver cada vez mais gente descontente. É preferível promovermos uma cultura de igualdade e vamos tolerando um e outro caso de exploração, que é inevitável porque somos seres humanos, do que promovermos uma cultura de capitalismo selvagem e esperarmos que daí possa surgir alguma igualdade.  O caminho aí é muito mais longo. Temos que voltar a ter algum sonho, alguma utopia. Porque o nome já diz, né? A utopia é algo que nunca vai acontecer, mas é uma direcção. Mas nesse momento não temos direcção. É cada um por si, deus por todos. Esperar alguma ordem por cima disso é impossível. Não há ordem nenhuma. Vamos nos morder , vamos viver assim como canibais, um a tentar tirar maior proveito do outro para poder viver.

 

Nesse sistema desorganizado há pouco espaço para o debate?

Sim. Há cada vez menos debate porque promove-se muita alienação. A música e a arte promovidas aqui – se é que se pode chamar de arte – é arte da alienação, do superficial. Isso á para adormecer as pessoas. Claro, o pão e o circo não é de hoje.

Perguntarmo-nos porque fala-se tanto de crescimento económico e a vida não melhora. Isso exige uma reflexão, exige-se pensar num intervalo maior de tempo. Agora, quando se coloca toda a gente  a olhar apenas para o hoje, para o imediato, para o prazer, o estar bem agora, ninguém vai ter tempo de olhar para essas grandes análises. Porque se houver um tempo, mesmo que pequeno, para debater a realidade, as pessoas logo vão perceber que isso que estamos a viver não faz sentido.  

 

Por que sua música causa uma repercussão tão grande?

Acho que minha música é aceite e bem recebida porque é uma via de escape. É uma prova viva de que as pessoas querem falar, querem se expressar, só têm é medo de perder o pouco que conseguiram amealhar. As pessoas pensam: “aquilo que eu não posso dizer ele diz e, então, só o fato de eu apoia-lo é como se eu tivesse a dizer por mim mesma”. E olha que até agora não disse nada novo. Então imagine quando começar a fazer isso. Nesse momento, estou apenas fazendo um diagnóstico e abrindo os olhos das pessoas. Mas estou vai chegar uma hora em que eu não vou querer falar de fatos, vou querer falar de ideias; é para aí que estou a caminhar. A minha música agora será mais sobre ideias, alternativas, novas formas de estar. E as pessoas têm carência disso, de alguém sugira novas alternativas. Eu rogo para que amanhã não seja só eu que esteja a falar o que pensa. Seria muito bom que aparecesse alguém com argumentos fortes até para me contradizer, porque o debate é saudável. O problema é que nem isso acontece.

As pessoas não falam por causa da repressão ou pelo medo da repressão?

O sistema ta sempre a mandar recados, não é? Vocês, se atravessarem essa linha, pode vos acontecer isso. Por exemplo: o caso da G4S, uma empresa privada de segurança. Os trabalhadores estavam a reclamar dos salários que não eram pagos há muito tempo e então apareceu a policia de intervenção rápida e deu um chumbo de porrada neles à frente das câmaras, dos jornalistas e aquilo passou em todos os noticiários. Quer dizer, aquilo é um recado claro. As pessoas dizem: “eu não quero viver na pele nada parecido com isso”. Outro exemplo: o director da empresa tal fez um pronunciamento contra o pronunciamento oficial e de repente é destituído, já não é mais director. Então são esses pequenos recados que as pessoas captam e, por isso, já nem se atrevem e quem se atreve atreve-se muito pouco.

 

A sua prisão foi um recado?

(risos). Hum, acho que sim. Acho que sim. Pelo menos foi um recado para mim. E claro que vai ser um recado aos outros jovens também.

 

Um recado em que sentido?

Minha prisão foi muito mediatizada e acredito que foi por iniciativa das pessoas que me prenderam. Quiseram que a coisa fosse mediatizada. Há vários recados. Para começar, eu sou um músico de intervenção social e se apareço num escândalo da natureza em que estou envolvido isso claramente quer dizer aos outros que o vosso “herói” afinal de contas é vilão também. É como se quisessem cortar as minhas pernas. As pessoas estavam a acreditar em alguma coisa e eles pegam nessa mesma coisa e destroem. É como se estivessem a dizer: a pessoa em que vocês confiavam e achavam que era idónea não é nada disso do que vocês pensam, então deixem de estar com essa ideia de que é possível mudar alguma coisa.

 

Mas será que a sua prisão não tem o efeito contrário, porque mobiliza as pessoas e dá notoriedade internacional ao caso?

Está a ter. Para começar, houve muitas mentiras, correu-se muito para a difamação. Mas o tempo passa e as pessoas vão percebendo o que aconteceu e isso naturalmente vai deixar as pessoas revoltadas. Porque quando estamos a ser enganados e nos apercebemos disso, ficamos com ainda mais raiva e então começa a ficar perigoso para quem tentou armar as coisas dessa forma.

 

Fora de Moçambique escuta-se muito dizer que a economia moçambicana está crescendo e é um modelo para o continente africano. Entretanto os indicadores do IDH estão entre os piores do mundo. Como você enxerga isso?

Não basta falar de números porque eles não têm reflexo na vida das pessoas. É só para nos orgulharmos de uma coisa que nem usufruímos. São números que a gente vê e nem entende que estão a falar do nosso país. Uma das explicações pode ser a distribuição da riqueza. Esses negócios que sustentam a economia que está a crescer são feitos por um determinado grupo de pessoas que criam um monopólio em que só os familiares e amigos directos deles que se beneficiam. São só as pessoas ligadas ao poder que podem tem uma empresa nova – que vai empregar moçambicanos, é verdade – mas que vai continuar a manter aquele grupo pequeno de pessoas no poder. E isso não está a mudar.

É importante que o desenvolvimento venha de baixo para cima. Nós temos que garantir o básico para todos e começamos a subir. Não adianta termos arranha-céus na baixa da cidade, termos prédios lindos quando não temos condições nos hospitais. Quando há problemas graves no ensino. Já dá para perceber que estamos a enfeitar as coisas, não?

Assim, vendo de fora, o presente está bem embrulhado, a fita está bonita, mas quando abrimos o presente está oco, vazio, não há nada lá. E então essa boa imagem só é boa para quem está por cima, mas para quem está por baixo é péssimo, até da raiva.

 

Tiveste uma passagem conturbada por Angola em Dezembro de 2009. Podes falar um pouco a respeito?

Estive em Angola para cantar as músicas do meu CD, mas a dado momento numa música em que eu perguntava “quem vendeu a tua pátria”, o público angolano começou a evocar o nome do Presidente da República. E aí é que começa o alvoroço todo. Era muita gente, por aí 6 mil pessoas no cine Karl Marx.  Eu limitei-me a cantar as minhas músicas, mas aquilo inspirou as pessoas a dizerem o que pensavam. E a partir daí ouve muita especulação. Porque, na verdade, tudo acabou bem. Houve receio de que houvesse problema por ter envolvido o nome do Presidente da República daquela forma, porque embora eu não tivesse dito nada, quem estava no palco era eu. Daí surgiram boatos de que eu fui escorraçado, coisa que não aconteceu. Eu não tive nenhum atentado. Se isso teve a acontecer, foi algo que eu não percebi. Muitas vezes sou vitima dos media mesmo.

 

Quais são seus próximos trabalhos e suas próximas apresentações?

Até o fim do ano vou lançar um novo álbum, chamado Kubaliba, que significa “nascimento”. Estou no final da gravação, será meu segundo álbum e deve ser lançado no fim do ano. Porque eu tenho aquela mania de lançar muita música avulsa. Uso a música mesmo como uma forma de intervenção. Se há alguma coisa que me aborrece e que eu acho que é oportuno dizer o que eu penso eu vou lá, faço a música e lanço, pois isso fica confuso em termos de discografia. Então estou numa fase de promoção, tem aí meu novo vídeo e devem vir outros. Irei para uma turnê na Alemanha, organizada por uma organização sem fins lucrativos que e ouviu cantar em Moçambique e me levou para lá. E vou também para outros países da Europa. É uma forma de promover minha música a nível internacional. 

 

originalmente publicado no Novo Jornal, Luanda 

por Juliana Borges
Cara a cara | 24 Agosto 2011 | Azagaia, crítica social, hip hop, hip hop moçambicano, Maputo