Entendam que a literatura não é nem inútil, nem abstrata, entrevista a Noemi Alfieri

Como é que avalia as literaturas africanas de língua portuguesa, neste momento?

Quero, antes de tudo, agradecer o Cláudio pelo convite em fazer parte destas conversas, e pela iniciativa em homenagem a Michel Laban. As entrevistas que ele conduziu com vários escritores são muito preciosas para nós. Espero que os nosso diálogos e debates possam ser um ponto de partida para refletirmos sobre a literatura e as nossas práticas. Vou começar também por dizer que não me sinto de todo com propriedade para responder a muitas perguntas, mas vou tentar e agradeço a confiança e a consideração do Cláudio neste sentido.

Voltando à questão…

Passando a essa primeira pergunta, repito: não me sinto em condições de avaliar literaturas, muito menos as literaturas africanas em língua portuguesa. Conheço bastante a poesia escrita em Angola e Moçambique, as publicações em revistas e jornais periódicos, e a prosa das décadas de ‘50 e ’60, de que me ocupei no passado e que continuo a pesquisar. Estamos a falar em períodos em que na produção literária ainda havia muitas tensões e traços claramente coloniais, anterior às independências. Conheço outra parte das literaturas africanas em língua portuguesa como leitora, mas esse conhecimento é limitado às obras que as editoras publicam e divulgam aqui na Europa, no Brasil, ou aos livros, revistas e impressos que chegam até aqui pelos amigos e colegas que transitam entre aqui e o continente africano. Isto por dizer que a minha opinião sempre vai ser uma opinião de amadora, e nunca de uma pessoa que queira ou possa avaliar alguma coisa. Não me sinto em condições de avaliar a literatura que eu própria escrevo, sequer. Dito isto, acho que não há dúvidas em relação ao facto de que o momento é de grande vitalidade para as literaturas africanas em língua portuguesa (uso este porque as literaturas africanas não pertencem à língua portuguesa, mas nela frequentemente se expressam) e para a sua projeção internacional. Por razões de vário tipo, há uma crescente atenção para com o continente africano. Não me refiro só a questões geopolíticas relacionada com as tensões entre blocos – que, como demonstram os recentes conflitos, ainda existem -, mas também às mudanças climáticas, às migrações, mas também à revolução digital e organizações sociais sustentáveis que contrastem os impactos do sistema capitalista. Nas últimas décadas, o debate público sobre descolonização, desmantelamento da hegemonia eurocêntrica, epistémicidio, etc. tem tido uma crescente importância.

Disse que é um momento de grande vitalidade para as literaturas africanas, por quê?

Há novas gerações de poetas, e penso neste momento em Angola e Moçambique, que são os dois casos que mais conheço, que fazem literatura (sobretudo poesia), reivindicando o direito a atingir tanto as tradições africanas locais, como a um imaginário de renovação da sociedade que já não passa necessariamente pelo realismo: por vezes, mais intimista, outras mais virado para questões que atravessam as sociedades contemporâneas. Na prosa, há todo um leque de escritas realistas que se inspiram no cotidiano urbano das grandes cidades. Eu vejo isso como uma tentativa, por parte das novas gerações, de se diversificarem das suas predecessoras, de reivindicarem o direito a abordar qualquer tema e a fazê-lo nunca desconsiderando as gerações anteriores, mas marcando posição quanto ao seu direito de imaginação literária e social.

O mundo em que vivemos fez com que a circulação de pessoas e ideias seja muitos mais rápida, imediata e consistente do que no passado, então acho que, numa altura em que o mundo ocidental se encontra, para parafrasear Achille Mbembe, numa fase mais estagnante, as artes – literatura incluída – podem vir a estar cada vez mais viradas para o que se pensa e se escreve no continente africano.

Em que lugar em seu entender a(s) literatura(s) angolana se encontra, comparativamente às outras literaturas africanas de língua portuguesa?

É uma pergunta complexa! Para mim, é muito complicado definir o lugar de determinada produção cultural em relação a outra. Cada cultura é fruto do seu contexto, das suas especificidades. Há novas gerações que se dedicam muito à poesia, talvez mais do que nos outros países, mas estamos a falar de espaços geograficamente distante e com culturas também diferentes, por isso é o máximo que consigo dizer.

Que relação comparativa se pode estabelecer entre as outras literaturas de expressão francesa e inglesa africanas?

Pelo que respeita a altura que mais conheço e da qual mais me ocupei até agora, ou seja, os anos ’50 a ’70 do século passado, há muitos pontos de confluência. É a altura da denúncia do colonialismo, da valorização das tradições africanas e da negritude. Com as primeiras independências africanas, a partir da Líbia em 1951, a ideologia da libertação, se assim a quisermos chamar, começa a efervescer no continente. A Negritude insere-se neste projeto de libertação, assim como no esforço concreto para o melhoramento das condições de vida dos povos negros. Muitos intelectuais africanos são obrigados a efetuar os seus estudos nas respetivas metrópoles, por falta sistemática de ensino superior nos países de origem. O resultado é Senghor que dá uma conferência na Casa dos Estudantes do Império (em 1956 em Lisboa), Mário Pinto de Andrade que colabora com a Présence Africaine, etc. As ideias circulam com mais facilidade e chegam a debater-se questões como a aplicação do conceito de negritude ao caso dos territórios africanos que eram, na altura, colónias portuguesas, sendo que o regime insistia na propaganda luso-tropicalista. Apesar de não ser um período que domino muito, e falando portanto aqui em qualidade de leitora, também vejo algum fio condutor nos romances africanos que têm sido elaborados em língua francesa e inglesa e que, como os em língua portuguesa, refletem entorno da condição feminina (Paulina Chiziane, Mariama Bâ) o trauma das guerras civis (Lília Momplé, Chimamanda Ngozi Adichie da Nigéria, Ismael Bah da Serra Leoa, fora do contexto das literaturas em língua portuguesa) e desencanto após a independência (Panashe Chigumadzie, do Zimbabwe).

Quanto à critica literária, com o é que tem visto esta componente dos estudos literários africanos, nomeadamente de línguas portuguesa, francesa e inglesa?

Vou responder partindo do pressuposto que, apesar de ler muita crítica e de trabalhar com crítica, tenho com ela uma relação conflitual. A própria ideia de que existam pessoas que tenham mais legitimidade do que outras para ler e opinar sobre textos literários perturba-me. Raramente os críticos escrevem literatura. Eu acho sinceramente que isto é um problema. Na crítica, entram em jogo dinâmicas de poder, que reproduzem iniquidades e subalternidades. A crítica valida ou invalida a obra, e isto acontece com todas as literaturas. Quem tem o poder de validar? Porque valida, e para que? Agora, temos a crítica escrita em âmbito académico e a crítica escrita fora desse âmbito, mesmo que por académicos. A crítica académica obedece a critérios muitos rígidos e depende da validação de outros académicos. Então, diria eu, acaba por inovar muito pouco, por estar sujeita ao que às autoridades académicas acham, ou querem que seja dito e escrito, sobre um determinado tópico.

O que levanta outros problemas …

Diria que, no caso dos estudos literários africanos, a crítica acaba por apresentar, infelizmente, os mesmos problemas de sempre: os esforços de validação no exterior continuam a ter um peso enorme. O que se escreve no Norte global continua a ter um peso desigual, mesmo quando o que se escreve tem pouca – ou nenhuma - relevância no contexto de origem. Este é o meu lado, digamos, crítico da crítica. Por outro lado, a crítica literária que se faz nos jornais e revistas (penso, por exemplo, na Cultura, com que o Cláudio colabora regularmente) permite abrir debates literários que podem ter um impacto na discussão de questões junto da sociedade. Por isso, a crítica escrita fora da academia me parece muito mais interessante e útil do que a escrita dentro dela. 

Em relação aos países africanos de língua portuguesa, qual deve ser o papel das universidades, para profissionalização ou consolidação da critica literária?   

Acabamos por ter uma ponte com o que estávamos a referir antes. Para mim, o papel das universidades, isto independentemente da área geográfica, é - ainda antes do que criar profissionais – o de dar ferramentas críticas aos estudantes para que eles possam ter autonomia de leitura, e para que consigam formar ideias, criar opiniões. A universidade deveria ser um espaço para aprender a pensar, mesmo que nem sempre seja possível pensar livremente dentro dela.

Como disse há pouco, eu eliminava o termo “crítica literária”. Para escrever sobre literatura, é preciso ler. É preciso gostar de ler, mas também é preciso escrever. E é preciso viver. Nós nunca vamos entender totalmente os outros humanos, pois cada um de nós é diferente. Então ter vivido em diferentes contextos (e não me refiro só aos contextos geográficos) é importante para escrever literatura e para escrever sobre ela. Maior a experiência de vida que temos, maior as possibilidades que temos de sentir empatia pelo que é escrito. Ter empatia é muito diferente do que entender. Mesmo que eu me ocupe de um texto proveniente do país em que nasci, ou mesmo da minha área geográfica, do meu bairro, tenho de saber que a minha maneira de pensar, de sentir as coisas, de escrever, nunca vai ser igual à da minha vizinha, do meu amigo, das colegas de trabalho.

Viver é importante antes de escrever…

Também acho que não há “crítico” sem antes haver escritor. É preciso ter sentido as indecisões, inseguranças, frustrações e o entusiasmo pelo e da escrita, para poder comentar e tentar dizer alguma coisa minimamente de jeito sobre a escrita alheia. Assim, para voltar à nossa pergunta, ainda antes do que ensinar técnicas, na minha opinião as universidades deveriam fazer esforços em passar o gosto pela leitura e pela escrita. 

É preciso fazer com que os estudantes entendam que a literatura não é nem inútil, nem abstrata: ela nasce da realidade e para ela volta com a representação e a interpretação que dela traz à sociedade. Em relação aos países africanos de língua portuguesa, também há uma situação que não se verifica da mesma forma noutros continentes: o domínio da oralidade, que é predominante na tradição angolana. A literatura, assim, passa pelo griot, pela narrativa oral e assim sendo, e acho que isto também precisa de ser devidamente valorizado. Quanto ao ensino das literaturas africanas na Europa, ainda há alguma resistência, sobretudo no âmbito dos estudos da literatura em português, mas a situação vai evoluindo, com a criação de cátedras e a alteração dos currículos. A presença de expertos de literaturas africanas vindos do continente seria certamente uma mais-valia por aqui também. Não sei se respondi à pergunta, mas respondi como posso.

Podemos falar em termos literários de angolanidade, moçambicanidade, cabo-verdianidade nestas literaturas?

A partir dos anos ’60, os críticos das literaturas africanas em língua portuguesa encontraram um relativo consenso quanto a angolanidade, moçambicanidade e cabo-verdianidade. A literatura escrita em cada um destes três países refletia, a partir pelo menos das décadas finais do império colonial português, características, temas, léxicos e estilos próprios. Distanciavam-se claramente da escrita portuguesa e faziam questão de afirmar as suas especificidades, de passar uma ideia de unidade e de coesão dos seus povos. 

Numa altura em que as reivindicações nacionalistas constituíam talvez a preocupação principal das elites e dos intelectuais, a aposta no realismo literário, muito influenciado sobretudo pelo neorrealismo brasileiro, foi evidente. A representação do cotidiano, fosse ela em prosa ou poesia, tornou-se ela própria um ato de luta, e a literatura começou a ser povoada por atores sociais que, até então, ficaram excluídos do imaginário e confinados ao mundo da não-representação. É por isso que Luuanda, por exemplo, causou tanto escândalo:  aquela maneira de falar um português que os portugueses não conheciam, o kimbundu que entrava no texto literário, os testemunhos daquela exclusão social, das iniquidades, da pobreza eram inaceitáveis na ótica propagandística do governo colonial. Poesia de denúncia como a de Noémia de Sousa, de José Craveirinha, António Jacinto e Agostinho Neto (entre muitos outros) punham em causa o conceito de unidade nacional pluricontinental e de missão civilizadora. Podia-se mesmo falar em civilizar outros povos, se aquela suposta “assimilação” – que não claramente não existia, e se baseava em processo violentos - levava não só ao desenraizamento, mas também à exploração e à miséria? No fundo, acho que fosse esta a mensagem que mais se receava pudesse passar, e foi por isso que estes autores foram perseguidos.

E hoje como vê esses termos?

Não saberia fazer uma reflexão sobre esses termos hoje em dia, porque não sei até a que ponto as literaturas são nacionais. Eu por exemplo, não pensaria em “italianidade” literária em relação ao meu país, mas isto porque a ideia de nacionalismo no meu contexto tem uma aceção totalmente diferente, associada à propaganda fascista, etc. Acho que só os próprios angolanos, moçambicanos e cabo-verdiano podem responder a essa pergunta.

Quais são os escritores destas paises com projecção internacional e que influência os mesmos podem ter para os novos escritores dos seus respectivos paises?  

Eu diria que, internacionalmente, são muito Agualusa e Pepetela para Angola, Mia Couto e Paulina Chiziane para Moçambique. Estes, pelo menos, são aqueles que se encontram à venda em Portugal e que sei serem abordados em alguns cursos universitários na Itália. Depois de ganhar o Prémio Saramago com Os transparentes, Ondjaki também começou a ter muito mais espaço nas estantes das livrarias portuguesas. Penso também em Amosse Mucavele, Hirondina Joshua, Equardo Quive em Moçambique, que pertencem a uma geração mais nova, que têm a obra a circular muito, fora do seu país.

Pelo que respeita o Brasil, que tem um mercado editorial muito mais rico e dinâmico, diria que as literaturas africanas em língua portuguesa são mais publicadas, mesmo em função das dimensões do mercado editorial do país: Ana Paula Tavares, Luandino Vieira, Noémia de Sousa.  O que está a acontecer, e isto acho tanto no Brasil como em Portugal, é uma difusão exponencial de obras de autores cujas vivências e narrativas acabam frequentemente por dividir-se entre dois continentes: estou, por exemplo, a pensar em Djamilia Pereira de Almeida, que ganhou o Prémio Oceanos com Luanda, Lisboa, Paraíso, na obra de Yara Monteiro, Kalaf Epalanga, Gisela Casimiro, Raquel Lima, etc.

Com a liberalização do mercado, existem algumas empresariais, em termos de criação de editoras, qual deve ser o papel das mesmas, com vista a tornar o mercado livresco mais competitivo?

O mercado literário é complexo: há géneros que vendem, outros que não vendem. Nós poetas, por exemplo, deparamo-nos todos os dias com dificuldades de publicação. Em vários países, encontrar um editor – mesmo tendo já livros e ensaios publicados – é extremamente difícil. Os editores dizem que a poesia não vende. Parece-me que, no mercado editorial, cada vez mais se invista nos romances e crónicas. Menos nos contos. Viver exclusivamente da escrita é extremamente complicado, quase impossível. 

As editoras claramente tentam adaptar-se ao mercado. Acho que a aposta em formatos híbridos (digitais, ou digital é impresso) é certamente um caminho. De resto, o que posso desejar é que as editoras paguem devidamente os seus autores: autores bem retribuídos pelas suas obras certamente contribuirão para a sua difusão.

Quais são em seu entender, os géneros literários que mais se pontificam nos países africanos de Língua Portuguesa?

De quem tenta acompanhar o que acontece: destacaria a poesia, nomeadamente a poesia falada e performada (nos slams, tertúlias, etc.), mas a verdade é que os romances talvez tenham tido um papel relevante no mercado editorial e nas obras que são traduzidas e vendidas no exterior.

Que lugar ocupa a poesia no naipe das literaturas africanas de Língua Portuguesa?

Diria que ela ocupa um lugar fundamental, tanto pela proximidade com as culturas orais, e pelo papel de resistência e revolucionário que teve durante as libertações. Aimé Césaire dizia, em meados dos anos ’60, que a poesia tinha um papel especial na libertação, porque permitia quebrar barreiras entre o coletivo e o individual, a sua linguagem era mais imediata e instintiva: Césaire atribuía-lhe um lugar muito específico na superação de traumatismos coloniais. 

A partir dos anos ’50, pelo menos, o compromisso dos poetas com a libertação fica mais evidente, marcado. É verdade que os intelectuais, na época, faziam parte de uma elite muito reduzida, mas deram-se a tarefa de mostrar – tanto a nível interno, como no plano internacional – as condições de repressão e opressão que as sociedades coloniais geravam; as injustiças às quais o povo era submetido. Toda a geração de escritores negritudinistas, Pan-africanistas e independentistas que surgem naquela época geraram debates internos, e também levaram as lutas para fora do espaço colonial. 

E durante a guerra?

Durante a guerra, a partir de 1961, havia comités de solidariedade e redes de apoio aos Movimentos de Libertação das colónias portuguesas um pouco por todo o lado (penso aos cartazes da FRELIMO e do MPLA que circulavam em Itália até aos anos ’80, assim como na Inglaterra ou na Suécia). Então a poesia, talvez, continue tendo o seu lugar único também em função do que representou nos processos de libertação. De uma forma mais geral, a poesia sempre foi uma ferramenta para lutar contra os regimes. É uma forma de escrita muito poderosa. É imediata, declama-se, partilha-se de forma rápida, tem um alcance diferente em relação à prosa. Hoje em dia, jovens poetas podem partilhar os seus poemas na net, com a certeza de que serão lidos, sem precisar de ficarem necessaria e unicamente dependentes de um mercado literário que, por questões económicas e questões ligadas às reduzidas dimensões do próprio, arrisca não lhes proporcionar o alcance de difusão de que precisam.

 Jornal Cultura, 24/1/2024

por Noemi Alfieri e Cláudio Fortuna
Cara a cara | 29 Fevereiro 2024 | gerações, libertação, literatura africana, literatura angolana, palop