A viagem das palavras, entrevista a Sónia Sultuane, artista moçambicana

Com ela, as palavras ganharam movimento e embarcaram numa viagem íntima sem fim à vista. Arrancou-as do púlpito sagrado do livro e empoleirou-as num monte de carvão, mergulhou-as no mar, elevou-as ao terraço de um prédio para beberem a inebriante vista da cidade. Numa rota imparável de Moçambique para o mundo, o projecto Walking Words (“palavras que andam”), de Sónia Sultuane, chega brevemente ao Brasil. Artista plástica, poetisa, criadora sob várias formas, Sónia esconde o embaraço de algumas perguntas com um riso tímido, mas emerge com tom firme e resoluto quando a conversa deriva para a política.

 

Cresceste em Nacala numa família muçulmana. Que valores ficaram dessa vivência?

Primeiro, o respeito pela sabedoria dos mais velhos. O meu pai dizia que os mais velhos eram uma escola, tínhamos que respeitá-los por muito que não concordássemos com a sua maneira de ver o mundo. Ficou também a amizade. Acredito que a amizade às vezes consegue ser mais forte do que os laços de família. Para o meu pai, os amigos eram como irmãos. Ficou-me também o aprendizado de que o pouco é sempre muito. Tive uma infância espectacular, não me faltou nada.

 

Que lugar é que a religião ocupa hoje na tua vida?

Tenho a religião que aprendi em casa, na qual fui criada, mas hoje acredito numa outra, sem definições. A minha religião são todas as religiões, o meu Deus é universal, não tem nome. Acredito noutros valores e a reencarnação é também um deles. Acredito que, em alguns momentos, podemos ter essa ligação muito forte, se quisermos, com a nossa alma, essa que faz muitas viagens. A religião pode ser uma barreira e eu não acredito nisso. Não acredito que possa ser um Ser com barreiras. Acho que uma única religião nos limita e eu não me sinto uma pessoa limitada, nem na minha fé. Se dissesse que tenho uma única religião, estaria a dizer que a minha fé é limitada.

 

No momento da criação, para ti há uma ligação à alma?

Muitas vezes parece que sim, porque acho que não tenho a capacidade nem a sabedoria suficiente para criar e para escrever. Há muitas vezes que me questiono como posso escrever coisas que, humildemente, considero belas. Há poemas meus que ultrapassam aquilo que sou capaz de sentir ou pensar. Trazem mensagens muito fortes que, no momento em que escrevo, nem sou capaz de perceber. Há uma ligação muito profunda. Penso que o Universo todo tem uma vibração tão forte que às vezes faz isso: brinca connosco. Traz-nos coisas, pessoas que nos fazem perguntar: como é possível isto acontecer, como é que estas pessoas apareceram? Quando crio alguma coisa, por vezes pergunto-me: como fui capaz de fazer isto?

 

Quando te sentiste pela primeira vez impelida a criar?

Desde muito pequenina. A minha mãe era modista e ficava muito zangada comigo porque pegava nos botões e nos zips que as senhoras traziam para coser a roupa (na altura não havia…) e começava a mexer naquilo tudo. Pelos vistos sempre fiz instalações sem dar-me conta, gostava. Por trás dos prédios em que vivíamos tínhamos umas pequenas hortas. Uma vez, arranquei as papaias verdes e maduras de todos os vizinhos e fiz um tapete enorme. Pus em todo o prédio, do terceiro andar até cá abaixo. Cobri todos os andares com papaias! O meu pai não era pessoa de me bater, mas dessa vez não escapei. Os vizinhos ficaram possessos!

 

O que é que te frustra?

Uma das coisas é não ter tempo. Às vezes tenho vontade de escrever, de criar, e vejo que não tenho o tempo que gostaria de ter. Há tanta coisa para aprender, para ver, para estudar, para ler. Não tenho esse tempo. Não sou uma artista a tempo inteiro.

 

É difícil ser artista a tempo inteiro. Como é que Moçambique trata os seus artistas?

A nível oficial, nem vou comentar. Acho que não há nenhum tratamento especial. Talvez um ou outro artista tenham um tratamento diferente depois de mortos e são raros os casos  quando ainda vivos. Não me parece que os artistas de renome tenham tido ou tenham algum tipo de apoio para poderem fazer as suas criações, então imagina os outros. Mas há muitos artistas que vivem só da arte. No meu caso, como não quero vender as minhas obras, preciso do dinheiro que ganho como gestora numa empresa para continuar a manter o meu sonho de continuar a fazer as minhas obras. Para isso tenho que ter um emprego.

 

Porque não queres vender?

É um acto um pouco egoísta. Primeiro porque quero partilhar o que faço. Vendendo uma obra minha, torna-se propriedade de alguém. Quer dizer que aquele trabalho pode ser partilhado por um tempo, depois é vendido e acabou. Acredito que a arte é isso – falo muito dos sentimentos nos meus trabalhos. Quero partilhar com as pessoas, quero que olhem para uma das minhas instalações e reflictam sobre mim e sobre elas próprias. Ainda não estou preparada para vender, quem sabe um dia.

 

Sentes, por vezes, que te expões demasiado na arte que crias?

Como não sei viver pela metade, tento ser sempre autêntica no que faço e no que sou. Ao sair de casa, já me estou a expor ao mundo. Tudo o que escrevo e o que faço, é uma parte de mim. Mesmo que estivesse a contar a história de outra pessoa, em algum momento essa história seria minha, porque é o meu pensamento que está ali. Não acredito que a pessoa e o artista se possam separar. Estamos sempre juntos. O artista é um veículo para transmitir esses sentimentos.

 

Achas que a arte tem género?

Não acredito muito na questão do género. Tento que a minha arte seja universal. Qualquer sentimento num poema meu pode ser tanto de um homem como de uma mulher. Pode ser de uma mulher africana, europeia, asiática. Claro que há traços. Se eu escrevo “capulana”, automaticamente sabem que é de Moçambique. Há uma ou outra coisa que fazem parte da minha cultura, do meu género.

 

Que mensagem levas para o Brasil em Agosto?

Tenho o projecto do Walking Words e é isso que quero levar. Quero que as minhas palavras cheguem ao Brasil. As palavras não têm só força no papel, não têm só força quando ditas ou quando ouvidas. As palavras podem ter força só vistas, a caminhar. Estou a fazer com que as palavras caminhem, estou a levá-las para os sítios mais absurdos. Desde para dentro do mar, para cima de um prédio, para um monte de carvão… Acho que as palavras chamam muito mais a atenção e até pode ter um efeito educativo. Por exemplo, nos bairros, torna-se muito mais cativante para os miúdos, para chamar a atenção deles. Sai daquele padrão que é o livro e o papel. As palavras ocupam um lugar muito sagrado no papel. Das diversas formas em que já representei  Walking Words, as pessoas ficaram muito surpreendidas. É fantástico ver que uma maluquice, um pensamento, tornou-se isto tudo.

 

O que é que as tuas palavras acham do acordo ortográfico?

Acho que devemos dar liberdade a todos para se expressarem da forma que quiserem, inclusive as próprias palavras. Penso que cada um de nós sempre se entendeu da forma que escreveu e que leu. As palavras são os nossos sentimentos. Ainda me sinto muito confortável como estou. É como as mensagens no telemóvel, com o texto muito cortado. É um outro sentir, porque os jovens revêem-se naquele tipo de linguagem, identificam-se com aquele sentir. Eu identifico-me com o meu sentir, não quero roubar às palavras o valor que eu lhes dou. Para mim as palavras têm um poder muito grande. É como se estivéssemos a escrever com erros. Parece que estamos ali a roubar qualquer coisa ao poder, à força que as palavras têm.

 

Achas que a lusofonia é uma realidade ou uma fantasia política?

No meio artístico, penso que não é uma fantasia. Tem sido benéfico, tem aberto portas a muitos artistas. Têm se feito coisas muito interessantes a nível dos países. A nível político, parece-me que é um faz de conta. É para justificar alguns gabinetes, algumas coisas. Parece-me que, artisticamente, há muito mais empenho para que esse projecto se mantenha vivo e unido. Fora disso, não sei bem.

 

Do ponto de vista cultural, é uma forma de identidade, de aproximação?

Sim. A língua é algo mágico. Estás numa sala com 200 pessoas e basta estar uma que fale a mesma língua que tu, para te juntares logo àquela pessoa. Os teus sentimentos, a tua expressão, fluem mais facilmente. Depois há outra coisa: nós de expressão portuguesa gostamos muito de falar com os gestos, de tocar e agarrar. Temos a linguagem corporal muito mais forte e intensa do que outros países. Mas penso que esse projecto [da lusofonia] só é bonito e só tem o devido valor se cada um de nós conseguir manter a sua identidade.

 

O que é que os políticos deviam aprender com os artistas?

Acho que os políticos têm que ser mais humanos e mais abertos. Deveriam ter um diálogo menos político, muito menos diplomático! Quando um governante vai lá para fora, tem que ter em mente que está a levar Moçambique com ele às costas. E Moçambique quer dizer muita coisa, quer dizer tudo! Cultura, desporto, economia, política, saudades, afectos, sabores. Mas eles esquecem-se; muitas vezes quando vão lá para fora, só levam a política com eles. Qual é o político que vai a Portugal, Espanha ou Bélgica e marca um almoço com uma comunidade moçambicana para confortar essas pessoas a matar saudades da sua terra? Ou mesmo com uma comunidade dos países para onde vão? Que tiram uma hora do seu tempo para uma conversa descontraída? Quando vamos lá para fora, até podemos estar cansados, mas falamos com todos. Vamos aos jantares oficiais e depois vamos a lugares comuns falar com as pessoas anónimas que nem sabem quem nós somos, o que é Moçambique, como é Moçambique, onde fica Moçambique. Representar um país é representar um todo.

 

Qual é a palavra que mais força tem para ti?

Amor.

 

Perfil de Sónia Sultuane

Nasceu em Maputo em 1971, mas foi na pacata cidade de Nacala, com vista sobre o porto, que cresceu no seio de uma numerosa família. A sede de criar manifestou-se desde cedo através de instalações improvisadas a partir dos botões da mãe ou das papaias dos vizinhos. Com exposições individuais e colectivas em Moçambique, Macau, Itália e África do Sul, Sónia Sultuane explora o universo dos sentimentos através da poesia e das artes plásticas com obras emblemáticas como “As Cores do Meu Coração”, um enorme coração em ferro com múltiplas cores representando os diferentes estados de espírito, que hoje pode ser apreciado no bar Kampfumo, em Maputo. Com três obras publicadas (“Sonhos” - 2001,  “Imaginar o Poetizado” - 2006 e “No Colo da Lua” – 2008), está incluída em duas antologias: “Poesia Sempre”, do Ministério da Cultura do Brasil, e “Antologia de Poesia Moçambicana Nunca mais é sábado”, da autoria de Nelson Saúte e publicada pela Dom Quixote. O projecto “Palavras que Andam”, apresentado inicialmente em 2008 no Instituto Camões, em Moçambique, viaja agora até ao Brasil para o seminário “Mulheres e Literatura”, que se realiza na Universidade de Brasília entre 4 e 6 de Agosto. Para além de se dedicar às artes, Sónia é gestora de comunicação e imagem numa sociedade de advogados em Maputo.

 

publicado originalmente na revista África 21 nº 50

por Cristiana Pereira
Cara a cara | 27 Março 2011 | literatura moçambicana, Sónia Sultuane