Sinal d'Amor pa B.Léza

Frank de Nha Rosa, de seu nome próprio Francisco Xavier da Cruz, rapaz de SônCent, mais precisamente, menino do Lombo, “sport de cinema”, “rascon”, jovial, músico e boémio, apaixonado pela Inglaterra e pelo Brasil e por tudo o que dali vinha, acaba de confirmar a sua mais recente “conquista”, uma brasileira paulista com cuja obra mantém uma relação de intimidade há mais de dez anos, a jornalista cultural Gláucia Nogueira (desculpa, amiga, a inconfidência).

O primeiro encontro, ou melhor, o “Eclipse”, deu-se em Lisboa, nos inícios de noventa quando, pela voz da sua pupila e afilhada, Cesária Évora, B.Léza foi levado para fora do espaço restrito dos bares do Lombo e da Cidade do Mindelo para o meio largo da diáspora cabo-verdiana e, dali, para os palcos do Mundo.

A partir dessa data, B.Léza tornou-se um passageiro frequente com direito ao cartão “gold” – hoje ele dá nome a um dos Boing dos TACV e em Portugal deu a uma famosa discoteca – tendo chegado onde há cinquenta anos não seria possível sequer imaginar a presença de um crioulo, para continuar a fazer o que sempre soube e quis: cantar o amor e estas ilhas, despedaçando corações e conquistando fãs, para inveja de muitos rapazes-novos. A Gláucia Nogueira e tantas outras que o digam, nas mais diversas línguas e suspiros.

Trago, a propósito, um lamento apaixonado de um outro artista mindelense, também ele na “Terra Longe”: “- Que pena ser tão velho!” Ao que a menina, quarenta anos mais nova, terá respondido com um sorriso encabulado: – “Não, Mestre, que pena é eu ser tão nova!”.

Este “sinal d’amor” pelo 1º Centenário do seu nascimento (1905-2005) que aqui hoje nos é dado apreciar, fruto dessa paixão, só não será tema de uma das muitas mornas do B.Léza, por puro cavalheirismo e contenção esperados de quem já é cinquentão duas vezes. Contudo, o “caso” vai certamente ser segredado ao amigo confidente de tantas horas, o “Bronze” que, “cu dor, djá perdê som”, enquanto bebe grogue de Santo Antão pelo “vírgula”, seu cálicezinho sempre à mão.

Estou a ver que todo o cristão-crioulo gosta de uma boa história de paixão e também de “riola”. Garanto-vos, contudo, que “Mi, nha boca ca ta lá!”. A minha função aqui e agora é de apenas “segurar a vela”. Não resisto, contudo, a meter a minha colherada e dizer que às declarações/composições do B.Léza, a Gláucia oferece este “sinal d´amor” com uma dedicatória singela mas expressiva: “Pá B.Léza, com um bejo d’sodade”.

Nesta necessidade ou ânsia de conhecer Frank da Cruz, a autora faz um trabalho aturado e moroso de pesquisa de documentos em Lisboa, na Biblioteca Nacional, na Sociedade Portuguesa de Autores e no Arquivo Pessoal de Maria Luísa Calado dos Santos, a viúva de B.Léza; e na Praia, no Arquivo Histórico Nacional. Esta pesquisa documental, que incluiu diversas fontes – livros, periódicos, dossiers, espólios, arquivos pessoais – é completada com uma discografia e entrevistas feitas a pessoas que, de alguma forma, conheceram Francisco Xavier, nomeadamente, a viúva e o filho Velá, Teixeira de Sousa, Gabriel Mariano, Malaquias Costa, Bana, Titina, Moacyr Rodrigues, Luís Morais, Manuel d´Novas.

Esta complementaridade e cruzamento de informações, por vezes contraditórias, dada a distância dos factos e acontecimentos, fazem desta investigação um trabalho científico e único sobre “o maior compositor cabo-verdiano de sempre” (sic) e vem preencher uma lacuna há muito sentida na historiografia cultural e musical de Cabo Verde. Esperemos que a própria Gláucia, e outros investigadores nossos, siga essa linha alargando a sua área de pesquisa a outros músicos da velha-guarda, nomeadamente, Antôn Tchitche, Luís Rendall, Pitrinha, Salibánia, Tchuff, Edy Moreno, Lela Preciosa, apenas para me referir a alguns de S. Vicente.

Eventualmente, esta tarefa a que se dispôs a Gláucia poderia ter sido facilitada caso a autora fosse cabo-verdiana, isto é, com um substrato cultural de origem que lhe permitisse uma “visão de dentro” e lhe fornecesse informações de base a partir das quais estruturasse o seu trabalho. Assim não sendo, a Gláucia não só fez o seu próprio caminho de aculturação como, com recurso a instrumentos científicos, ao distanciamento e à objectividade necessárias, conseguiu um resultado de mérito.

 


Vejamos então o B.Léza da Gláucia, “por ocasião do centenário do seu nascimento”, através dos documentos que compulsou e das entrevistas que realizou, cujo texto é enxuto, a linguagem sóbria e clara, resultado de uma prática constante de escrita jornalística.

O trabalho revela e explica episódios e pormenores da vida deste trovador fundamentais para se conhecer a sua vida e obra, seja em S. Vicente, onde sempre viveu e morreu; seja durante o seu período na ilha do Fogo, nos inícios dos anos 30, como funcionário dos Correios e Telégrafos, onde, pela primeira vez, utilizou o meio-tom nas suas composições.

Durante a sua estadia na Praia, sentiu-se inspirado a escrever as suas reflexões sobre a morna enquanto na sua breve estadia nos Estados Unidos e na viagem entre New Bedford-S. Vicente, a bordo da escuna Arthur James, compôs a morna-tango “Carta d’Alto Mar”. Na sua deslocação a Portugal em 1940, para participar na Exposição do Mundo Português, ficou hospitalizado em Lisboa, onde conheceu a mulher com quem viria a casar-se.

Não resisto a compartilhar convosco, criando o gosto pela leitura da obra, a descrição de uma serenata organizada por B.Léza nesta cidade da Praia. Iniciada na rua Miguel Bombarda, o grupo seguiu em direcção ao Monte-Agarro, descendo a Sá da Bandeira, indo concentrar-se no largo do Palácio onde foram saudados com uma salva de palmas pelo Governador. Vejamos a descrição do acontecimento:

“Havia ainda pouco tempo que a luz eléctrica se apagara na via pública. Na cidade da Praia já dormente, reinava um sepulcral silêncio, quebrado apenas por abafados sons de instrumentos a afinar que saíam da casa nº 44 da rua dr. Miguel Bombarda, cuja porta se achava fechada”, escreve B.Léza. “De súbito, a porta entreabriu-se e alguém anunciou com alegria: já temos lua!

Os músicos saem para a rua, cada um com o seu instrumento devidamente afinado, e, lentamente, seguem em direcção a Monte-Agarro, em duas filas. “Algum passante que acaso vagueava por esses lados a essa hora tardia da noite, contaria na segunda fila: dois violinos, quatro violões, um cavaquinho e um bandolim”. A primeira fila – cujos componentes o autor não especifica – “parecia guarda avançada de um séquito”. “Enfiou pela rua Sá da Bandeira (actual avenida Amílcar Cabral), levando atrás de si os músicos (…) Em vários pontos, umas luzes pardacentas entrecortaram a luz suave e branda da lua e, por entre elas umas cabeças humanas surgiram escutando a serenata, relata B.Léza.

No seu ziguezaguear madrugada afora, o grupo ia arrastando ouvintes curiosos atrás de si e já eram cerca de 30 ao pararem diante do palácio do Governo, ao som de “Resposta di Segredo co Mar”, de sua autoria. A seguir tocaram “Unino”.

“Terminada que foi esta segunda morna, uma salva de palmas vindas do palácio agradeceu”, escreve B.Léza. (…) No relógio municipal três compassadas badaladas anunciaram as três horas da madrugada (…). Esta serenata, afirma, inspirou-o a escrever as suas reflexões sobre a morna, que incluiu no livro “Uma Partícula da Lira Caboverdeana”, que será publicado cerca de dois anos mais tarde” (pp. 30-31).

Episódio diferente, este, passado em Lisboa, tem a ver com a morna “Hitler” (“Hitler câ tâ ganhá guerra, ni nada!”), dedicada ao Primeiro-Ministro do Reino Unido, Sir Winston Churchill, e o texto Razão da Amizade Caboverdiana pela Inglaterra, sobre a presença dos ingleses em S. Vicente, abordando a sua influência nos hábitos e língua local (pp. 49-51).

Outros acontecimentos mais, ocorridos em S. Vicente, poderiam aqui ser invocados, mas ficam reservados para serem fruídos numa leitura pessoal e intimista.

O livro “O Tempo de B.Léza – Documentos e Memórias” está estruturado em função de momentos ou episódios marcantes da vida do Trovador, com ilustração em fac-simile de alguns documentos, e dois anexos. Um contendo a listagem das 51 composições de B.Léza registadas na Sociedade Portuguesa de Autores e outro com o registo das composições e a indicação dos intérpretes e dos discos onde se encontram.

As três últimas secções do livro – “Morre o Homem, Fica a Fama”, “Uma Enorme Partícula da Lira Cabo-Verdiana” e “Um Escritor por trás do Violão” – constituem a parte onde a autora se concentra em análises e reflexões que nos levam a confirmar que, “meio século depois, B.Léza, continua actual”.

Na capa o ilustrador brasileiro Paladino retrata B.Léza nos anos 30/40, em cima da Lua – eventualmente numa referência às mornas “Lua Lumia’m Caminho” e “Lua Nha Testemunha” – com um violão ao peito. Da capa à contra-capa, o livro é uma B.Léza, digo, beleza. Como diria Caetano Veloso, “simplesmente beleza pura”!

 

publicado no blog Na Esquina do Tempo

“O Tempo de B.Léza: Documentos e Memórias” de Gláucia Nogueira; Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2005

por Brito Semedo
A ler | 14 Junho 2010 | B.Léza, Cabo Verde, morna