Política e religiosidade em São Tomé e Príncipe: os equívocos do colonialismo ao pós-independência. Notas para uma investigação

Nestes apontamentos1 atentar-se-á nas relações entre o curso da política e diversos planos das vivências religiosas em São Tomé e Príncipe desde o século passado. Levando em conta a história recente, avaliar-se-á o multifacetado papel da religiosidade na actual configuração política e social do arquipélago.

No tocante ao que supostamente conferia solidez do vínculo colonial, durante décadas o arquipélago de São Tomé e Príncipe foi, em virtude da religião, considerado uma sociedade culturalmente homogénea, de matriz europeia e, mais propriamente, portuguesa. O culto católico, institucionalizado ou de iniciativa popular, teve a primazia no quotidiano local até aos derradeiros anos do colonialismo, contando com significativa adesão de ilhéus. E, embora contida pela agressividade ideológica da governação independentista, a dimensão religiosa sobreviveu após 1975.

O diagnóstico sobre o enraizamento da religião, com que os colonialistas se compraziam, era superficial. Mas foi também em função dele que os independentistas pensaram na mudança social e cultural da sua terra. Para estes, o desígnio de transformação cultural sob a batuta da sua ideologia, julgada suficiente para erradicar a religião e para modernizar a vida, parecia bem mais importante do que as crenças (de origem africana ou europeia) dos seus concidadãos. Não o conseguiram, razão bastante para a pergunta: qual a importância da religião e da religiosidade na configuração do plasma cultural a ter em conta na evolução política e social do arquipélago?

Até há anos, as relações de poder e as instituições balizaram os rituais religiosos. Hoje, a mutação do cenário religioso é um sinal inequívoco das mudanças sociais em curso (por exemplo, ao invés do que supostamente se prezaria ou imaginaria em razão das evocadas raízes africanas, são as igrejas chegadas do Brasil que conhecem adesões significativas). Como é que tais mudanças influíram (e influirão) nos comportamentos políticos? Como é que as práticas religiosas situaram e situam os são-tomenses no mundo? Por exemplo, depois da marginalização no tempo colonial e passado o ataque do voluntarismo político pós-independência, por entre a implantação das novas igrejas, voltarão os ilhéus a ter protagonismo pastoral? Ou, sob várias perspectivas, as novas igrejas colocam desafios maiores do que os apostos pelo colonialismo?

Olhemos a história. Porventura mais do que noutras colónias, em São Tomé as ruas impregnaram-se de devoção. A religião institucionalizada, onde as mulheres tinham um papel, compunha o dia-a-dia e escorava uma visão imobilista do mundo. Simultaneamente, restava pouco espaço para o protagonismo evangelizador africano.

Até ao ocaso do colonialismo, quase todos os habitantes eram baptizados, mas, era dito, igualmente ignorantes da doutrina ou, se se quiser, do catecismo. Em contrapartida, não sabemos o que pensariam os ilhéus acerca do ateísmo e da dissolução de costumes dos europeus, pecados mascarados pela identificação destes com a nação colonizadora e pela colagem das autoridades coloniais à religião. Sabemos, sim, que a religião católica constituiu um traço de distinção dos ilhéus face aos outros africanos, os serviçais importados e contratados para trabalhar nas roças. Por isso, durante anos, os serviçais estiveram apartados das festas dos oragos e mais celebrações religiosas. Os ilhéus eram devotos, mais do que os europeus, mas nem por isso viam mais considerada a sua religiosidade, facto devido à sua secundarização económica e social, na qual sobranceiramente os europeus fundavam o seu depreciativo juízo moral sobre os ilhéus, que, evidentemente, não aplicavam a si próprios.

Também por razões políticas, a ascendência religiosa derivaria pouco da congruência moral, como o prova a vida do padre Pinto da Rocha. Este missionário viveu meio século em São Tomé por entre reiteradas transgressões. Não só criou os filhos como, desassombradamente, desarmou, qualquer que ela fosse, a intenção do bispo de Angola e São Tomé, apresentando-os como sobrinhos do irmão.

Na realidade, num mundo de proximidades, como o exíguo arquipélago, a moral pesaria menos do que o enfileiramento na devoção institucionalizada e corporizada em procissões, missas e novenas. Listemos, por exemplo, os actos devotos de 1948: manifestação de fé por ocasião da passagem da imagem peregrina de Nª Sª de Fátima, peregrinação à capelinha de S. Miguel, da roça Porto Alegre, procissão das velas a 12 de Maio, festas de Deus Pai, do Sagrado Coração de Jesus, de Santo António, de S. João, do Sagrado Coração de Maria, de Nª Sª da Nazaré, festa em honra de S. Francisco de Assis, de Nª Sª do Bom Despacho, da Madre de Deus, de Santa Filomena, de Santa Terezinha do Menino Jesus, nova celebração em honra de Nossa Senhora de Fátima, em Outubro, festa da Imaculada Conceição, outras datas do calendário litúrgico, festas dos padroeiros das freguesias e, por fim, a de São Tomé. De alguma forma, esta saturação do espaço público pela prática religiosa só se compreende pelo que também esta conteria de dimensão lúdica e de afirmação de uma certa distinção social.

Também por isto, e ainda que sem saber através de que mecanismos, intui-se o papel da religião na ordenação daquele mundo onde, durante décadas, as vidas pareciam ditadas à nascença. A religião tocou os ilhéus, mas também os serviçais, embora alguns destes pregassem mensagens, para eles, proféticas, para os colonialistas, subversivas. Em todo o caso, prevalecia o acatamento da autoridade, em maior ou menor grau amparado pela convicção religiosa, que se podia desdobrar no zelo no trabalho, perturbadoramente coexistente com a mais radical apartação do mundo do colono, sinal de que este não conquistava a alma dos corpos que subjugava.

Salvo o caso do padre Sacramento Neto, cuja missa nova teve lugar em 1958, não houve africanização dos actores católicos. Mesmo os pastores protestantes seriam brancos, portugueses, para poderem contar com a boa vontade das autoridades.

Aquando da independência, a remoção do padre Sacramento Neto indiciou que o MLSTP queria e julgava possível arredar o obscurantismo da religião conotada com o colonialismo. Porém, não poderia haver nada de mais ilusório no tocante ao catolicismo, erroneamente relacionado com a mera lealdade política ao colono.

Com efeito, após 1975, dada a desconfiança face à religião, os equívocos dos políticos foram diferentes mas não menores do que no tempo colonial. Anunciou-se a liberdade de cada um professar a sua religião. A este anúncio, em última análise, inútil, acrescentou-se: “Conhecemos o papel nefasto que teve a Igreja em S. Tomé e Príncipe durante todo o período colonial. Uma descolonização da Igreja (…) impõe-se imediatamente e a sua reestruturação deverá ser feita de molde a acompanhar a evolução política e social no nosso país e a cimentar o espírito nacional do nosso povo.

A conjuntura política sugeria a substituição da consciência religiosa por formulações ideológicas, que também valiam pela sua vertente afectiva e de conformação dos indivíduos com a finitude da condição humana. Na circunstância, este lema da descolonização da Igreja afigurava-se aceitável, pois, nas ilhas, e diferentemente do sucedido noutros contextos africanos, a Igreja não tivera nenhuma importância directa no despertar das consciências nacionalistas. O MLSTP sentiu-se à vontade para propor aos são-tomenses, católicos incluídos, a redenção da ex-condição de colonizados pela entrega à realização de um novo colectivo e, qual sorte de expiação, através da renúncia aos bens terrenos.

O novel Estado quis impor a sua tutela a todas as manifestações da vida social. Por definição não lograva isso no domínio religioso, que tentou expurgar da vida colectiva. A religião católica foi praticamente expulsa das ruas. O MLSTP não se furtou a actos simbólicos de violência, a um tempo comedida e ideologicamente justificada, contra a Igreja. Por algum tempo, esta foi um alvo da “luta” do MLSTP.

A ideologia e as inércias do poder cegaram os dirigentes, que se recusaram a admitir a profundidade da religiosidade com que se deparavam. Ainda assim, tal cegueira não iria sem incómodos porque algumas crenças e certos medos deviam resistir e, quiçá, tocá-los, mesmo se a ofensiva com os dispositivos coercivos e a adjectivação depreciativa relativa ao obscurantismo do legado colonial, religião inclusa, conferiam ânimo aos mandantes. Com efeito, a subjugação da Igreja e ocasionais prisões de curandeiros e feiticeiros ajudariam a debelar receios de governantes, alguns deles aprendizes de marxistas, que, talvez por isso, se revelavam ciosos e convictos da nova “fé”.

Cumpre dizer, colocados em perspectiva, os conflitos entre políticos e religião nos anos pós-independência valem menos do que a aparente reconversão dos dirigentes ao facto religioso. Queda por saber o que é que esta mudança de visão do mundo traz no tocante ao devir do arquipélago e dos ilhéus ou, noutros termos, às práticas políticas.

Não custará a crer que, além de instrumental – a religião é um código cultural gerador de aproximação entre governantes e governados –, a aparente reconversão brote do falhanço das proposições ideológicas da modernização, desde o marxismo do MLSTP ao neoliberalismo do ajustamento estrutural. Actualmente, mesmo que delas não partilhem, os governantes parecem reconhecer solidez às asserções religiosas e alguns crerão na sua valia para efeitos de harmonização social ou de dissipação de tensões de que, em vista da acrimónia instalada, eles se tornam potenciais vítimas.

No período da agressividade de inspiração marxista, só se reconhecia à religião a função de suporte de uma farsa e, concomitantemente, achar-se-iam as crenças religiosas falhas de senso e profundidade. Repetindo-nos, hoje, os mandantes mostram apego às crenças religiosas em desfavor de ideologias desacreditadas. Dentre os novos códigos para interpretar o mundo, os dirigentes elegem e abraçam a religião, como que aderindo à inabalável convicção popular sobre a diferença entre os homens e Deus, o qual, diferentemente daqueles, não desampara.

Justamente, a crispação política, a erosão das instituições e o empobrecimento económico e social, inconcebíveis à data da independência e até há pouco aparentemente irreversíveis, terão sedimentado a certeza, também decorrente da aceleração das mudanças, de que não se sabe onde estas levam, senão, talvez, a uma crescente indeterminação das vidas e do futuro. É este o cenário social onde medram as formas de consciência religiosa.

Em termos prospectivos, poderemos trilhar vários caminhos para perscrutar as dimensões da religiosidade presente nas ilhas, começando pelo terreno onde (quase) todos se encontram, as festas dos padroeiros das localidades. Neste desempenho, que entronca nas vivências do tempo colonial, os políticos sentem-se confortáveis. Acrescente-se, apesar de não negarem a liberdade religiosa – dir-se-ia, tão ou mais sacrossanta do que outros direitos –, os políticos parecem dar-se melhor com os credos institucionais do que com as novas igrejas, transnacionais e moventes. Pelo menos, por enquanto.

Em troca da rendição de alguns dirigentes ao catolicismo, este readquiriu o lugar em solenidades políticas, em virtude do que ao bispo se oferece a possibilidade de ter uma voz crítica, conquanto mal tolerada. Num dia dos Mártires da Pátria, evocativo do famigerado massacre de Batepá, o bispo celebrou missa em Fernão Dias, a que assistiram os governantes. A celebração seguiu sitiada pelo paganismo e pela indiferença, apenas mitigados por actos simbólicos, como, por exemplo, deitar flores ao mar em homenagem aos são-tomenses que ali padeceram e morreram. Aos governantes, talvez os consolasse a presunção de que, para lá do hedonismo, os circunstantes tinham uma noção da sacralidade da data de 3 de Fevereiro.

Durante séculos, a religião católica foi objecto de adesão quase incondicional dos são-tomenses. Como é que é possível que tal se esboroe celeremente? Na verdade, a fé católica, inquestionada, era uma fé de instituição. As mudanças políticas e sociais, já por si favoráveis ao redesenho das crenças, trouxeram a apropriação e o uso dos lemas da fé para novas escolhas dos ilhéus. Tal tem acarretado a troca do catolicismo por outras fés, de maior proximidade.

Justamente, outro domínio é o da religiosidade protestante. No espaço urbano, onde as igrejas protestantes eram controladas, não terão existido desempenhos proféticos. Após 1975, a ter existido, a oposição do poder independentista a tais igrejas terá sido menor do que à Igreja Católica, que concitava lealdades invejadas pelo MLSTP.

O desempenho prosélito pode ter tido lugar nas roças. Quiçá em resultado desta acção de descendentes de serviçais, actualmente pequenas igrejas pontuam a paisagem no mato, onde, certamente, a mensagem cristã depende da interpretação do pastor e dos seguidores.

As acções dos políticos produziram efeitos, não os que eles imaginaram, mas outros – com destaque para a proliferação das igrejas neopentecostais – relevantes para a configuração do contexto sociocultural das ilhas. No futuro, poderão importar para o curso da política. As igrejas neopentecostais primam pela relativa imponência dos seus templos e como que afirmam um poder, aqui e além contestado por violentador dos costumes da terra e, concretamente, da paz nos lares, uma alusão à corrosão das assimétricas relações de género.

Existem outras igrejas de penetração social e institucionalização diversas, algumas de evidente sincretismo ritual e simbólico. Há anos, fazia-se presente uma confraria islâmica. Outro exemplo, também há anos, a igreja tocoísta pretextava querer implementar projectos sociais no arquipélago. Esta efervescência religiosa ocorre sobre um fundo de crenças acerca da presença do sobrenatural como factor de ordenação do mundo, de que os homens como que parecem ter desistido.

Num certo sentido, fruto da literacia e do maior mundo, o racionalismo e o ateísmo avançaram. Mas constata-se que concepções ligadas ao sobrenatural – entre elas, a percepção do mal, da penúria ou da privação, como consequência das intenções malévolas de outrem, vivo ou morto – prevalecem na interpretação e na (des)regulação do quotidiano. Por vezes, subvertem as relações de autoridade e a organização social, paralisando a vida colectiva, como o demonstram as possessões em virtude das quais se fechou a escola de Guadalupe durante meses em 2010-11. Em Junho de 2012, algo de semelhante ocorreu na escola Patrice Lumumba, encerrada uma semana por causa do “transe” de cerca de setenta estudantes. Ao invés da inacção no primeiro caso, em 2012 o governo ordenou o encerramento da escola, nomeando psicólogos para acompanhar as estudantes afectadas. Diferentemente também da resolução aquando das possessões em Guadalupe, rezou-se uma missa católica no local. Dir-se-ia que o bispo se acomodou à idiossincrasia da terra. Noutros termos, no tocante às mutações sociais, teremos de considerar que o nível da cultura profunda, de valores fundamentais – da religião, das crenças e da espiritualidade – tem sido menos afectado pela modernização.

Tendo presente o eventual peso político e a relevância social da religião, perguntar-se-á: hoje, a evangelização é um dado da vida colectiva nas ilhas? A avaliar pela quantidade de capelas e pelo que delas se infere acerca da iniciativa religiosa, dir-se-ia que sim. Porém, apesar de a independência e, mais particularmente, o fim dos constrangimentos impostos pelo regime monopartidário terem aumentado as hipóteses de uma evangelização encetada pelos ilhéus, não é claro que a proliferação das novas igrejas se desdobre numa dinâmica evangelizadora radicada nas ilhas. Poderemos estar em presença da injunção de dinâmicas religiosas transnacionais que, afinal, poderão revelar-se um verniz tão estaladiço, quanto, hoje, o parecem ser alguns traços da cultura institucional herdada do colonialismo.

Tal não irá sem alguma incomodidade para os são-tomenses, mormente para os mais velhos, socializados na crença de que os de valores éticos e morais são a base da vida colectiva. Como são-tomenses o vêm reconhecendo, o papel da Igreja retrocede. E as lideranças políticas redundam na apropriação individual do que deveria ser o bem público. De nada valem nem as homílias, nem os discursos políticos, a sociedade são-tomense parece transformar-se numa comunidade desprovida de valores éticos.

Talvez nenhum dos discursos esteja em condições de responder às demandas sociais. Ou, mais cruamente, pode ser que, na vertigem da propalada globalização, a sociedade são-tomense, malgrado a sua religiosidade, esteja pouco propensa à recomposição social.

Chegados a uma época dita de pós-modernidade – no sentido em que se toma consciência dos limites da racionalidade e das ideologias na organização das sociedades e da vida humana –, tal deveria significar a admissão da valia de outras formas de consciência, ideários e valores, que não apenas as controversas e reversíveis aquisições da ciência. Ainda assim, arriscaríamos dizer que, por razões históricas e de contexto cultural, social e político, o contributo do pensamento religioso para a organização da sociedade são-tomense permanece, e talvez permaneça, escasso.

  • 1. Texto de uma apresentação no colóquio internacional Da evangelização da África à África evangelizadora, organizado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, em 17 e 18 de Outubro de 2013.

por Augusto Nascimento
A ler | 23 Outubro 2013 | política, religião, São Tomé e Príncipe