Novo Ano, sem Novo Jornal?

Nota de apresentação

É a primeira vez que escrevo para o Buala. Faço-o com muito gosto no âmbito de uma colaboração que pretendo venha a ser regular e que estará, fundamentalmente, voltada para a análise da qualidade (ou da falta dela) do jornalismo que se faz em Angola, tendo como pano de fundo os desafios da média angolana em matéria da afirmação do seu papel independente que todos hoje consideram estruturante da própria democratização, mas poucos agem em conformidade.
Tenho acompanhado a comunicação social/jornalismo que se faz entre nós, já lá vão mais de 48 anos, como parte activa da mesma. A minha actividade profissional teve início na Rádio Nacional, dois meses antes da proclamação da Dipanda em Setembro de 1975, quando fui admitido naquela estação, como locutor de continuidade.
De lá para cá não me lembro de ter tido outra actividade profissional senão o jornalismo, o que acabou por ser o melhor que me aconteceu em toda a vida. Não consigo sequer imaginar se conseguiria algum dia realizar-me fora do espaço mediático, se tivesse optado por outra carreira.
Conhecendo-me hoje, posso afirmar que não sei bem se nasci para o jornalismo, porque não acredito em fatalidades, nem em destinos traçados. Sei, contudo, que a minha personalidade dificilmente encontraria melhor parceria para o resto da vida, um relacionamento harmonioso, com todos altos e baixos desta metragem que já vai longa.
Enquanto observador e crítico da realidade angolana (sempre fui e espero continuar a ser), desde cedo me interessei pelo desempenho do nosso jornalismo nas suas diferentes vertentes, com destaque para a política, sendo prova disso a coluna que publiquei no Jornal de Angola bem no início dos anos 80 com o título “As notícias do nosso jornalismo”.
Desta coluna histórica da minha intervenção enquanto opinion maker/cronista, conservo nos meus arquivos pessoais algumas prosas nada poéticas, que então dei à estampa e que falam bem das minhas preocupações em contribuir para melhorar o jornalismo, mesmo nas condições de ausência de liberdade de imprensa que o país viveu entre 1975 e 1992, quando se realizaram em Angola as primeiras eleições multipartidárias.
Numa delas, creio que a primeira da série, chamávamos atenção para “o género noticioso relatório, que já conseguiu conquistar no nosso jornalismo um lugar ao sol, deixando na sombra a imaginação e a criatividade, que poderiam tornar os nossos noticiários mais ricos, mais informativos e acima de tudo mais interessantes”.

Deixemos, portanto, apelava eu a terminar, “de dar cobertura à rotina, como ela nos aparece nos insípidos comunicados que nos chegam diariamente às redacções onde nos encontramos comodamente instalados a espera do acontecimento”.
As preocupações de um ontem que já se perdeu no horizonte mantêm-se, são as mesmas num país que parece andar às voltas sobre si mesmo, sobretudo na repetição das suas “partes mais gagas” que o jornalismo tem sabido reflectir ao longo das últimas quatro décadas.

Novo Ano sem Novo Jornal?

O semanário Novo Jornal que se edita em Luanda há mais de 15 anos é, neste momento, para além de referência cimeira na imprensa privada, uma das raríssimas publicações que circula no país com uma edição física em papel com um nível gráfico bastante aceitável.  
Para além desta edição semanal, o Novo Jornal também é hoje uma presença diária na Internet com uma edição on line autónoma devidamente estruturada (novojornal.co.ao) que se mantém actualizada ao ritmo dos acontecimentos nacionais e internacionais, onde a opinião também tem o seu espaço próprio.
Neste mês de janeiro, no dia 25, o Novo Jornal completa mais um aniversário, desta vez num ambiente bastante atribulado quanto ao seu presente e, ainda mais preocupante, em relação ao seu futuro, tendo em conta o que está a acontecer nos últimos dois meses.  
De repente foi o próprio Novo Jornal que virou notícia, depois de uma musculada guarda pretoriana integrada por quarenta musculados “enviados especiais” e com cara de poucos amigos, ter tentado tomar de assalto as suas instalações em vésperas do Natal.
Em Angola já tivemos de tudo um pouco em matéria de violência contra a imprensa e os jornalistas, onde se incluem agressões policiais, detenções arbitrárias e ilegais, assassinatos e fogos-postos, mas ainda não tínhamos tido um caso do género e em plena luz do dia.
Tudo aconteceu na sequência de uma providência cautelar decidida em finais de novembro do ano passado por um Tribunal de Luanda que foi chamado a arbitrar um conflito societário entre dois irmãos, o Álvaro Sobrinho e o Emanuel, também conhecidos pelos “Madalenos” que é o seu nome de família, em torno da posse da empresa que é, alegadamente, proprietária do Novo Jornal.
Circulam, entretanto, outras versões que colocam neste mesmo “barulho” pelo menos mais um protagonista que também reclama a posse do Jornal e que não foi tido nem achado neste primeiro round de uma batalha judicial que pode ser de longa duração.
Um round que começou por ser contestado pela parte que está a ser processada na pessoa de Emanuel Madaleno, que é o irmão mais novo, por, alegadamente, não ter sido notificada o que não lhe permitiu em sede da providência cautelar decidida em novembro exercer os seus direitos de defesa.
Na parte da fundamentação, o conteúdo desta sentença provisória tenta explicar as origens deste conflito e o seu desenvolvimento desde que o NJ foi criado, mas está longe de esgotar os seus contornos mais actuais, por tudo quanto se vai sabendo no cruzamento das informações que têm transpirando para a opinião pública e publicada.
Se quisermos, sem mais delongas, ir directamente ao assunto que é imensamente politico diremos, em resumo, que o Novo Jornal com o seu jornalismo independente, desde o surgimento em 2008 sempre foi mal visto pelo poder angolano tendo este relacionamento conhecido períodos de maior ou menor tensão que se foram sucedendo ao longo da sua trajectória até aos dias de hoje.
 

 

A primavera lourencista

Com a saída de José Eduardo dos Santos e a entrada em cena de João Lourenço em 2017, as relações do poder rubro-negro com a imprensa privada melhoraram bastante de uma forma geral, a ponto do autor destas linhas se ter referido aos primeiros dois anos do seu mandato como sendo a “primavera lourencista”.
Pelos vistos a “primavera” com a imprensa foi sol de pouca dura, tendo os picos de tensão voltado a instalar-se no gráfico das temperaturas mais políticas, afectando particularmente o relacionamento com o Novo Jornal com todas as consequências que agora se estão a fazer sentir.
De facto o NJ é atualmente a publicação com maior visibilidade e crédito no panorama mediático angolano sobretudo pela abertura que tem caracterizado a sua cobertura da actividade politico-partidária a par dos seus espaços de opinião, que têm sabido reflectir a complexidade do debate contraditório que se vai travando no país.


Acredita-se que a gota de água que fez transbordar o copo de água deste relacionamento terá sido a última gala promovida pelo Novo Jornal em Julho do ano passado onde o líder da UNITA, Adalberto da Costa Junior, foi escolhido como sendo a personalidade política do ano.
João Lourenço já havia merecido a mesma distinção anteriormente.
Apesar de ser aparentemente uma briga societária, o que é facto é que todos sabem que um dos irmãos desavindos, o que quer recuperar o controlo do Novo Jornal, está a movimentar-se num contexto de pressões políticas orientadas especificamente para a necessidade de se controlar editorialmente o jornal.
Álvaro Sobrinho, que nem sequer pode sair de Portugal enquanto arguido num dos “processos BES/BESA” está, claramente, como se diz em linguagem angolana, a querer fazer uma “boa muxima”* ao Executivo de João Lourenço a quem, desde o início, se aliou para evitar outras consequências resultantes da sua passagem pelo sector bancário em representação dos interesses do Grupo Espírito Santo.
Curiosamente os dois irmãos são fortemente conotados com o poder angolano, tratando-se na verdade de uma “briga de galos” que tem uma história familiar de negócios pelo meio que começou muito bem no tempo das “vacas gordas” da governação de José Eduardo dos Santos.
Tudo mudou, entretanto, sendo o prognóstico bastante reservado.
De facto tudo pode vir terminar muito mal entre os dois irmãos, enquanto se aguardam pelos próximos capítulos desta nova série angolana que tem de tudo um pouco onde o destaque vai, certamente, para a tão famosa quanto famigerada “intriga palaciana”, sem nos esquecermos das “milícias digitais” que, ao serviço de diferentes “laboratórios de ódio”, vão espalhando no anonimato dos pseudónimos a desinformação e calúnia ao ritmo das encomendas.
 

Receios

Os maiores receios neste momento são que a principal vítima de todo este processo venha a ser, mais uma vez, a liberdade de imprensa com o encerramento a curto prazo do Novo Jornal.
É para aí que estão voltadas as preocupações dos jornalistas sejam os do Novo Jornal, sejam de todos os outros que, dando a cara e a voz, se têm pronunciado sobre o caso manifestando a sua solidariedade aos colegas do semanário.
O destaque aqui vai para a preocupação assumida em comunicado pelo Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) repousando a mesma na “possibilidade deste ambiente inibir a liberdade dos jornalistas e a independência do próprio Jornal o que seria, em última instância um ataque ao jornalismo plural, sem o qual não se pode falar em Liberdade de Imprensa.”
Armindo Laureano, que dirige o Novo Jornal desde março de 2020, sendo na história do semanário o seu sexto director, depois de Victor Silva, Gustavo Costa, Verónica Pereira, Carlos Ferreira “Cassé”, Nok Nogueira, referindo-se à tentativa de assalto das instalações do NJ, o editorialista considerou ser a mesma “um dos maiores ataques que o jornalismo livre, independente e plural em Angola acaba de sofrer”.

Ainda ninguém se esqueceu de como os primeiros semanários independentes, surgidos em Luanda na década de 90, foram literalmente arrasados da paisagem mediática da época através de processos de compra e venda financiados por dinheiros de proveniência obscura, mas que só podiam ter uma fonte para quem conhece minimamente os bastidores da realidade política angolana.
Desde logo ficou claro que, na época, o que se pretendia era silenciar todos aqueles jornais tidos como mais ousados pelo poder, o que foi conseguido com o seu posterior encerramento, com a excepção do Folha-8 que é praticamente o único sobrevivente da primeira geração da imprensa privada em Luanda depois abertura política ao multipartidarismo, na sequência dos Acordos de Paz de Bicesse e da realização das eleições de setembro de 1992.

 

“O Jornal do João”

O Novo Jornal surge num contexto bastante diferente daquele que marcou a primeira etapa da construção da liberdade de imprensa em Angola, desde logo porque as armas do conflito pós-eleitoral já se tinham calado com a morte de Jonas Savimbi em fevereiro de 2002.
Na sua origem, a história do NJ é, de vários pontos de vista, bastante curiosa. Com mais tempo e espaço, dariam, por si só, uma boa história a contar.

Antes de mais porque, salvo melhor informação, foi a primeira aposta do capital privado estrangeiro, no caso português, no sector mediático angolano através do Grupo Espírito Santo.
A iniciativa pessoal partiu de Hélder Bataglia que era, na época, o homem que pilotava as operações do GES em Angola, como o grande ideólogo e estratega dos seus investimentos em África.
A ideia era criar no país um produto mediático ao nível da imprensa angolana diferente de todos aqueles que já tinham passado pelas bancas.
Falava-se mesmo de um “Expresso angolano” tendo como referencia o conhecido semanário lisboeta, para se transmitir de forma mais concreta a ideia de um projecto jornalístico altamente profissionalizado, numa crítica implícita ao jornalismo que dominava as publicações privadas que então circulavam na capital angolana, tido como demasiado especulativo em certos círculos mais oficiais.
João Lourenço era o segundo homem do MPLA, na sua condição de Secretário-Geral do partido no poder, tendo sido com ele que os contactos foram estabelecidos através de uma terceira pessoa que já funcionava como o principal parceiro angolano do grupo. Contactos exploratórios para dar a conhecer ao Governo a intenção do GES investir num sector que por lei tinha limitações muito fortes em relação à participação de capital estrangeiro.
Tudo estava a correr mais ou menos bem com o projecto a avançar lenta mas seguramente após ter sido encontrado e pré-contratado o jornalista angolano que deveria assumir a sua liderança.
As coisas viriam, entretanto, a complicar-se bastante após se ter instalado a primeira crise de confiança no relacionamento entre o Presidente José Eduardo dos Santos e João Lourenço, que ditaria o afastamento deste último da sua condição de segundo homem do país e delfim do regime por um período que se prolongou por mais de dez anos até à sua nomeação para Ministro da Defesa em Agosto de 2014.
Esta primeira etapa do que viria a ser o Novo Jornal e que decorreu entre 2001 e 2003 acabou por ser interrompida como consequência da “defenestração” de João Lourenço.
Ao que consta o projecto do Novo Jornal também entrou nas contas da crise do relacionamento entre JES e JLo, alegadamente porque o Presidente do Partido nunca terá sido informado pelo seu Secretário-Geral sobre a criação de um semanário com uma tal dimensão e envolvendo capital estrangeiro.
Um dos semanários que se publicava em Luanda deu corpo a esta informação com uma pequena história em caixa com o sugestivo título “O Jornal do João”.
Passada a “tempestade” que abalou a confiança de JES em JLo, projecto NJ viria a ser retomado alguns anos mais tarde. Foram, entretanto, feitos novos contactos para se escolher um outro Director por indisponibilidade do primeiro que achou por bem não voltar a abraçar o projecto receoso de um outro recuo por parte dos financiadores, o que felizmente não aconteceu mais.

* boa muxima” significa fazer o frete.

por Reginaldo Silva
A ler | 11 Janeiro 2024 | imprensa, jornalismo angolano, liberdade de expressão, Novo Jornal