Literatura e Mais Literatura

A escrita literária é um ato voluntário e individual, assumido pelas instâncias corporais produtoras de impulsos e guiadas pela capacidade de livre arbítrio. Além disso, como se trata de um ato de linguagem, não pode escapar às constrições históricas e sociais, por não emergir senão no campo alargado das aquisições educacionais e das trocas simbólicas e comunicacionais, estendendo-se, em potência, do local ao mundial.

Posto isto, a liberdade criativa – quer dizer, imaginativa e inventiva -, sendo inerente ao ser humano, não deixa, também ela, de sofrer de inquestionáveis cerceamentos nas inesgotáveis possibilidades, tanto pelas dificuldades levantadas pelas instâncias materiais, políticas e sociais, quanto pelas limitações da formação, educação, competência e preconceitos do próprio criador. Por isso, a criação literária não é um processo de absoluta liberdade, nem o resultado pode ser final e definitivo, porque não subsiste para lá do seu tempo sem a receção, ou seja, sem a leitura, a crítica (que é uma leitura especializada) e a divulgação através dos tempos e espaços diversificados. Ela alcança mais leitores por via da democracia e do desenvolvimento local e regional, isto é, depende das comunidades leitoras menos urbanizadas e estas, naturalmente, apresentam melhores índices de leitura se, para tanto, as Humanidades estiverem protegidas pelas políticas públicas de incentivos e proteção. Quando tal não se verifica, o municipalismo democrático sofre um revés nas suas fundamentações, por sofrer da limitação de assegurar exclusivamente o saneamento básico, a energia, o parque escolar, o transporte, etc., mas não cuidar da mente e do saber, incluindo as artes e as letras, sem as quais uma sociedade é deficitária. Não bastam a escola estatal, os programas nacionais de incentivo à leitura, as bibliotecazinhas de vão de escada, porque todos se têm revelado insuficientes. No caso português, o plano nacional de leitura é sistematicamente incapaz de fornecer um panorama literário alargado de língua portuguesa e sugestões incontornáveis de leituras de obras completas e fundamentais de escritores que importariam às novas gerações. Por exemplo, não há leitura integral, no ensino básico e secundário, de Chiquinho, de Baltasar Lopes, de Lisbon blues, de José Luiz Tavares, ou de Pão & fonema, de Corsino Fortes. E é claríssimo que interessaria levar para as aulas, além desses livros, a ligação estreita desses três escritores a Portugal, Brasil e Angola, enquanto estudantes, docentes, intelectuais, políticos ou diplomatas. Literatura e vida – tem de ser - ou não valerá tanto mais a pena, e que a crítica siga em frente.

A criação literária pode ser escrita ou oral, em sentido lato ou mais restrito, mas depende sempre do uso de uma ou mais línguas, no mesmo texto ou em diversos. Pode ser comunicada oralmente, de forma presencial ou diferida (gravada), e, na maneira escrita, mais modernamente, em papel e, a partir de agora, de modo eletrónico. Já se sabia tudo isso. Mas convém repensar a literatura como estando a sair dos eixos e a escapar para uma terra incógnita, que não é a de qualquer quietude campestre e muito menos de um irrealista patriotismo obcecado. Também não será um cosmopolitismo abstrato e deslocalizado, mas talvez uma nuvem branca num junho lunar ou uma fumaça dissipada por ondas de choque. Dependendo das ondas, até pode acontecer que a literatura desapareça e, já sem ela, nem os humanos resistam a tamanha calamidade. Os nossos pequenos deuses nos protejam, com e sem fé, deste surfar por cima de toda a onda, como se não houvesse passado.

Passado isto, a literatura resulta da (des)memória dos humanos e da memória que as palavras guardam da condição humana e dos materiais de aluvião. Do real, dizem os lacanianos - e os “pós-tudo” e mais alguma coisa -, que ele não entra no texto, frase que é particularmente querida para entender que a literatura é pura fantasia, mas certo é que ficamos sempre com a sensação do déjá vu e de que o texto não pode fugir à sina de representar algo que, se não aconteceu, podia ter acontecido, pelo menos na mente de algum descabelado. Ora a melhor literatura provém fundamentalmente dos descabelados, desajustados e desmiolados, aqueles que se dispõem ao trabalho hercúleo (ou sisífico) de partir pedra, não deixando uma sobre outra, mas alinhando-as meticulosamente com a sua estética de pedreiros maçónicos e maçadores. Desmiolado ou não, mas com miolo, o artista só pode ser um sujeito em crise, que trai a sua classe ou grupo ou deles se aproveita para infernizar a vida pacata do leitor acomodado. Sem pedir licença, inventa e avança, imagina e profetiza, descompõe e recompõe, marginaliza(-se) e corteja, peleja e ataca pelas costas. Trabalho escravo de ourives, a partir pedra e cabeças, modelos e padrões, sem deles conseguir apagar a força da tradição e de todas as maldições.

O trabalho de reeducação pela liberdade da criação e da receção, posto que pertinente em sala de aula ou em lição de quebrar as leis estabelecidas das estéticas, pode dar cabo de muito profissional – seja da escrita ou da interpretação -, mas também pode passar ao lado da literatura. Como na feira de vaidades, vende-se gato por lebre, compra-se uma besta célere e dá-se encontro com uma escrita abestalhada, visto que tudo pode acontecer na imprevisível república universal das letras, tal como na vida.

Uma definição de democracia passa pela liberdade total, irrestrita, da criação, tal como na sociedade, porém, nesta, a liberdade, oh, essa miragem, é sempre enfiada no limite das restrições legais e éticas, aceites como consensuais. A criação literária é, por isso, bem mais livre do que a democracia. Porém, duas terríveis prisões impendem sobre ela: a da língua e a da mente. Andamento, movimento, é do que ela precisa. A criação literária – e artística, tal como o pensamento -, é livre de ir por onde quiser. Não é de admirar que, por vezes, leve os seus autores à reclusão e à morte, pois tanto pode conduzir a uma liberdade difícil de aceitar pelos preconceitos da sociedade – como aconteceu com Sade, Artaud, Cesário Verde ou Gregório de Matos – tanto quanto à não aceitação da sociedade e suas determinantes das vidas individuais, como constatamos com Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Florbela Espanca, Primo Levi, Cesare Pavese ou Mário Sá-Carneiro. 

Na história da literatura não existe propriamente um caminho global de humanismo, vizinhança e convivência. Não se pode afirmar que, globalmente, a literatura seja um lugar de democracia e de municipalidade, embora certos textos mostrem locais, como Bairro da lata, de John Steinbeck, ou Nós, os do Makulusu, de José Luandino Vieira. Joga-se sempre, na literatura, enquanto instituição literária – que não se restringe aos textos literários, mas engloba também um círculo alargado de participantes e de interesses -, um poder da palavra e a continuidade de tradições, tanto semânticas quanto estéticas, mesmo quando elas são refeitas, mas também um poder de influência, de grupo, de região ou de nação, inclusive de captar benesses individuais, além de interesses profissionais, educativos, ideológicos, mercadológicos, simbólicos, etc. 

O ato criativo provém do desejo de linguagem e da pulsão de vida contra a morte, mas, nesse momento de júbilo, e na continuidade do processo de racionalização do discurso literário a construir-se, a que se associa a indeterminabilidade e ambiguidade da significação, não se pode concluir que a literatura seja, na sua totalidade, um elemento de luta contra a exploração, a opressão, a injustiça e que inquestionavelmente constitua um bem para a melhoria cívica. Sabendo que ela potencia a imaginação e o raciocínio, não se pode garantir que não seja mais um dos meios de entretenimento e distração, para matar o tempo e supor que se pode viver mais vidas do que aquelas que calharam em sorte, desfolhando um cartapácio. Vemos, na atual situação mundial, que a literatura pode ser usada como muito bem entendem os poderes públicos e privados, num sistema capitalista e global, em que ela circula segundo as regras da indústria e do comércio, como qualquer elemento de lucro e capitalização, concorrendo com a salsicha. Não tenhamos ilusões, que a palavra pode matar ou perder o sujeito nos labirintos da subvida. E, no entanto, que sobrevida sobrevém aos tempos, quando lemos Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Barranco de cegos, de Alves Redol, O delfim, de José Cardoso Pires, Os miseráveis, de Victor Hugo, O estrangeiro, de Albert Camus, A senhora do cãozinho e outros contos, de Anton Tchekhov, À sombra das raparigas em flor, de Marcel Proust, Complexo de Portnoy, de Philip Roth ou A sangue frio, de Truman Capote. Que vidas! Que presenças de reais realidades! 

A língua de um texto é, na esmagadora maioria das vezes, um acaso da história, não uma liberdade fundamental. Poderia sonhar-se a elaboração em qualquer outra língua, mas o entorno familiar ou grupal obrigou-nos à que nos coube. Alguns podem escolher outra, mas a esmagadora maioria contenta-se com a prisão daquela que pensa que ama. Mas como se pode amar uma língua que nos trai a toda a hora e nos pode ameaçar de morte em situações de ghetto ou xenofobia? E nenhuma tradução pode dar a conhecer o estilo, a prosódia e a carga histórica, semântica e afetiva da língua de origem. Mas, como necessitamos de comunicação, conhecimento e saber, então, traduzimos, para não vivermos insulados e cegos perante a diversidade. Vai-se em busca da similaridade e da diferença, que, permanentemente, se tornam incompatíveis, criando a opacidade das relações sociais e culturais. Como pode um pescador de um lago do interior comunicar ao caçador da planície planáltica, em poesia, a sua angústia face à escassez de espécies para a sobrevivência? Se escrever: “largo a cana junto à fogueira/e vou com as aves”, decerto que pode não ser compreendido. E pode acontecer que isso não seja poesia. O caçador que ler pode entender que o (falso) poeta está a caçoar dos caçadores. Exatamente o que acontece com os escritores e seus críticos e leitores: um imbróglio sem fim, com equívocos, incertezas, perdas semânticas, ganhos semióticos e cada qual para seu lado em busca do que, quase sempre, entretanto, já se perdeu (a noção do que podia ser). Afinal de contas, ai mundos maravilhosos!, cenas pitorescas, dramas e tragédias, um modo de enganar a vida e a morte - e sobreviver na comunidade em comunhão com outros vizinhos chegados ou longínquos, no espaço e no tempo. Voltamos sempre a ser crianças, emparelhando textos, brincando de esconde-esconde com as traduções, traindo a intencionalidade dos escritores (oh, oh, qual deles não a possui?), buscando resolver enigmas, sem alcançar a terceira margem, desconhecendo que há uma quarta, babando raiva e ranho, rindo e comovendo-se, tropeçando numa frase, qual velhinho entrevado, sacana de linguagem!

Corsino Fortes não ganhou o Prémio Camões? Pode ser que ganhe José Luiz Tavares, ou Vergílio Alberto Veira, se houver tino e bom senso, saber e coragem, que poetas dessa envergadura não aparecem todos os dias, que é como dizer em quatro ou cinco gerações, ou mesmo 10 ou 50! Haja bom senso, haja bom senso, já que, não sendo científico, ao menos que se afigure justo! Ah, se a literatura fosse apenas o texto… mas é muito mais do que isso, minhas senhoras e meus senhores, homens e mulheres deste e daquele país. Esqueçam a literatura-mundo e o texto aberto/fechado, a literatura empastelada ou insossa, folclórica ou politicamente correta, e o escritor profissional a debitar conveniências atrás do copo de genebra… ou da proletária cerveja, esqueçam a literatice e tratem dos sem teto, sem agasalhos, sem comida, sem saúde, sem trabalho e sem salário, sem dar música, ao deus dará!

Crioulidades, hibridismos, línguas dominantes, ressentimentos, ódio à história, perda de memória, lugar de fala fabricado, racismo reverso e o verso retorcido, vamos lá ter juízo, acham que a literatura se escreve com paninhos quentes e sem trabalho escravo na escrivaninha e basta meia dúzia de patacoadas alinhadas por consenso podre para alegrar a malta? Estamos a falar de quê, do mundo da literatura que a escola de Chicago, Harvard e Columbia quer disseminar à má fila nos três velhos mundos que Mao teorizou? Está-se a defender um futuro todo crioulo para a humanidade - como se fosse possível -, sem classes, sem furacões, sem matérias-primas, sem guerras, todos crioulos, é lindo, mas não vai acontecer. A literatura que se apresente na luta e não se aposente da política. Não vetando, contudo, a poesia simbolista de Camilo Pessanha, nem a prosa castiça e irónica de Uanhenga Xitu/”Mestre Tamoda”, tão aparentemente opostos e tão lindos. 

É necessária uma crítica da crítica da literatura, visto que somente com a acidez crítica sobre a literatura e suas franjas é que se pode construir uma sociedade ciente da qualidade versus mediocridade, que, com a autocrítica e a metacrítica no território da cultura, saiba distinguir a arte consequente do entretenimento e decoração. Não há que ter medo de ser criticado. Com pedagogia e caldos de galinha, sim, aceitemos o erro, o fiasco e o talvez merecido silêncio. Faz parte da vida. Já nos basta tanto ruído à base de inutilidades. Pinheiro Chagas vendeu milhares de livros, no século XIX, mas quem o lê agora? Ainda se edita, mas lê-se pouco e pouco adianta, porque estava fora de moda já no seu tempo. É uma questão de tempo - esse maganão, que põe a mão por baixo à literatura, mas não à vida!

Manifestos da língua? A partir de Óbidos? Francamente, o mundo está sem pernas, já sabemos. Ela não precisa disso para nada. Seja qual ela for (a língua), que a lei a contemple, que seja usada e abusada, que sirva de comunicação, em casa, no ensino, na vida pública e na alcova, no bar, no parlamento e no desporto, que floresça e não feneça. E, com ela, nela e a partir dela, que a literatura medre sem merdas que a cerceiem e saiam de vontades umbigais. 

A literatura pode ser uma delimitação de local que simboliza o que é humano e pode ser um universal criado a partir do elemento simples e exclusivo de uma microcultura, sem que tal signifique diminuir o valor de uma dessas culturas de pequena escala. O local está contido, como totalidade que tende a compor o regional e o nacional, no Chiquinho, de Baltasar Lopes, por sua vez representando a universal formação e passagem da infância para a adolescência e a idade adulta, apontando ao alvo da seca e do colonialismo. O universalismo imaginário – porque se trata sempre de uma impossibilidade empírica e textual -, normalmente subjetivo e procurando a abrangência de sentidos, e sobretudo de sensações, tende a tornar-se deslocalizado e materialmente irreconhecível, situando-se mais ao nível dos pensamentos abstratos, dos sentimentos e das idealizações. Leia-se, portanto, se assim se preferir, a extensa obra poética dos Exemplos, de João Vário, para lá de notações referenciais, que as tem, mas que, de qualquer modo, não se reclamam da Macaronésia e se apresentam como dissertações exemplares e exemplificativas das inquietações de um ser humano, sem mais. Quase se podia dizer: de um ser humano nu, um esqueleto pleno de humanidade, opondo-se à barbárie do locus sequestrador ou à pretensão arrogante de significar o mundo, tomando-o nos braços.

Municípios, parlamentos, bibliotecas, editoras, gabinetes, fábricas, universidades, aldeias, escolas, lugarejos, latrinas, esconderijos, choldras,  templos, pastagens, córregos e grutas, deixem passar a língua livre louca aluada lustrosa leviana leve e plumitiva da literatura indecorosa e imorredoira, lutadora e libertina, ensandecida e visionária. A língua e a literatura são duas terras parideiras que a chuva fecunda e, por isso, é muito provável que os deuses sejam deusas, femininas – ou trans - e manda-chuvas! Que as deusas nos livrem dos poderes, para que o cabo dos trabalhos seja verde, e que elas, as deusas da linguagem e da criação de mundos, metam as mãos na massa da transformação, dando-nos pão em fôrma de livros, sagrados, sejam eles verdes, amarelos, brancos, azuis, pretos ou vermelhos. Que a paz linguística e literária seja connosco!

 

(Texto escrito para o Encontro de Escritores em Cabo Verde, em outubro de 2023, promovido pela UCCLA e pela Câmara Municipal da Praia)

 

 

por José Luis Pires Laranjeira
A ler | 7 Fevereiro 2024 | africana, Cabo Verde, crítica literária, Literatura