Inebriantes metáforas consagram a escrita etílica do poeta - Filinto Elísio – Li Cores & Ad Vinhos

Ilustração de Mito Elias ( para Poemas de Filinto Elísio em Li Cores & Ad Vinhos ) - Lisboa - Maio de 2009Ilustração de Mito Elias ( para Poemas de Filinto Elísio em Li Cores & Ad Vinhos ) - Lisboa - Maio de 2009

 

Explosões dos sentidos, êxtase do verbo. Tais sensações encontram-se após a travessia instigante, surpreendente e prazerosa pelos cinquenta e três poemas do livro de poesia de Filinto Elísio, com o etílico e sugestivo nome Li Cores & Ad Vinhos. Este é o seu quinto título em poesia; constata-se, comparando ao anterior “Das Frutas Serenadas”, o aprofundamento metafórico e a semântica concupiscente das palavras buscando novos significados que vão além dos sentidos inertes impostos pelo discurso estabelecido.

Na poesia elisiana, o Verbo degusta, etilicamente, o poder transformador da palavra conduzido por um sujeito lírico inquieto que afirma: “jamais deixarei morrer cá dentro o viés /que transforma esta amargura em poesia” (p 13).

É no mergulho à essência das palavras, atravessando as fronteiras dos sentidos e tendo a ousadia de investigar o âmago da liberdade poética que nos deparamos com imagens inusitadas e belas, reveladoras do compromisso assumido, dos riscos a que se submete o poeta: “De todas as estradas, algumas por andar, /As de sinuosa curva das palavras, a mais íngreme,/Com metáforas penduradas ali no peitoril,/ São as que, por visceral, me motivam à Poesia…” (p. 81).

Como podemos perceber, caberá ao leitor desvendar os misteriosos versos, as inesperadas imagens que se formam a partir da imersão no desregramento dos sentidos proposto pelo sujeito lírico elisiano, a começar pelo inebriante título do livro: Li Cores & Ad Vinhos. Está presente o lado dionisíaco, o embriagar-se por licores e vinhos; por outro lado, há o desejo sinestésico, plástico, de ler as cores e de adivinhar, de tentar descobrir o insondável mistério da criação poética:

“Não te direi tudo dos verbos,/ (…) Onde a semântica, ciosa,/Se refugia silenciosa entre mim e o nada… /Virar, em passe de mágica, as cores de avesso,/Transmutar, pelo revesso, fiapos soltos de rosa,/Prosa que também se solta as flores que voam…/(…)Deste recheio de êxtase, de tudo ser nada disto…” (p. 81).

“Qual é a cor da música?/

Seu gosto de fruta e de cravinho.(…)/

As horas do teu corpo batem/

Em que lugar quando ressoa/

Meia-noite no meu poema?(…) /

Tudo isso adivinho seres tu,/

Posto que travam como vinho/

As cores que li no gosto.(…)/

Tempero, em que novelo/

És mais água do que sal?/

Concha, em que segredo/

Me és palavra repentina?/

A cor da música…” (p. 55)

A metapoética predomina no livro, ao versar sobre a criação e o indecifrável segredo envolvente da poesia, somos convidados a um jogo inusitado, regado pelo néctar simbolista das letras elisianas, que esgarça o concreto e a tudo metaforiza:

“Tais palavras, como que a desejarem /Metáforas e seus caminhos transviados” (p. 83).

Devemos escutar os poemas “nesta acústica de pétala” (p. 51) para desvendar a explosão etílica dos sentidos em “Ad Vinhos” com suas enigmáticas metáforas a adivinhação lúdica mostra-se: Manifesta-se tamanha complexidade “de uma poesia que não espera pelo vento” (p. 39), de um poeta “vitaminado pela sintaxe (…), semântico de mim próprio” (p. 39), o sujeito lírico expande-se pelos elementos primordiais da natureza, “Ora sou água, ora sou fogo / E se me invento terra, ar” (p. 61), para transparecer a imensidão da sua poesia: “Poente que sou, mirante do nada / Cavaleiro andante, aventureiro, / Puro horizonte tudo o que sou…” (p. 61).

Esse alargamento é bem sugestivo na figura da pedra, em que novas significações são exploradas, sempre com a presença da metapoética, fundindo-se, confundindo-se: 

“Uma pedra, ínfima que seja,/No seu significado de coisa/No que esconde de átomo,/Nos conta Deus em tudo…/Medra nela certa melodia, Alguma dita no seu dorso,Outra dentro da matéria,/Onde, diurna, a lua soletra…(…)/Pode-se retornar ao Verbo/Ao recomeço, sobretudo,/Do encanto da poesia…” (p. 27).

Mito Elias e Filinto Elísio, desde os tempos da 'Sopinha de Alfabeto' aos dias de hoje, a cozinha continua... (arquivo pessoal de Mito Elias)Mito Elias e Filinto Elísio, desde os tempos da 'Sopinha de Alfabeto' aos dias de hoje, a cozinha continua… (arquivo pessoal de Mito Elias)

Há de se destacar o cuidado gráfico de Li Cores & Ad Vinhos, tendo as páginas agraciadas com as ilustrações do artista plástico Fernando Elias, o Mito, amigo de longa data do poeta desde os tempos da “Sopinha de Alfabeto” na década de 1980.

Os desenhos de Mito com seus traços que passam do insinuante ao simpático, atingem a ironia e o erótico, ajudam a compor a aura mística e misteriosa dos poemas, tornando-se essenciais ao livro e que, em nenhum momento, criam conflitos entre poema e desenho, mas, sim, apresentam uma harmonia impressionante. Harmonia que se estende à sólida amizade dos dois artistas cabo-verdianos.

Tal como o pedreiro Arménio Vieira, Filinto Elísio encara o seu ofício de forma corajosa, ousada, destemida, ou seja, ao “escrever de pulso aberto” (p. 17) procura extrair “poesia da pedra” (p.17), deslocando-se das sensações anestesiadas, das emoções dilaceradas dos dias atuais. Sua poesia mostra um caminho possível para suportar a amargura da realidade, valendo-se de um prazer ilimitado de fruir com os sentidos, de gozar com as palavras.

Filinto Elísio, ao transcender a semântica usual e apetecer o infinito metafórico, brinda-nos com sua bela escritura etílica em Li Cores & Ad Vinhos. Com isso, mais uma vez ultrapassa as fronteiras da literatura cabo-verdiana com sua inconfundível sensibilidade existencialista e universal, e agradará a todos os leitores de língua portuguesa que se inebriarão com seus poemas

 

Ilustração de Mito Elias (para Poemas de Filinto Elísio em Li Cores & Ad Vinhos) - Lisboa - Maio de 2009Ilustração de Mito Elias (para Poemas de Filinto Elísio em Li Cores & Ad Vinhos) - Lisboa - Maio de 2009

por Ricardo Riso
A ler | 21 Fevereiro 2011 | artes plásticas, Cabo Verde, Filinto Elísio, Mito Elias, Poesia caboverdiana