Educação e desenvolvimento: como tónica da liberdade?

Responder a esta questão leva-me a exercitar o pensamento sociológico que busca primar pela conexão dos conceitos, não só nas ciências sociais em geral, mas também fora do crivo científico. A verdade é que a liberdade pode representar uma irreversibilidade na composição e concretude da educação, do mesmo modo que a eficiência da educação visa uma liberdade, os dois elementos coexistem e mutuamente se alimentam. É por esta liberdade que a geração de Amílcar Cabral na década de 60 e 70 lutou ferrenhamente, não por um simples ter/sentir a voz e expressar através da liberdade, mas também lutar contra as opressões sociais, políticas, económicas e culturais que se verificavam no momento, ainda que era mais difícil (devido ao regime colonial) do que atualmente. A educação não estava fora dos propósitos da luta de libertação nacional da Guiné-Bissau. O que quero dizer com isto? 

Pois, a narrativa do desenvolvimento nessa perspectiva joga tripla função na afirmação de ambições. Em primeiro lugar, parte da função emergente da liberdade e educação com significância existencial; em segundo, procede da relação copulativa e interdependente entre a educação e liberdade à revelia da proveniência e, por último, parte duma lógica do encontro futuro, ou seja, a chegada da educação e liberdade que tem a ver com objetivos traçados. A história das independências nos últimos 30 anos do século XX pode ser entendida como a definição do “desenvolvimento” e a Guiné-Bissau não foge à regra, por mais que o conceito de desenvolvimento seja naturalmente complexo. 

Dedico-me assim a traçar a ponte entre “Educação como prática da Liberdade” e “Desenvolvimento como Liberdade”, duas obras do século XX. A primeira é de Paulo Freire, pensador brasileiro na área da educação que teve uma contribuição significante no Brasil e cujo método de ensino foi praticado em vários países do mundo (inclusivé na Guiné-Bissau), participando na alfabetização da população depois das independências. A segunda é de Amartya Sen, pensador indiano, Prémio Nobel em Ciências Económicas em 1998. Os dois pensadores têm diferentes formações, mas a objetividade parece-me convergente sobre a preocupação com a liberdade. A “liberdade” ganhou um significado agudo nas duas obras na concepção de toda a riqueza social, mas não fugiu uma certa complexidade a respeito do desenvolvimento e da imersão da liberdade em que a presença da sociologia é inerente, é este, o objetivo em questão, que daqui em diante sigo tratando.  

Paulo Freire (1969), observou a educação como ato de interdependência de saberes práticos e imagináveis entre indivíduos para práxis de liberdade cujo propósito visa separar os limites/barreiras impostos pelas circunstâncias sociais e espaciais da socialização. Observa-se que o sujeito é tido como maior detentor e criador do seu meio social, isto deve-se à manutenção do diálogo com o outro, em que a consciência e prática democrática assumem propensões para atingir a liberdade e componentes que lhe são fundamentais na diversidade e condição de vida em contínua adaptação. Freire enfatiza que isto passa por 

uma educação que possibilite ao homem a discussão corajosa de sua problemática. A sua inserção nesta problemática. Que o advirta dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhe força e coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido às prescrições alheias. Educação que o coloque em diálogo constante com o outro. Que o predisponha a constantes revisões. À análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão. Que o identificasse com métodos e processos científicos (FREIRE, 1969 p. 90). 

A observação conceptual freiriana tem uma função destrutiva com a ideia estática que concebe a educação numa dimensão unicamente de reprodução da classe, que não permite a emersão dum paradigma imaginativo diferente do mainstream hegemónico. Sob a mesma lógica analítica da descontinuidade proposta por Paulo Freire (1969), Amartya Sen (1999) foge das abordagens tradicionais (encabeçados pelas de mercado que concebe a educação como parte do funcionamento ativo do mercado). Sem entendee o desenvolvimento como a maximização dos tecidos sociais dos indivíduos perante as instâncias e desafios sociais que os rodeiam, trata-se do exercício da liberdade intrínseco à sua humanidade em que a educação (não só) é um dos recursos de extrema importância na prática da liberdade no processo de desenvolvimento. Ou seja,

 […] o desenvolvimento tem de ser mais referido à promoção da vida que construímos e às liberdades de que usufruímos. Alargar as liberdades que, com razão, valorizamos não só torna as nossas vidas mais cheias e desimpedidas como também nos permite sermos pessoas socialmente mais completas, dando expressão à nossa vontade e interagindo com – e influenciando – o mundo em que vivemos […] (SEN, 1999 p. 30).

A justificação convergente entre a educação e desenvolvimento não consta e nem se apercebe aqui na associação concetual entre ambas, muito menos na proveniência – trata-se duma educação que comparticipa e desempenha a função social como âncora na mobilização para aptidões cognitivas e afetivas no empenho do exercício de cidadania. O reconhecimento de Freire (1969) pela educação como ato de coragem e a análise da realidade no qual julga a necessidade de não se isentar à discussão criadora, sob pena de ser a farsa educativa – demonstra-nos o papel pedagógico da educação crítica na formação do sujeito atuante. 

Se a educação é prática da liberdade em Freire, essa prática em Sen é inerentemente justificada pelos propósitos que legitimam o indivíduo como protagonista da sua história e suas potencialidades dentro e fora do ambiente social. Neste caso, o papel da escola como instituição proveniente duma educação formal, que une o professor e estudantes dentro da sala de aula para partilha e aprendizagens contínuas diversificadas (permitindo o conhecimento sócio-histórico do país e da condição social de cada sujeito pertencente a este espaço), é fundamental para o desafio da sociedade em geral na luta contra as desigualdades sociais, e salientar as escolhas enquanto percurso para um destino satisfatório. 

Escola primária na zona Leste da Guiné-Bissau. Foto RJEscola primária na zona Leste da Guiné-Bissau. Foto RJ  

Para Freire (1969, p. 6), a educação como prática da liberdade não está atrelada ao “projeto dominante”, pois atrela-se por razões da aspiração humana, “todo aprendizado deve encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação real vivida pelo educando” assim “a liberdade é concebida como modo de ser o destino do Homem, mas por isto mesmo só pode ter sentido na história que os homens vivem”. O indivíduo há-de pensar consoante a lógica das divergências à volta do seu dia a dia, que dá margens de reivindicação contínuo deixando de ser subjugado a protótipo impróprios.  

Seria isto: as sucessivas greves no setor da educação na Guiné-Bissau mostram a conscientização enquanto cidadão com direito as necessidades fundamentais. E põem em relevo as questões: que utopias possíveis nestes tempos em que a educação de qualidade é-nos recusada? Para que serve a educação numa sociedade onde as oportunidades sociais são recusadas? O impacto de não ter a acesso à educação como direito perante a socialização do indivíduo tem repercussões tristes de forma duradoura? As respostas a estas questões resumem-se na ilusão implícita sobre o aprovisionamento da educação para quem o deve fazer e sua indiferença na Guiné-Bissau. Cabe ressaltar que o exercício da liberdade individual serve como direito à educação, vem atrelado ao melhoramento de vida das pessoas, à capacidade de escolhas individuais e afirma, ao mesmo tempo, a condição nos meios e fins a que o desenvolvimento versa.

A educação é pilar no desafio da insurgência popular. A sua visão contemporânea passa necessariamente por uma educação que permite o educando a incorporar as lições de vida e diversidade para debate das questões claramente da sua integração. Certamente, é a educação que marca os caminhos para a viabilidade da democracia. “[…] Uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política […]” em que a partilha de lições de vida e na relação comunicativa fazem a “diferença” ao nível da realidade assumindo o papel da “mudança de atitude”, na abdicação de situações improváveis permitindo assim a forte participação e ingerência na transição e consolidação da democracia, daí a crítica servir de fomento para a mentalidade democrática numa sociedade em constituição da democracia (FREIRE, 1969 p. 12).

Dístico em crioulo da Guiné-Bissau. BÔ DANU NÔ DIRITU NÔ MISTI BAI SCOLA que significa DÊ-NOS O NOSSO DIREITO, QUEREMOS IR À ESCOLA. Foto RSM&CPDístico em crioulo da Guiné-Bissau. BÔ DANU NÔ DIRITU NÔ MISTI BAI SCOLA que significa DÊ-NOS O NOSSO DIREITO, QUEREMOS IR À ESCOLA. Foto RSM&CP 

Ao encontro disso, o exercício da liberdade é a apetência segura do ciclo de desenvolvimento.

O desenvolvimento consiste, nesse caso, na superação das imposições e limitações que põem em causa as escolhas e oportunidades para a manifestação da liberdade. A sua constituição (liberdade) como característica de desenvolvimento não trata só dos elementos sociais (educação, saúde, habitação) visivelmente tratado por Sen mas, por um lado, do pertencimento dos vieses políticos e cívicos da sociedade em geral. (SEN, 1999).

A inoperância da liberdade está ligada automaticamente à exclusão económica e social, ou melhor, na privação do indivíduo do acesso à escola de qualidade desde o ensino básico, médio para sua maior noção de si e toda estrutura de opressão com repercussões num futuro próximo. A recusa do conhecimento histórico através do acesso à educação e a dinamicidade do conhecimento empírico reconhece-se nas partilhas de saberes não lineares, da cultura cidadã, de matar a fome, dos alimentos para a sobrevivência, dos remédios para doença, de roupas adequadas e águas potáveis, tiram a liberdade dos indivíduos. Este descompasso anexa-se ao desnorteamento da humanidade do indivíduo enquanto cidadão no exercício de seus direitos básicos, permitindo-lhe assim a uma rota para uma falência.

A educação a partir da perspectiva do desenvolvimento é um  direito social básico no acesso a serviços sociais asseguradas pelo Estado e gerenciados pelo executivo com total disponibilidade em assumir os seus princípios e capacidade para responder às demandas internas populacionais sobretudo dos mais vulneráveis. Revela no entanto à revelia de um dos exemplos na perpetuação do direito natural assinadas nos pactos e convenções regionais e internacionais. 

A conceção holística partilhada entre Freire e Sen refletem não apenas sobre o papel da educação num mundo em constante evolução – contra o capitalismo imperante, bem como a liberdade na família, escola, grupos de interesse e instituições. Enquanto representantes duma estrutura em que o indivíduo é parte desde sua socialização primária até à sua fase adulta. 

A liberdade com carga expressiva, permitindo o ambicioso projeto arquitetado pelos indivíduos e todas as instâncias que permeiam o seu universo. Uma vez que, na conceção de Freire, a alfabetização e conscientização são indissociáveis na conjugação de aspirações inerentemente humanas – uma questão da prática da liberdade – em Sen consiste nos direitos humanos, cidadania ativa e consequente democracia no processo de desenvolvimento – uma questão de liberdade concreta.    

No entanto, estas visões não só versadas ao humanismo do indivíduo, bem como o direito natural que lhe assiste, emergem duma pedagogia de progresso humano e sociedade em que as oportunidades são reais ao pé do equilíbrio social e todas as suas ramificações. A ausência de manifestação desta liberdade determina a constituição de um espaço de extinção de condição humana, ao contrário da sua promoção perante quem deve promovê-lo. As privações sociais e económicas determinam o esvaziamento da liberdade, levam o indivíduo a um ritmo condicional precário em torno da vivência à deriva da acessibilidade, da condição de ciddão do indivíduo, da emancipação perante a mobilidade de pensamentos e despertar sobre consciência individual e coletiva.   

A realidade é que, cada vez que o mundo mais nos chama na Guiné-Bissau, para dar resposta sobre a educação, o cruzamento da educação na conquista de objetivo que propicia os indivíduos a oportunidade de observarem o mundo consciente e real – a preocupação a este setor é menos vigente. O cumprimento do desenvolvimento no país significa o exercício contínuo da educação como parte dos constituintes no processo de desenvolvimento. Daí a indivisibilidade da educação como condição do desenvolvimento para coexistência a tónica da liberdade.  

Referências

FREIRE, Paulo. (1969). Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra.

SEN, Amartya. (1999). Desenvolvimento como liberdade. Editora Gradiva.

por Armando Arnaldo Correia
A ler | 28 Fevereiro 2020 | educação, escola, Guiné Bissau, Paulo Freire