Um arquiteto Abaporu a desenhar “The Monumental Lighthouse Which the Nations of the world will Erect in the Dominican Republic to the Memory of Christopher Columbus”

Parece ironia destas que faz a história acontecer, ou talvez obra incerta do acaso; fato é que a exposição que temos na Kunsthalle Lissabon, proposta de Engel Leonardo, traz a tona uma camada soterrada do tempo passado e quase invisível. Contudo, ao trazer de volta um presente apagado, realiza o lampejo do ocorrido, uma faísca do pretérito preterido, ameaçando visualizar-se estranhamente nessa repentina ignição e acender nossa imaginação, como se o fogo dos sentidos estivesse prestes a dar-nos iluminação própria e alucinada. Percorremos aqui um estrato para o qual nossos olhos ainda não alcançaram a completa visão, quanto menos um conceito do acontecimento que o faça crível diante da nossa miragem, entretanto, tentamos ver algo maior. Tentemos ver!

Há que se duvidar: seríamos potentes o suficiente para enxergar o quanto uma pequena sala ocupada por um conjunto de linhas coloridas, em feitio de “esculturas geométricas”, estaria produzindo um efeito desterrador na História da Arte? Tudo ainda mais complexo por se tratar de uma recuperação surpreendente de obra relativamente menosprezada na produção de Flavio de Carvalho, ele mesmo um mestre da ironia. É sempre curioso que o desprezo devotado a sua criação como arquiteto deva-se ao argumento de que tais obras nunca foram, por assim dizer, “realizadas”; diz-se que tais obras seriam apenas “projetos” delirantes e megalômanos que jamais vieram conhecer a luz dos dias modernistas de então, tornando-se hipoteticamente, por isso, um fato histórico secundário e invisível. Irônico ainda em se tratando deste caso, pois como sabemos o desenho do arquiteto inglês Joseph Lea Gleaves para o Farol de Colombo (selecionado no concurso do qual Flavio participava naqueles anos 20) viria tão somente a ser construído em 1992, sete décadas depois, como uma reinvenção fake do passado em meio a epifania oficial dos 500 anos do “Descobrimento das Américas”. Melhor seria se nada tivesse sido construído, mas a piada é que o monumento foi ascendido.

E na fieira de inusitados, em tantas emergências de projetos, o de Flavio de Carvalho refaz-se justamente hoje, noventa anos após a sua publicação (ocorrida em 1928 em Nova Iorque), desprendendo-se do catálogo que compila os melhores projetos apresentados a The Christopher Columbus Memorial Lighthouse Competion. Deste livro foi que Engel prospectou estilhaços desenhados, respeitando rigorosamente a natureza fragmentária de seu material, eu diria até mesmo numa atenção aos valores ali contidos inconclusivamente, de propósito. Na vertigem dos fragmentos, o artista busca desmontar a máquina para entender o contorno de cada uma das pecinhas e decifrar o seu funcionamento. Notável que Engel tenha nascido ali e convivido com este sítio mítico na República Dominicana, permitindo que a sua própria sensibilidade detectasse in loco os contraditórios efeitos de um mecanismo quimérico e do inevitável paradoxo que há entre “Projeto” e “Realização”. Desta feita, Engel Leonardo opera uma “reconstrução” do desenho mais utópico proposto ao concurso e o faz para produzir uma distopia, sondando nos ecos destas páginas desenhadas a sua condição e projeção inatingível, de tal modo que as ressonâncias se fazem espaço e o espaço da galeria toma forma de sítio, como se uma estranha e imaginária arqueologia pudesse ser capaz de nos restituir o fluxo perdido das narrativas modernistas daqueles anos 20. E por que não? Talvez até ainda impor uma mudança de perspectiva neste assunto já tão ruminado e codificado, já tão massante e digerido, mostrando o quanto muito sempre se deixou de lado na consideração do experimentalismo das vanguardas em seu progresso do século passado. Mas desfazer-se do modernismo ou querer corrigir-lhe o fluxo revolvendo sedimentos é só o chover no molhado. Engel na verdade opta por um tipo de reconstrução que espalha lascas do projeto e as mistura com outras arquiteturas, como quem semeia o design e faz desta modernidade nele contida uma espécie de relíquia disseminada em pequenos bocados. Tal gesto, inclusive, reviveria algo do método e do trabalho que os museus fizeram, na “preservação” dos templos antigos desaparecidos de seus locais originários ou destruídos por catástrofes, entretanto salvos na diáspora dos “objetos arquitetônicos” que sobrevivem nas coleções dos mais diversos países, formando um puzzle virtual e que fica exposto como vestígio, na condição estranhamente fetichista de “obra de arte”, talvez a sina da própria modernidade extemporânea.

Para dizer a verdade, eu odiaria fazer qualquer discurso pós-colonial ou adotar qualquer outra estratégia para dar lugar de consolo a um troço qualquer, pois o que teríamos que aceitar aqui é uma evidência desconhecida apenas pela própria ignorância dos livros; sabe-se lá quais são as tantas razões que há. Prefiro não pensar no quanto nos tornamos preguiçosos e nos desvencilhamos da análise de fontes primárias, neste conforto teorizante de citar livros para provar aquilo que os novos livros querem escrever e buscam atualizar da historieta toda. Nada disso vem ao caso pois no achado do artista só vale entender a sua potência própria. Devemos reconhecer que estamos sempre a depender de artistas e de suas vidências para nos esfregar nas caras as evidências do passado, como faz Engel agora mesmo. Mas eu me permito apenas dizer isso como uma conclusão apressada, pois daqui por diante será o debruçar-se sobre o assunto que vem à baila na proposição de Flavio de Carvalho que tanto seduziu Engel Leonardo.

Vista da exposição com Guerrero (2018), Palma (2018) e Puerta (2018), foto de Bruno Lopes.Vista da exposição com Guerrero (2018), Palma (2018) e Puerta (2018), foto de Bruno Lopes.

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Em 1928 dois acontecimentos visuais inauguraram o tempo de uma vanguarda “não-Ocidental”, juntamente com o literário Manisfesto Antropófago, escrito e publicado por Oswald de Andrade. No mais das vezes, esta linha de frente que revolucionaria o universo da arte ocidental na primeira metade do Século XX (ouso dizer), tem sido encarada pelo seu aspecto textual e reduzida em termos de sua expressão plástica ao episódico, como se as criações visuais não fossem além do febril pendor de alguns poucos artistas que ilustram a as dentições da Revista de Antropofagia. Claro, o primeiro objeto de arte que se evoca sempre, o Abaporu pintado por Tarsila do Amaral (hoje na coleção do MALBA na Argentina), é a obra icônica que teria desencadeado naquela geração de poetas e artistas uma consciência primitivista e visceral, alegoria maior de um retorno do “refusé”, digerindo a paternidade do Déjeuner sur l’Herbe de Manet e a convertendo num outro totemismo, carregado de alteridade. O Abaporu de Tarsila foi na verdade o fato estético que inspirou Oswald a escrever o Manifesto. Mais um parêntesis: curiosamente este ano a tela foi exposta no MoMA de Nova Iorque de uma forma ainda um tanto quanto banal e isolada, refazendo esse lugar comum de uma “Tarsila antropofágica”, sem dar a importância que lhe é própria, pois lá se resumia como se Tarsila fosse apenas a esposa do dono do manifesto, com anedótica consideração de sua amizade com Brancusi, uma tal discípula de Leger e etc, etc e tal; restando fazer-se a sua associação com Flavio de Carvalho na disposição em uma vitrine da capa de livro, bem literariamente ilustrativa, que ele desenhou para Cobra Norato do poeta Raul Bopp. Mas vamos em frente. 

Há contudo um segundo acontecimento a manifestar-se visualmente naquele mesmo ano de 1928, a “Arquitetura Antropófaga” de Flavio de Carvalho, esta última, como já dissemos, ainda pouco tratada e relevada em sua especificidade. Talvez seja contudo uma das chaves que destrancariam os cofres retóricos em que os tesouros de Tarsila e Oswald foram trancafiados numa redoma de lugares comuns familiares. Neste sentido a exposição aqui apresentada na Kunsthalle é também uma resposta aos equívocos ventilados pelo MoMA, muito embora a própria questão enigmática que se resolve em Lisboa não tenha sido formulada nestes termos pelo artista e pelos curadores, sendo apenas uma coincidência fortuita a sua correspondência com o que ocorreu em Nova Iorque. Que felicidade podermos presenciar as potentes obras do acaso!

Tanto Tarsila quanto Flavio, vale dizer, injetam uma dose precisa de alucinógeno na emergente coquetterie Art Deco que graça pelas Américas, disseminando um outro vírus mutante na epidêmica estetização que se alastra no mundo, pervertendo este neo-decorativismo que daria a identidade global naqueles anos 20 para as vanguardas que começavam a ser consumidas em seu futurismo generalizado pela sociedade industrial. Em resumo, tudo se passa nesse caso como se os dois fossem xamãs inoculando nos olhos contemporâneos um princípio ativo que faz miragens miraculosas. Tais elementos do passado ainda são vivos, e permitem a nós penetrar no reino das imagens gráficas (apenas aparentemente domésticas no seu feitio decorativo), como se através delas habitássemos um templo selvagem e de um primitivismo altamente sofisticado. Essa operação de deslocamento do Déco, feita por Tarsila assim como por Flavio, nos mostra Engel Leonardo, é de uma potência atualíssima. O jovem artista sugeriria assim, vermos como esse traço mitológico e alucinado antecipou em muito o experimentalismo das vogas de Op Art e Kinetic Art dos anos 60 e 70, ou talvez tenha ido até muito além, principalmente por não se bastar ao efeito visual e cinestésico, como creio. Claro, nisso precisaríamos até mesmo recolocar lado a lado as construções paradoxais de volumes e estruturas feitas por Brancusi e refletir como a relação entre Tarsila e o escultor se processava num estrato mais profundo. Assim com também podemos colocar certos dispositivos de Tarsila, Brancusi e Flavio em relação com as máquinas/discos das Opticeries de Duchamp, propostas naqueles mesmos anos 20, para que tenhamos uma dimensão de quanto o deslocamento deste “Modernismo Decorativo” estava traçando uma verve experimental para além dos esquematismos Cubistas, abrindo essa nova fronteira expandida da arte e que acabaria nos dando horizontes de uma arte realmente experimental, sem dúvida, até muito mais experimental do que os engenhos oníricos banalizados pelo Surrealismo e pela publicidade de efeitos especiais. Nisso tudo, as escolhas de Engel Leonardo são muito felizes na sua potente evocação, pois elas trazem ao espaço estes motivos aparentemente ornamentais de Flavio de Carvalho para o Farol de Colombo, e as novas obras expostas em Lisboa conferem o dinamismo próprio de seu jogo alucinante, por vezes até os equiparando aos traços de uma coluna infinita (vale notar, algo que ninguém até aqui havia compreendido de maneira tão substantiva).

Vista da exposição com Guerrero (2018), Bejuco (2018), uma pedra proveniente da Praça Cerimonial Yuboa e Piso (2018) foto de Bruno LopesVista da exposição com Guerrero (2018), Bejuco (2018), uma pedra proveniente da Praça Cerimonial Yuboa e Piso (2018) foto de Bruno Lopes

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Resta-nos pensar um bocadinho mais essa dimensão do Déco Ameríndio na performática arquitetura proposta por Flavio de Carvalho para o Farol de Colombo, ele mesmo dizendo-se discípulo de Tarsila, já naquela época. Sabemos como os estilemas industriais de uma abstração foram particularizando-se neste Internacional Style nos anos 30 e 40, gerando toda a sorte de nacionalismos na América e na Europa. Tanto na consequência urbana dos quarteirões erguidos por Rockfeler na Midtown Manhattan e seu nacionalismo norte-americano de gentrificação e agenciamento do trabalho barato após o Crash de Wall Street; como quanto no estilo Português Suave alimentado pela propaganda do Estado Novo sob o gosto modernista de António Ferro e sua utópica Expo do Mundo Português. Mas no caso de Flavio de Carvalho a apropriação do Deco é anterior a este momento, ainda quando esta poderosa máquina de stylising estava no seu nascedouro, e ele a operava pervertendo antecipadamente toda docilidade e impondo-lhe um curto circuito, contaminando o sistema de referências modernizantes e invertendo sinais do próprio colonialismo Panamericano que inspirava o projeto deste Memorial Light House na cidade de Santo Domingo. 

Diga-se de passagem, parece fantástico que esse temperamento de antropófago buscasse realizar-se fora do Brasil, na primeira cidade erguida em todo o continente do Novo Mundo, onde por esforço norte-americano planejava erguer-se o maior de todos os monumentos devotados ao descobridor Cristóvão Colombo e junto dele um imenso aeroporto que garantiria um entreposto de conexão para todo o continente de Norte a Sul através da aviação. A intenção do concurso era por si só alucinada e ia além da seleção de um monumento Pan-americano: era a intenção de transformar o sítio em que primeiro aportou a Civilização Ocidental, ao cruzar o Atlântico, em um templo sagrado, com a implantação de uma tumba faraônica onde seriam depositados os ossos do navegador mor como a relíquia de fundação das Américas. É como se, mais do que isso, é literalmente isso, Flavio de Carvalho invoca, já em sua versão proposta, os deuses Maias e de outros povos meso-americanos e pré-colombianos para abrigar o esqueleto do colonizador devorado pela sífilis, como quem anuncia a vingança canibal dos colonizados, como se esta estivesse a ponto de se alastrar mais uma vez pelo mundo como uma onda estético-performativa alucinógena, mostrando que a imensurável monumentalidade ambiental dos ameríndios era, na verdade, quem havia de conquistar a Europa, quando então, Colombo seria apenas o mensageiro deste novíssimo mundo que se processava. 

Este perspectivismo ameríndio sobre a civilização ocidental, como o conceituou Eduardo Viveiros de Castro, já era pensado de uma maneira radical por Flavio de Carvalho, pelo menos sentido e vivido por ele. Tal visada desdobra em outros lances logo depois do concurso que não venceu, gerando pelo menos outros três grandes petardos e que deveriam ser considerados em conjunto com o plano urbanístico-arquitetônico para o Farol. Apenas enumero-os aqui: 1) a conferência “A cidade do Homem Nú” (lida no próprio Congresso Panamericano de Arquitetura que envolvia o concurso e que, na minha opinião, reflete sobre Santo Domingo como primeiro experimento urbano das Américas); 2) a sua performance-livro Experiência n. 2 (na qual ele confronta-se a uma procissão de Corpus Christi num selvagem duelo erótico-alucinógeno-canibal com a multidão num ensaio de “Psicologia de Massas”); e 3) no seu périplo conceitual-reportagem pela Europa, publicado em resumo no livro Os Ossos do Mundo (e nalguns artigos de jornal e na revista Vanitas, nos quais  traça sua alucinação primitivista de antropófago-arqueólogo sobre a arte e as cidades ocidentais).

Eu gostaria de tratar desses assuntos todos, pois a exposição nos instiga a pensar de uma maneira muito mais radical o legado desta “Antropofagia” no fluxo modernista da passagem dos anos 20 para os anos 30. Seria proveitoso fazermos uma revisão do Déco e olhar para ele do ponto de vista deste bárbaro tecnicizado, antes que a explosão da Segunda Guerra colocasse uma outra barbárie em curso e nos encontrássemos mergulhados naquilo que até hoje estamos, sempre revivendo num misto de fascismo e pós-modernidade, numa eterna reproposição de um ocidente desorientado, porém deixemos respirar o fôlego que se apresenta neste barbarismo tecnológico de outrora e que aqui é muito bem evocado. Mais do que tudo, é uma felicidade imensa descobrir este trabalho de Engel Leonardo que nos coloca um ponto de vista sobre a antropofagia que é desinvestido de todo o provincianismo brasileiro e que sugere o quanto estes conceitos extrapolaram os nacionalismos da língua portuguesa e ainda ecoam vivos mundo afora. 

 

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Exposição Faro, de Engel Leonardo 12 de outubro a 30 de novembro de 2018 I  quinta a sábado  – 15h às 19h I  Encerra aos feriados #kunsthallelissabon

A Kunsthalle Lissabon apresenta Faro, a primeira exposição individual em  Portugal de Engel Leonardo (Bani, República Dominicana, 1977, vive e trabalha em Santo Domingo, República Dominicana). A exposição inaugura dia 12 de outubro, às 18.30h, estando patente ao público de 13 de outubro a 30 de novembro de 2018.  

A 12 de outubro de 1492 a frota liderada por Cristovão Colombo, e ao serviço dos Reis  Católicos de Espanha, alcança a ilha de San Salvador, nas Bahamas, convencida que chegara à Índia. Esta data marca o inicio de um período de contato, expansão, exploração, conquista e colonização do continente americano pelos Europeus que decorreu durante os séculos seguintes.

Em 1992, a tempo da celebração do 500º aniversário da descoberta da América, mas com um atraso de mais de sessenta anos, foi inaugurado em Santo Domingo, capital da República Dominicana, o Farol de Colombo (Faro a Colón, em espanhol), um monumento que comemora a descoberta do continente e que alberga também os supostos restos mortais do conquistador europeu.

O Farol de Colombo foi o resultado de uma competição internacional de arquitetura organizada em 1928 pela União Pan-Americana, e que pretendia dotar a cidade de Santo Domingo de um mausoléu para os restos mortais de Colombo, um aeroporto, um palácio presidencial, bem como algumas outras valências. Inspirada pela visão do Pan-Americanismo como uma expressão da unidade dos povos da América, a competição foi descrita, à altura, como a maior competição de arquitetura alguma vez organizada. A primeira fase contou com 456 projetos oriundos de 48 países. O júri fora constituído por Horacio Acosta y Lara, Eliel Saarinen e Raymond Hood, posteriormente substituído por Frank Lloyd Wright. A proposta de Joseph Lea Gleave, um jovem arquiteto britânico, foi a vencedora, tendo a construção sido iniciada em 1931. 

De entre os projetos submetidos por arquitetos latino-americanos encontra-se o do brasileiro Flávio de Carvalho. Figura polémica, arquiteto com poucos projetos construídos e um outsider do modernismo brasileiro, a sua produção foi bastante assinalável em áreas como a pintura, a escultura, o desenho, a cenografia e o teatro, tendo sido uma figura de destaque no desenvolvimento da performance. A sua personalidade excêntrica, intervenções pouco convencionais e reflexões críticas escandalizaram os setores conservadores da sociedade paulista do seu tempo. A proposta de Carvalho para o Farol de Colombo combinava uma torre de farol de inspiração futurista com uma base gigantesca reminiscente de formas pré-colombiana e rodeada de arcadas neocoloniais. A decoração dos interiores contava com interpretações abstratas de motivos dos marajoaras, guaranis, maias e toltecas, realizadas pelo próprio Carvalho.

Recorrendo à escultura e à instalação, bem como a intervenções site-specific, o trabalho de Engel Leonardo investiga questões relacionadas com a natureza, o clima, as tradições, a arquitetura e a cultura popular das Caraíbas. A produção de objetos e as funções psicológicas e sociais a estes associadas são de particular interesse para o artista, que trabalha a partir de um detalhado processo de observação e interrogação do seu próprio contexto.

Em Faro, Leonardo parte do desejo moderno de unidade manifestado através do Pan-Americanismo do início do século XX, materializado no concurso de arquitetura para a construção do Farol de Colombo, mas que interioriza e reproduz sem interrogar as lógicas de operação do colonialismo europeu. Revisitando a proposta de Flávio de Carvalho, ao invés do projeto vencedor, Leonardo traça uma narrativa alternativa de união americana que não ignora noções de colonização, exploração, evangelização e salvação das comunidades indígenas.

Faro abre com um umbral, uma escultura-pórtico que assinala, de alguma forma, a entrada no espaço narrativo da exposição. Esta peça é reminiscente dos umbrais gigantescos que Flávio de Carvalho desenhou para o Farol de Colombo, a partir de exemplos da arquitetura Inca. Na parede, uma peça em metal cita os murais desenhados pelo arquiteto para o salão nobre do Farol. É uma reinterpretação modernista de representações da forma humana provenientes da cultura Tolteca, que Engel Leonardo volta a trabalhar num infindável ciclo de citação e apropriação críticas. Ao fundo da sala, um piso em mosaico hidráulico cobre o chão do espaço expositivo. Completamente funcional, este piso apropria-se de um motivo desenhado por Flávio de Carvalho para os azulejos que revestiriam as superfícies do seu Farol. Engel Leonardo tem vindo a usar vários destes motivos, criando mosaicos hidráulicos que usa como elementos constituintes de um corpo escultórico que iniciou esta pesquisa. Em Faro, os mosaicos deixam de ser simples elementos para a elaboração de esculturas, para cumprirem finalmente a sua função utilitária inicial. 

Em frente ao piso em mosaico hidráulico encontra-se uma pedra proveniente da coleção do Museo del Hombre Dominicano. Trata-se de uma pedra da Praça Cerimonial Yuboa, a praça mais importante do território da cultura Taína, atualmente Republica Dominicana e Haiti. A exposição conta ainda com dois elementos escultóricos, em estreito diálogo com a arquitetura do espaço expositivo e que se inspiram em motivos desenhados por Flávio de Carvalho a partir da flora nativa das Américas. Uma escultura em metal pintado, que liga o teto e o chão do espaço expositivo, é reinterpretada por Leonardo como a planta trepadeira bejuco. Um outro elemento escultórico, em madeira pintada, ocupa a junção do teto com um dos pilares do espaço e apresenta-se como uma estilização de uma folha de palmeira, elemento estruturante de qualquer fantasia tropical.

 

Engel Leonardo (1977, Baní, República Dominicana) vive e trabalha em Santo Domingo, República Dominicana. Estudou na Facultad de Artes da Universidad Autónoma de Santo Domingo e na Altos de Chavón School of Design (afiliada à Parsons School of Design em Nova Iorque). Uma seleção das suas exposições inclui United States of Latin America, MOCAD, Detroit (2015); Focus Latin America, ARCO, Madrid (2015); Rejas, Sillas, Vestidos, Muñecas y Plátano, Museo del Hombre, Santo Domingo (2014); Emergencia, TEOR/éTica, San José, Costa Rica (2014); UNFOLD, Ramos Mederos, Santo Domingo (2013); Moderno Tropical, 27th National Biennale of Visual Arts, Museo de Arte Moderno, Santo Domingo (2013); Under Construction: New Perspectives on Dominican Identity, William Road Gallery, London (2013); On Common Ground, Art Museum of the Americas, Washington D.C. (2012); 26th National Biennale, MAM, Santo Domingo (2011); 24th National Biennale (2007).

 

Kunsthalle Lissabon é generosamente apoiada pela República Portuguesa – Direção Geral das Artes, Coleção Maria e Armando Cabral e por Teixeira de Freitas, Rodrigues e Associados. A exposição Faro conta com o apoio adicional da Davidoff Art Initiative e Pólo Cultural Gaivotas-Boavista /CML.

www.kunsthalle-lissabon.org
info@kunsthalle-lissabon.org

 

por Afonso Luz
Vou lá visitar | 7 Novembro 2018 | antropofagia, arte contemporânea, Engel Leonardo, Faro, perspectivismo ameríndio. Brasil, pos-colonial