nós-rio Uma exposição com o Rio Grande da Pipa pelo coletivo c.a.m.p.o
“Levei anos, pacientemente, a abrir galerias subterrâneas. Toda a minha ambição era romper até à luz! E aí me punha eu dia e noite em teimosas lutas com a terra e com as rochas que me tolhiam a passagem.
Ai, que alegria tamanha senti no dia primeiro em que descobri o céu por entre os últimos grãos de terra que tinha a vencer! Começava a anoitecer e eu, receoso e cheio de respeito por tudo aquilo tão estranho para mim, deitei-me a correr muito devagarinho, abafando a voz, com mil cautelas, não fosse dar nas vistas e provocar algum desagrado.”
Este excerto de Irene Lisboa dá voz ao rio a falar da sua luta para alcançar a luz. Uma metáfora sobre a revelação. Também nesta exposição, concebida por um coletivo de artistas mulheres, encontramos a persistência na escuta e na compreensão do Rio Grande da Pipa e das suas margens, com os seus encantos e desencantos.
A primeira vez que visitámos o rio, ele cercou-nos por todos os lados. Ou, pelo menos, foi assim que encarámos a chuva que caía torrencialmente assim que dele nos aproximávamos. O caudal corria de forma fluente e enérgica. O rio era já música e voz.
Acompanhadas por quem já o conhecia há mais tempo, fomos ouvindo histórias de quem nele molhava os pés com meias de corda, das roupas ali lavadas, das cheias de anos passados, dos peixes e outras espécies que ali abundavam e que agora são inexistentes ou escasseiam.
Decidimos então construir a nossa relação com o rio contrariando a ideia de escassez e fazendo-o habitar em nós: ser rio.
Começámos por ter o impulso de investigar, recolher dados históricos e científicos sobre o estado da água. Rapidamente, entregámo-nos a vivenciar o rio, a conhecê-lo empiricamente, em diferentes estações do ano, como um organismo vivo em interdependência com uma multiplicidade de outros seres. As seguintes visitas consistiram em escutar a água que corre e todas as outras entidades que lhe fazem companhia: pedras, limos, pássaros, árvores, troncos flutuantes, insetos. Aos poucos, o rio foi habitando em nós. As cores, os murmúrios, os cheiros, a humidade, a frescura tornaram-se parte da nossa forma de co-existir.
nós-rio é o resultado dessa co-existência e dessa co-autoria, que se foi revelando nos mais diversos formatos. O impacto acabou por se reproduzir em praticamente todos os trabalhos. Multiplicar essas paisagens foi, também, um modo de nos tornarmos veículo do rio: mapeamos para conhecer e proteger, quer seja em pinturas, fotografias, filmes ou bordados.
A fantasmagoria do rio – o que ele foi outrora – levou a que criássemos imagens em movimento através do método da câmara obscura, através da qual os reflexos da água são captados por um conjunto de espelhos cuja luz retém a imagem no interior de uma grande caixa negra. Reflexo de reflexo de reflexo, como se tentássemos devolver ao futuro o rio fértil do passado.
A fotografia analógica foi outra forma de nos deixarmos habitar. Escolher ângulos, distâncias, luminosidades ajudou-nos a perceber que o rio não é só um, mas vários corpos em movimento. Em polaroids ou fotografias de dupla exposição com máquina lomográfica, o processo é intuitivo e implica uma aproximação do corpo ao rio. Os exercícios de representação pelo desenho e a pintura também são uma forma de encontro com o outro, na observação e compreensão mais demoradas, resultando por vezes num diálogo mais fantasioso.
Mas queríamos saber mais para além do que era visível. Como mergulhar no rio? Saber para lá do que estava à superfície da água? O rio foi ganhando personalidade própria. Impedidas de mergulhar ou entrar na água, aproximámo-nos dela com os nossos sentidos, o nosso olhar, o nosso toque, deixando o rio tocar-nos com a sua força, a sua fragilidade e os seus mistérios numa perspetiva, por momentos, romântica ou animista.
Beber água do rio com as mãos em concha, Marta Guerreiro, 2025
Guardiãs de um sonho lindo, Rita Figueiredo, 2025
Se pudéssemos teríamos tomado banho, Catarina Marto, 2025
Sem título, Catarina Cabral, 2025
Sem título, Raquel Pedro, 2025
Para que a água não faça mal à barriga
Aguinha, aguinha
Não faças mal a minha barriguinha,
Nem de noite, nem de dia,
Nem à hora do meio dia.
Vem Nossa Senhora
Com uma varinha de condão
Para matar todos os bichinhos
À volta do pegão.
Tal como se entende nesta reza ou mezinha popular “Para que a água não faça mal à barriga”, continuamos a acreditar em rios nos quais possamos mergulhar e beber água, sem riscos, sem medo.
Por fim, fechamos com o texto de Ailton Krenak, que nos acompanhou desde o início deste mergulho:
“À noite, suas águas correm velozes e rumorosas, o sussurro delas desce pelas pedras e forme corredeiras que fazem música e, nessa hora, a pedra e a água nos implicam de maneira tão maravilhosa que nos permitem conjugar o nós: nós-rio, nós-montanhas, nós-terra. Nos sentimos tão profundamente imersos nesses seres que nos permitimos sair de nossos corpos, dessa mesmice da antropomorfia, e experimentar outras formas de existir. Por exemplo, ser água e viver essa incrível potência que ela tem de tomar diferentes caminhos.”
O coletivo c.a.m.p.o surgiu de uma sororidade e é composto por cinco artistas e investigadoras com trabalho em diversas áreas como as artes visuais, cinema, fotografia, escrita criativa e história da arte: Catarina Cabral, Catarina Marto, Marta Guerreiro, Raquel Pedro e Rita Figueiredo. O seu trabalho como grupo consistiu, até aqui, em momentos de apoio e partilha informal e disseminação de objetos artísticos distribuídos em sítios públicos sob forma de anonimato. Na exposição nós-rio, integra a participação de Edite Cravo.
https://www.instagram.com/c.a.m.p.o__/
Agradecimentos: Alexandra Contreiras, Amélia Figueiredo, Atelier Errar, Catarina Bizarro, Daniel da Silva Ferreira, Edite Cravo, Elisabete Mália, Julius Brejon, Liliana Coutinho, Maria Guerreiro, Mariana Ley, Sandra Coelho e Freitas, Sara Inácio
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