Atlas da Solidão

Há um conto de Michel Tournier chamado Tristan Vox que fala de um homem — Félix Robinet — que trabalha na rádio apaixonando multidões com a sua bela voz, mas que não pode dar-se a conhecer fisicamente. Tristan Vox é o duplo de Félix Robinet que se forma através da imaginação dos ouvintes, uma imagem completamente alicerçada numa voz emitida através de circuitos de som, desde o microfone no estúdio ao aparelho de rádio em casa. Uma voz sem corpo, sem substância, sustentada pela distância e por um certo ensimesmamento. A existência de Félix Robinet fica, assim, consolidada numa personagem cuja sobrevivência só é possível à custa do distanciamento, de uma intersubjetividade completamente dilacerada e descarnada.
Em 2017, o cirurgião americano Vivek H. Murthy declarou haver uma «epidemia de solidão». Vivek Murthy era um jovem médico quando percebeu que a sua formação em medicina tinha ficado aquém das expetativas. Nada nessa formação o tinha preparado para um dos problemas de saúde mais frequentes que encontrava na sala de exames. Em 2018, o Reino Unido instaurou um Ministério da Solidão, sendo seguido pelo Japão com o Ministério para a promoção do envolvimento dinâmico de todos os cidadãos, em 2021. O Japão criou o seu Ministério porque, até outubro de 2020, morreram mais nipónicos por suicídio do que por Covid-19, registando-se uma subida de 750 suicídios face a 2019 (a primeira subida face ao ano anterior em 11 anos). Eram jovens com menos de 18 anos e mulheres.


A solidão impacta na democracia, não escolhe idades nem classes sociais e é uma dor psicológica com implicações biológicas que, tornada crónica, pode matar. Sem esquecer a evidência de que as políticas neoliberais — da defesa do predador sobre a presa camuflada pela defesa da liberdade; a defesa da redução de impostos que conduz à redução do investimento nos serviços públicos; a defesa da meritocracia e dos seus benefícios afinal baseada numa mentira sistémica destinada a perpetuar a riqueza daqueles que já são ricos; e a promoção da felicidade trazida pelo capitalismo — aumentam o sentimento de solidão. A ausência de apoio das instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais conduzem à obstrução da cidadania. O capitalismo neoliberal veio remodelar não só relações económicas, mas também relações pessoais. Em 1981, Margaret Tatcher dizia ao Sunday Times: “A economia é o método; o objetivo é mudar a alma e o coração.”
Desde 2020, as restrições para conter o vírus SARS-CoV 2 vieram agravar a situação, com elevado custo e consequências potencialmente graves para a saúde mental e física, um risco amplificado naqueles que têm doenças mentais pré-existentes. Mas perante o hodierno flagelo da felicidade, a solidão é um estigma: muitas pessoas negam que se sentem sozinhas. Vivemos no tempo mais conectado da história da humanidade e sentimo-nos isolados, esquecendo também que a solidão e a monotonia têm também um lado positivo: são essenciais para a abertura ao pensamento crítico e para a fruição da criatividade.
Para que serve a solidão? Porque se torna ameaçadora? Como podemos usufruir da nossa solidão num mundo que se tornou mais veloz do que nunca? Atlas da Solidão aborda um tema crucial para o entendimento da contemporaneidade e convoca uma reflexão sobre múltiplas dimensões da solidão, positivas e negativas, num programa interdisciplinar que procura abordar o tema dos pontos de vista teórico, simbólico e prático. O programa — que inclui conversas, um concerto, uma oficina para adolescentes, um curso online, performances, dança e uma exposição — concentra-se na Appleton Associação Cultural, em Lisboa, até dia 29 de abril, que se torna numa plataforma de encontro entre o público e os intervenientes do projeto.
Irá o novo mundo criar formas extremas de mascarar os estados emocionais de isolamento que podem levar à sua destruição? Estaremos condenados — como no dilema do porco espinho de Schopenhauer — a aproximar-nos e repelir-nos devido aos espinhos da nossa natureza?

Appleton até 29 de abril, 2023
31 março – 29 abril: Quero um dia em que não se espere nada de mim
Exposição coletiva com obras de Bert Timmermans, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues e Pedro Lagoa 

4 e 5 abril: Terra Nullius, de Paula Diogo
Caminhada-espetáculo (versão DIY - áudio e livro disponíveis das 14:00 às 17:50)

10 a 13 abril: Melancolia, arte e literatura, por Vrndavana Vilasini
Curso online (sala aberta: 18H40 / Início: 19H00)

14 abril: Margarida Garcia e Manuel Mota
Concerto (21H00)

15 abril: O mapa, por Joana Cavadas
Laboratório de expressão experimental com desenvolvimento de um objeto artístico - Público-alvo: 14 aos 16 anos (15H00)

20 e 21 abril: Comoção, de David Marques
Dança - estreia absoluta (19H00)

28 abril: Approach and Enter, de Vânia Rovisco
Performance-instalação no âmbito da exposição (17H00-19H00)

29 abril: Uma comunidade de solidões
Conferências de encerramento com Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia) (14H00-18H30 com intervalo)
Artistas: Bert Timmermans, David Marques, Horácio Frutuoso, Isabel Cordovil, Joana Cavadas, Joana Ramalho, José Carlos Teixeira, Luís Barbosa, Mag Rodrigues, Manuel Mota, Margarida Garcia, Paula Diogo, Pedro Lagoa, Vânia Rovisco, Vrndavana Vilasini
Conferencistas: Adalberto Carvalho (Filosofia), Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação), Sónia Martins (Psicologia) e Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia)
Conceção e direção artística: Marta Rema
Produção: Ricardo Batista
Design gráfico: João M. Machado
Assessoria de imprensa: Rita Bonifácio/Paris Texas
Comunicação: Ricardo Rodrigues
Vídeo: Francisca Manuel
Fotografia: Alípio Padilha
Parceria: Appleton
Apoio à comunicação: Antena 2, Buala, Baldio, CMLisboa, Coffeepaste, Umbigo
Organização: efabula
Financiamento: República Portuguesa — Cultura / Direção-Geral das Artes

por Marta Rema
Vou lá visitar | 4 Abril 2023 | Atlas da Solidão, solidão