Fluxo e Função, obra de Carlos Correia
“Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, no meio da escuridão, esta luz que tenta atingir-nos, mas não pode – é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. Assim, o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.”
Giorgio Agamben
“A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.”
Walter Benjamin
Abrangendo diversos médiuns e focos de interesse, a obra de Carlos Correia é protagonista de numerosos paradoxos e suspensões. A palavra Aleteia (grego), a verdade enquanto desvelamento, poderia pertencer aqui, precisamente uma verdade múltipla e concomitante, tão divergente quanto a produção que o artista manteve: trabalhando por séries produzidas em simultâneo. Numa tensão permanente entre objeto representado e modo da representação, estas séries foram-se desenvolvendo em torno de certas questões centrais, como os trabalhos em torno das imagens icónicas da pintura (Velásquez, Goya, Manet) ou de acontecimentos mediáticos, imagens do cinema e das séries televisivas como é o caso da personagem Tony Soprano, as imagens do avião A-380, os filmes A Cidade de Deus e Tropa de Elite, as cenas eróticas, o filósofo Slavoj Zizek, entre tantos outros. Há no trabalho de Carlos Correia um forte sentido de contemporaneidade, vista enquanto exuberância e, tal como nas palavras de Benjamin, fluxo do devir.
Numa dessas séries, surgiram sombras brancas de espectadores, corpos impedindo a observação da imagem por trás. Criando um espaço vazio que não só oculta como questiona, o branco que cobre a pintura foi sendo alvo de uma ampla pesquisa, pragmática e rigorosa. E o que questiona? O universo da pintura. Desde o lugar do espectador ao das próprias imagens. Como escreve Bernardo Pinto de Almeida num artigo publicado no jornal Público, imediatamente a seguir à sua morte: “(…) somos nós que vemos as imagens ou, ao contrário, são elas que nos vêem, nos olham, nos questionam? Seremos nós, espectadores, um elemento apenas na imensa cadeia da reprodutibilidade, veiculada na contemporaneidade pelos modelos de comunicação dominantes?”
Desde 2004 que Carlos Correia estabelecia uma divisão entre aquilo que chamava «pinturas interiores» e «pinturas exteriores». Segundo o próprio afirmava, numa entrevista à next room, por um lado, existem as obras que partem de imagens preexistentes e, por outro, aquelas que não têm modelo. O mediatismo das pinturas exteriores difere radicalmente da depuração das pinturas interiores, estas últimas, assentes na perspetiva, a par de uma vigorosa pesquisa cromática, são geométricas, abstratas, em camadas, espaços fechados que abrem para outros espaços fechados e vazios que abrem para outros vazios. No plano destas pinturas vemos palcos, portas, janelas, espelhos, telas, cadeiras, mesas, pranchas, tábuas, lugares que convocam o acontecimento, ou seja, essas imagens de que a pintura exterior irá apropriar-se.
Porém, a atividade de Carlos Correia não se resume à pintura. Em outubro de 2012, numa referência à loss of aura de Walter Benjamin, criou a editora LOSSOFAURA tendo editado sete Livros de Artista. Trabalhou também em vídeo, desenho e texto, desenvolvendo uma obra plástica virtuosamente poética, intimamente ocupada por questões filosóficas e estéticas. Algumas dessas questões são “a ideia de mise em abyme, a representação do espaço de trabalho e/ou de exposição” e as citações de obras de arte. Nelas e através delas, Carlos Correia vai destapando véus, pois não há um modo de ler único. Encontramo-nos entre o que não sabemos de nós e o que nos é dado. Quem disse que as janelas servem apenas para espreitar e as portas para entrar ou sair?
Marta Rema
Carlos Correia estudou na Escola Superior de Belas Artes e Design das Caldas da Rainha, onde completou a licenciatura em Artes Plásticas, tendo feito posteriormente o Projeto Individual em Pintura no Ar.Co. Era mestre em Artes Visuais pela Universidade de Évora e frequentava o 3º ano do Doutoramento em Belas Artes-Pintura na FBAUL, a par de uma pós-graduação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
O pintor deixou obras em diversas coleções públicas e privadas, das quais podemos destacar a Fundação PLMJ; Fundação Eng.º António Almeida; RAR (Holding); Coleção Teixeira de Freitas; H.S.J.D – Espacio de Arte Contemporâneo de Almagro; Fundação Ilídio Pinho; Coleção Madeira Corporate Services; Coleccion Caja Madrid; Tróia Design Hotel – Contemporary Art Collection; Coleção [Safira&Luis] Serpa; Fundação Pedro Barrie de la Maza; Masteschitz Collection, Salzburg, Deutsche Bank, Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
Expunha com regularidade desde 2004 em Lisboa (ex.: Baginski – Galeria Projectos, Fundação Calouste Gulbenkian); Porto (ex.: Galeria Pedro Oliveira); Londres (ex.: The Mews, The Mayor’s Parlour); Madrid (ex.: Galeria Fucares, Círculo de Bellas Artes); São Paulo (ex.: Galeria Luisa Strina), entre outros.
Em 2013 foi nomeado para a short list do Projeto 100 Painters of Tomorrow, da editora Thames & Hudson.
“A pintura faz-me olhar para dentro, olhar para fora, olhar para trás e olhar para a frente; a pintura leva-me a tentar conciliar esta multiplicidade de pontos de vista; a pintura obriga-me a dar a ver esta montagem de olhares, de tempos e espaços. Assim, não posso senão afirmar a vitalidade de algo que me faz fazer isto tudo.”
Carlos Correia (Lisboa, 1975-2018) ver a Galeria no BUALA. Exposição na Galeria 111.